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Relatório 2020 dos ODS: pandemia e o desenvolvimento sustentável

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11 de julho de 2020, 10h22

Spacca
O recém publicado Relatório 2020 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável(ODS)1 da Organização das Nações Unidas deixa claro que o mundo está progredindo, todavia de modo inconstante e insatisfatório para alcançar os 17 ODS previstos na Agenda 2030.2 Embora se constate uma evolução em alguns índices como saúde materna e infantil, no acesso à energia elétrica e um maior empoderamento da mulher, de outro lado houve um alarmante aumento na insegurança alimentar, na deterioração do meio ambiente natural (evolução das poluições, dos desmatamentos e das queimadas) e no crescimento das persistentes e generalizadas desigualdades.

Não existe dúvida que a pandemia da COVID-19 tornou-se a pior catástrofe humana, social e econômica dos nossos tempos, espraiando-se por todos os países, causando mortes que globalmente excedem 500.000 vidas, somadas aos casos confirmados de contágio que ultrapassam os 10 milhões.

E, de acordo com a leitura que se pode fazer do relatório, a pandemia terá implicações profundas e dificultará o cumprimento dos ODS, cuja observância tem sido monitorada pela ONU desde 2016. Os dados apresentados no relatório deste ano foram, em grande parte, colhidos antes do início da pandemia, por isso não espelham o real impacto da Covid-19. Portanto, nota-se que constam no relatório uma análise sobre as eventuais implicações da pandemia sobre o cumprimento dos ODS baseada em dados científicos e descobertas empíricas nas nações ricas e pobres. A natureza destas descobertas é preliminar e incerta, mas estes achados podem ser úteis na discussão política e científica sobre a relação entre a pandemia e os ODS.

O Relatório 2020, tem cunho intergeracional, pois busca levantar dados e propor estratégias para implementar os ODS tendo em vista proporcionar uma vida boa para as atuais e as futuras gerações dentro de uma perspectiva holística. Não obstante a completude do relatório, importante frisar que não se desenvolveu ainda uma vacina de cunho preventivo contra o vírus e, tampouco, um antirretroviral de amplo espectro para tratar da doença quando instalada nas vítimas. Portanto, ainda existe um longo caminho a ser percorrido no combate à pandemia. Pandemias anteriores, como a Gripe Espanhola, sugerem que pode haver várias novas ondas de contágio, e é impossível prever as nefastas e desastrosas consequências nas economias, na coesão social, no meio ambiente e na diplomacia internacional (a pandemia também gera consequências políticas). Os países, de modo globalista, precisam agir em conjunto praticando o que se chama de solidariedade internacional ao mesmo tempo que devem repudiar o isolacionismo xenófobo.

Os ODS, não se pode ignorar, são objetivos comuns das nações para o desenvolvimento sustentável, e a eclosão da Covid-19 faz a observância dos mesmos cada vez mais urgente e necessária. Relevante, igualmente, pensar no pós-pandemia, e na reconstrução econômica, social, política e ambiental mundial. O Relatório 2020, neste sentido, aí um dos seus grandes méritos, descreve as ideias preliminares de como os ODS podem fornecer a estrutura para a ação nacional e a cooperação internacional após a Covid-19.

No relatório constam distintas prioridades, elaboradas tecnicamente, de curto e de longo prazo. No curto prazo, a prioridade absoluta obviamente é controlar a propagação do vírus e conter a mortalidade em todos os países, em especial nos mais pobres. As nações e a comunidade internacional também precisam mitigar o impacto negativo da pandemia na consecução dos ODS, especialmente em nações vulneráveis e nos grupos populacionais mais expostos ao vírus.

Relevantes são as parcerias técnico-científicas internacionais e abandonadas devem ser as visões erráticas, pré-iluministas, negacionistas e desfocadas da ciência. Mister acelerar a luta solidária contra a pandemia, apoiar a estabilidade macroeconômica e evitar uma crise humanitária desastrosa e sem precedentes. A longo prazo, defende-se no relatório que os ODS fornecem a estrutura básica para orientar esta almejada recuperação. Os governos vão precisar, de fato, realizar investimentos públicos para tornar os sistemas de saúde mais fortes e resilientes e, também, buscar alcançar todos os 17 ODS. Logo, políticas neoliberais e de austeridade são incompatíveis com o restaurar do desenvolvimento sustentável das nações em face dos seus já conhecidos e reconhecidos fracassos ante crises sociais, econômicas e ambientais.

