Opinião

Os excessos na situação emergencial da Covid-19 frente às licitações

Autor

  • Márcia Walquiria Batista dos Santos

    é coordenadora da Orientação Técnico-Jurídica do Ibegesp (Instituto Brasileiro de Educação em Gestão Pública) professora do programa de mestrado em Solução Extrajudicial de Conflitos da Escola Paulista de Direito (EPD-SP) pós-doutora em Gestão de Políticas Públicas pela EACH-USP e doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP.

10 de julho de 2020, 6h34

A Lei federal nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (Espin) decorrentes da Covid-19, tem o intuito de facilitar o trabalho da Administração frente às contratações necessárias durante a situação de emergência. Tem-se aí um primeiro requisito, qual seja, de que as contratações sejam realizadas pelo período e de acordo com as regras excepcionais trazidas pela referida legislação. O regime é provisório, portanto.

A lei federal foi modificada consideravelmente pela Medida Provisória nº 926/2020, em especial em relação ao assunto que nos propomos enfrentar neste momento, qual seja, a licitação e a dispensa para aquisição de bens, serviços, inclusive de engenharia e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública (artigo 4º, caput).

De fato, estamos diante de uma crise sanitária sem precedentes na história, o que justifica que haja uma legislação capaz de dar conta desta nova realidade, visto não ser possível contarmos apenas com o Direito regular ou não provisório para disciplinar tamanha mudança no cenário mundial.

Pois bem, como era esperado, vários procedimentos foram flexibilizados pela nova legislação, a exemplo da necessidade de dar publicidade aos atos praticados nos procedimentos concernentes à dispensa de licitação, substituindo-se a conhecida publicação na Imprensa Oficial pela divulgação em "sítio específico na rede mundial de computadores" (§2º do artigo 4º).

Nada mais sensato, pois, em época em que o teletrabalho impera e diante da dificuldade de operacionalizar publicações em veículos físicos (jornais, por exemplo), parece razoável que se considere a publicidade na internet como prática a ser utilizada. Inclusive, arriscamos dizer que esta medida poderá até se estender para além da fase de pandemia.

Outra novidade bem recebida foi a previsão de se contratar fornecedor de bens, serviços e insumos de empresa, a qual, se estivesse participando de um certame normal, não poderia concorrer. Estamos nos referindo àquela empresa que apresenta inidoneidade declarada ou com o direito de participar de licitação ou contratar com o poder público suspenso, com a ressalva de que se configure como a única fornecedora do bem ou serviço a ser adquirido (artigo 4º, § 3º).

Essa regra é complementada de alguma forma com a constante do artigo 4º-F que possibilita que empresa com problemas com documentos de habilitação (fora a prova de regularidade relativa à Seguridade Social e o cumprimento do disposto no inciso XXXIII do caput do artigo 7º da C.F./88) possa ser igualmente contratada.

E a respeito importa dizer que essa não é uma situação inusual, ocorrendo até com certa frequência nas licitações tradicionais. Não é raro que o único fornecedor de determinado bem ou serviço esteja com problemas na sua documentação habilitatória. Mas a lei, de forma inteligente, está privilegiando o interesse público, que é poder contar com a entrega do bem ou serviço.

Outra possibilidade diz respeito à aquisição de equipamentos usados, desde que o fornecedor se responsabilize pelas plenas condições de uso e funcionamento do bem adquirido (art. 4º-A). Faz sentido deixar claro na Lei 13.979/2020 que existe a possibilidade de adquirir equipamentos usados, visto que tal regra sempre foi muito discutida no âmbito da lei federal nº 8.666/93.

E, diante da escassez de respiradores e equipamentos médicos para fazer frente à pandemia, poder adquirir o que já foi utilizado é uma medida bastante coerente.

Seguindo na análise da Lei nº 13.979/2020, extrai-se do artigo 4º-B a presunção da ocorrência da situação emergencial, junto com a configuração da existência de risco e comprometimento da segurança de pessoas, obras, prestação de serviços, equipamentos e outros bens, impondo-se a regra de que somente se contrate a quantidade suficiente para fazer frente à tal situação.

Aliada a tudo isso, acrescenta-se a viabilidade de se contar com um termo de referência e projeto básico simplificados, não se exigindo estudos preliminares (artigos 4º-C e 4º-E), bem como redução pela metade de prazos nos procedimentos licitatórios de pregão presencial ou eletrônico (artigo 4º-G).

Esse é o panorama da legalidade das licitações e dispensas no contexto da Lei nº 13.979/2020.

Entretanto, nem tudo acontece dentro da legalidade e de todas as questões retro, a que nos preocupa sobremaneira diz respeito aos valores envolvidos nos procedimentos, visto que a própria situação calamitosa pode levar o gestor público a imaginar uma flexibilização demasiada, inclusive em relação às necessárias pesquisas de preços.

Desde o início da pandemia no Brasil, alguns dias antes da aprovação da Lei 13.979/2020, já se imaginava como seriam as futuras contratações para dar conta das compras e da prestação de serviços no âmbito do Ministério da Saúde e das secretarias de saúde estaduais e municipais.

Aguardava-se o total comprometimento dos orçamentos públicos destinados a tais pastas, inclusive prevendo-se a necessidade de ser decretado, igualmente, estado de calamidade com vistas a afastar a incidência do artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 102/2000).

Mencionado diploma legal, em razão do seu artigo 65, considera a calamidade pública ou os estados de defesa ou de sítio circunstâncias excepcionais que permitem afastar temporariamente algumas das suas exigências, sobretudo as limitações para os gastos e endividamento. Para tanto, este estado não basta ser decretado pelo Poder Executivo, devendo ser formalmente reconhecido pela respectiva Casa Legislativa. Afinal, vidas são mais importantes do que metas fiscais, e disso ninguém tem dúvidas.

Entretanto, parece-nos que estava claro desde então que mecanismos de controle internos e externos aos entes federados, em seus três níveis, precisariam estabelecer protocolos não só de combate à doença viral, mas, igualmente, protocolos relacionados à própria forma de controle dos gastos públicos.

Assim, com nosso pedido de desculpas em relação ao trocadilho, o vírus presente hoje na sociedade, não é só o da Covid-19. Há outro mais antigo, com o qual convivemos há muito tempo, que é o vírus da corrupção. E esse, sem sombra de dúvida, por ser resistente ao enfrentamento de órgãos de controle, ainda parece estar longe de ser extirpado.

Esperava-se que em época de pandemia as pessoas mudassem a forma de atuação, fossem solidárias com o contexto atual, principalmente em razão da necessidade de resolver a questão sanitária, com as limitações impostas pelas restrições orçamentárias. Mas há ainda quem se prevaleça da situação para superfaturar preços, leiloar equipamentos, vendendo para quem pagar mais, ou mesmo pedindo propina para adquirir os produtos.

Estão todos no mesmo barco da corrupção e a imprensa, num trabalho essencial em época como a que vivemos, já está veiculando notícias que mostram que contratações estão sendo realizadas com valores extremamente elevados e empresas que não estão entregando produtos com os quais se comprometeram na licitação ou dispensa, com vistas a obter preços ainda mais vantajosos futuramente.

Este é o triste panorama. Não estamos generalizando, mas apenas constatando que há motivo de preocupação e que tais práticas devem ser condenadas.

Assim, espera-se que, ultrapassado esse momento delicado para a saúde de todos, os necessários controles sejam efetivos, de forma a que todos os vírus sejam extirpados da nossa sociedade, punindo-se eventuais envolvidos pelos desvios e condutas ilícitas praticadas.

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  • é coordenadora da Orientação Técnico-Jurídica do Ibegesp (Instituto Brasileiro de Educação em Gestão Pública), professora do programa de mestrado em Solução Extrajudicial de Conflitos da Escola Paulista de Direito (EPD-SP), pós-doutora em Gestão de Políticas Públicas pela EACH-USP e doutora em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da USP.

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