Curiosa e alvissareira a notícia constante no relatório, que precisaria ser lida com todas as letras por alguns líderes mundiais, no sentido de que, em princípio, a Covid-19 é controlável por medidas simples. A pandemia poderia ser interrompida se todas as pessoas infectadas fossem mantidas afastadas com segurança de indivíduos suscetíveis durante o período de infecciosidade, que é de aproximadamente uma a duas semanas. Se isso acontecesse, a grande maioria das pessoas atualmente infectadas se recuperariam, enquanto uma pequena proporção, talvez menos de 1%, poderia perder a vida com a doença. Em questão de poucas semanas, de acordo com o relatório, a epidemia terminaria, tendo em vista que os infectados de hoje não contaminariam mais outras pessoas.

No entanto, a pandemia não está sendo contida da maneira rápida e tecnicamente bem ordenada como prevista no relatório como solução. O número de novos casos continua a crescer em muitos países e regiões, incluindo Brasil, Índia, Rússia, Estados Unidos e vários países da América do Sul e da África. Os indivíduos infectados continuam a contaminar indivíduos suscetíveis em grande número, o próprio Presidente Jair Bolsonaro foi infectado e o Presidente de Burundi, chamado de Presidente-Atleta, Pierre Nkurunziza, de 55 anos, perdeu a vida em virtude da Covid-19.

A pandemia, aliás, atinge com maior intensidade países com fracas lideranças políticas. Países liderados por populistas ou homens fortes, que rejeitam a ciência, em regra enfraquecem as instituições de saúde pública ou comprometem os sistemas de informação e a transparência nos dados referentes a administração da pandemia, atitudes estas que têm como resultado um desempenho particularmente ruim na administração da Covid-19. A livre circulação das informações, em tempos de pandemia, é uma ética de reciprocidade, uma regra de ouro.

Importante grifar que o atraso, ainda que de algumas semanas, nas respostas, consubstanciadas na adoção de medidas de precaução e de prevenção, podem significar a fatal diferença entre a supressão da pandemia e o surto em massa com a perda de milhares de vidas. O fracasso das nações na administração do surto pandêmico no âmbito interno, tem resultados transnacionais e afetam evidentemente outros países na retomada do comércio, do turismo, do investimento, do ensino superior e de outras atividades características de uma sociedade cosmopolita.

Com a transmissão generalizada do vírus e a adoção de medidas inadequadas de saúde pública, a maioria dos países recorreu as antigas quarentas e ao lockdown. Foram reduzidos, sem dúvida, acentuadamente os contatos diários das pessoas nas lojas, nos restaurantes, nos escritórios, no transporte público e nos parques e praças. Estas medidas tornaram a propagação do vírus comprovadamente mais lenta.

No entanto, os bloqueios são muito caros e não são plenamente eficientes, pois ao isolar apenas indivíduos infectados e os seus contatos, todos ficam isolados indiscriminadamente. Este cenário, aliás, sofre agravamento, pois não existem na maioria das nações estruturas físicas e recursos para testagens em massa das populações. A economia paralisa, com custos muito altos, gerando desemprego, a pobreza repentina, o aumento da fome, o aumento dos abusos domésticos e outros impactos psicológicos decorrentes do permanecer em casa por tempo indeterminado.

Por outro lado, a suspensão dos bloqueios, na ausência da adoção de medidas adequadas de saúde pública, pode simplesmente permitir que a pandemia retorne com força total. Todos países, portanto, enfrentam uma realidade sombria, de gerenciamento de riscos e de incertezas, em face da impossibilidade de se suplantar a utopia do chamado risco zero. E, aí, grassa uma espécie de Escolha de Sofia entre a pandemia não contida e o colapso econômico, ambos com consequências humanas, sociais, políticas e ambientais imprevisíveis.

De acordo com o relatório, por hora, é mais provável que o vírus continue a se espalhar amplamente e continue afetando vastas proporções da população mundial. Este é o resultado da má governança em muitos países, de uma visão utilitária combinada com a falta de meios estruturais e de financiamento para conter a epidemia nas nações mais pobres. Os países em desenvolvimento, com efeito, não têm quadros suficientes de profissionais de saúde pública, embora o investimento nestas carreiras seja altamente recomendável não apenas para o controle da pandemia, mas também para alcançar o ODS 3 (Saúde e Bem-Estar). Os países mais pobres, a exemplo do Brasil, também não têm kits de testes suficientes e instalações adequadas para a realização em massa dos mesmos. Outro desafio que se impõe é o de manter as populações empobrecidas em casa, mesmo por curtos períodos de tempo, pois o povo trabalhador precisa de renda para sobreviver. São os hipossuficientes economicamente e as minorias que mais sofrem não apenas com a pandemia, mas com o desenvolvimento insustentável das nações.

Em suma, os ODS ao mesmo tempo que sofreram forte revés com a pandemia da Covid -19, são um norte para o combate a mesma e, igualmente, um guia para recuperar as nações rumo ao desenvolvimento sustentável calcado nos seus quatro pilares, consoante o Professor Jeffrey Sachs, da Columbia University: a- a boa-governança; b- a tutela ambiental; c- o desenvolvimento econômico; d- a inclusão social.3 Os ODS, em nosso país, serão fundamentais para guiar o governo, as corporações e a sociedade civil para a reconstrução de um verdadeiro novo normal comprometido com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana4 e com a tutela do meio ambiente como direito fundamental de novíssima geração ou de terceira dimensão.5


1 UNITED NATIONS. Sustainable Development Goals Report 2020. Disponível em: https://www.un.org/development/desa/publications/publication/sustainable-development-goals-report-2020. Acesso em: 10.07.2020.

2 São os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável:

1. Erradicação da pobreza – Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.

2. Fome zero e agricultura sustentável – Acabar com a fome, alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável.

3. Saúde e bem-estar – Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades.

4. Educação de qualidade – Assegurar a educação inclusiva, e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.

5. Igualdade de gênero – Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

6. Água limpa e saneamento – Garantir disponibilidade e manejo sustentável da água e saneamento para todos.

7. Energia limpa e acessível – Garantir acesso à energia barata, confiável, sustentável e renovável para todos.

8. Trabalho de decente e crescimento econômico – Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo, e trabalho decente para todos.

9. Inovação infraestrutura – Construir infraestrutura resiliente, promover a industrialização inclusiva e sustentável, e fomentar a inovação.

10. Redução das desigualdades – Reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles.

11. Cidades e comunidades sustentáveis – Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

12. Consumo e produção responsáveis – Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.

13. Ação contra a mudança global do clima – Tomar medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos.

14. Vida na água – Conservação e uso sustentável dos oceanos, dos mares, e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável.

15. Vida terrestre – Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da Terra e deter a perda da biodiversidade.

16. Paz, justiça e instituições eficazes – Promover sociedades pacíficas e inclusivas par ao desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

17. Parcerias e meios de implementação – Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.

(UNITED NATIONS. Sustainable Development Goals. Disponível em: https://www.un.org/sustainabledevelopment/. Acesso em: 10.07.2020).

3 SACHS, Jeffrey. The Age of Sustainable Development. New York: Columbia University Press, 2015, p. 14; Também, acolhendo os quatro pilares propostos por Jeffrey Sachs e propondo o princípio do desenvolvimento como direito e dever fundamental na era das mudanças climáticas, ver: WEDY, Gabriel. Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

4 O princípio da dignidade da pessoa humana foi invocado pelo Supremo Tribunal Federal em dezenas de decisões desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, entre as quais: SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 3510. Rel. Min. Ayres Britto. J. 29.05.2008. DJE 28.05.2010; SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 2.649. Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 08.05.2008. DJE de 17.10.2008.

5 O direito à integridade do meio ambiente – típico direito de terceira geração – constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, à própria coletividade social. Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.

[SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS 22.164.Rel. Min. Celso de Mello, j. 30-10-1995, P, DJ de17-11-1995.]

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    é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, "Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças Climáticas: um direito fundamental".

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