Limite penal

Medida cautelar da Reclamação 41.557/SP e o ne bis in idem: um bom começo

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Keity Saboya

    é juíza no Rio Grande do Norte doutora em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora de Direito Penal na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

10 de julho de 2020, 8h00

Em paradigmática decisão sobre o espectro de proteção do ne bis in idem, em sua dimensão procedimental, o Min. Gilmar Mendes deferiu medida cautelar nos autos da Reclamação 41.557/SP para determinar a imediata suspensão da indisponibilidade de bens e o sobrestamento de ação civil de improbidade administrativa, por entender pela proibição de dupla persecução, penal e administrativa, pelo mesmo fato, após o arquivamento da ação penal no STF por não haver provas da autoria (HC 158.319/SP).

De acordo com a decisão, o recebimento de ação civil por ato de improbidade administrativa com base no mesmo liame temático, além de desrespeitar o julgamento do STF no HC 158.319/SP, violaria o ne bis in idem. A decisão também é relevante na medida em que admite a reclamação constitucional como via adequada para discussão sobre a vedação à dupla persecução, ainda que entre a esfera penal e administrativa.

É que, a despeito de alçado à categoria de direito fundamental, inexiste no Brasil uma clara acepção acerca do amplo espectro protetivo do ne bis in idem.1 Daí representar a decisão uma importante inflexão na jurisprudência constitucional, em especial quanto à necessidade de reconstrução do sentido e do alcance do ne bis in idem, especialmente na relação Direito Penal e Direito Administrativo Sancionador.

Como indicou o Ministro Gilmar Mendes, a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), por pertencer ao Direito Administrativo Sancionador, em muito se aproxima do Direito Penal. Assim, considerou a ação civil por ato de improbidade administrativa uma extensão do poder punitivo estatal e do sistema criminal.2 E, na interface entre o Direito Penal e o Direito Administrativo Sancionador, definiu o bis in idem “como a duplicação do mesmo panorama fático-probatório como substrato empírico fundante em esferas sancionadoras distintas”.3 Por consequência, admitiu a limitação do poder punitivo por meio “(1) da proximidade entre as diferentes esferas normativas e (2) da extensão de garantias individuais tipicamente penais para o espaço do direito administrativo sancionador”.4

Como mencionado na decisão, a concepção unitária de sanção penal adotada pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) funda-se em critérios substanciais e autônomos para a delimitação do que se deve entender por matéria penal, ao incluir dentro do regime jurídico próprio das sanções penais também as sanções administrativas, tendo sido destacado o caso Öztürk v. Alemanha (1984). Nesse julgamento, o TEDH afirmou que ofensa administrativa relativa às normas de trânsito equivaleria à matéria de natureza criminal, por serem aquelas regras gerais dirigidas não para um determinado grupo, mas para todos os cidadãos na qualidade de usuários de estradas.5

A propósito, a Corte de Estrasburgo, quanto à proibição de acumulação de consequências jurídico-repressivas de natureza penal e de natureza administrativa, faz uso, reiteradamente, de parâmetros formulados, pela primeira vez, no caso Engel e outros v. Países Baixos (1976) – e, por isso, conhecidos por critérios “Engel”–, segundo os quais, para interpretar os conceitos de “processo penal”, de “acusação em matéria penal” e de “pena”, deve-se observar: (i) a qualificação legal da infração, que, como reconhecido pelo TEDH, tem valor relativo, servindo apenas como ponto de partida para a análise (ii) a natureza da infração, que deve ser compreendida com “carga punitiva” (criminal charge) nas hipóteses de violação de uma norma de caráter geral, revestida de aspectos dissuasivos e repressivos; e, por fim, (iii) a gravidade da sanção prevista.6

Outros marcos hermenêuticos importantes apresentados na decisão do STF, foram o reconhecimento de que o Direito Administrativo Sancionador e o Direito Penal são manifestações de uma mesma singularidade ou de uma mesma unidade do poder punitivo; a necessidade de transposição matizada à seara administrativa sancionadora dos princípios cardeais do Direito Penal7 e a existência de círculos concêntricos de ilicitude8, bem como a possibilidade de comunicabilidade entre as instâncias estatais sancionadoras, por meio de uma independência mitigada entre essas esferas.

Emergiram, portanto, importantes balizas para o fortalecimento do espectro de proteção do ne bis in idem, com a sinalização de premissas estruturantes em busca de um efetivo reconhecimento do direito à unicidade de (re)ação do Estado contra a mesma pessoa, com base nos mesmos fatos e sob os mesmos fundamentos.

Todavia, diante do expresso reconhecimento “da vedação de bis in idem na relação entre direito penal e direito administrativo sancionador”, há questões que poderiam ter sido enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal, dada a transcendência das interdições decorrentes do ne bis in idem. É que a decisão tratou muito mais dos efeitos negativos da coisa julgada, e casos amplexivos da coisa julgada,9 tendo em vista a escorreita afirmação de que os efeitos da decisão de trancamento do processo por negativa de autoria, nos termos do art. 935 do Código Civil, espraia-se para além das fronteiras do caso julgado. E deixou de indicar o que poderia ser considerado decisão definitiva, como um dos pressupostos de aplicabilidade do ne bis in idem. Observe-se que não se nega a íntima conexão que guarda o ne bis in idem com a coisa julgada,10 mas não se há de confundir esses institutos.11

Assim, no que diz respeito ao alcance do ne bis in idem, espera-se a elucidação de algumas perplexidades:

  1. Diante da reconhecida unidade sistêmica do poder punitivo estatal e da relação de especialidade e/ou subordinação entre os círculos de ilicitude penal e administrativa sancionadora, ter-se-ia como evitar, coibir ou coordenar o risco de persecuções simultâneas contra a mesma pessoa e sobre os mesmos fatos?

  2. Em caso de sobreposição da atuação da jurisdição penal e da potestade sancionadora da administração, diante da indicação de prevalência da esfera penal, seria possível desconto ou compensação, ao menos quando compatíveis, das sanções eventualmente aplicadas?

  3. E o mais importante: apenas em caso de improcedência da persecução penal por negativa de autoria ou reconhecimento da inexistência dos fatos, haveria impedimento de novo procedimento?

Aguarda-se que a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal deslinde essas questões na esteira do amplo reconhecimento emancipatório assegurado pelo TEDH12 e pelo TJUE13, de forma a ser possível a revisão das premissas de aplicação do ne bis in idem no direito brasileiro, solucionando-se as recorrentes disfunções observadas nesse tema, sobretudo no âmbito de aplicação material da proibição de acumulação de sanções penais e sanções administrativas pelos mesmos fatos e fundamentos.


1 A individuação do que é proibido pelo ne bis in idem apresenta tanto uma dimensão processual, indicada pela máxima nemo debet bis vexari pro una et eadam causa (interdição de mais de um procedimento de natureza punitiva pelos mesmos fatos), como uma dimensão material, traduzida na expressão nemo debet bis puniri pro uno delicto (que proíbe a sobreposição de sanções, seja de natureza penal em sentido estrito seja de natureza administrativa sancionadora, desde que por uma só conduta e pelos mesmos fundamentos, assim como a proibição do cúmulo de qualificações jurídicas). Por isso é que se entende o ne bis in idem como a garantia de interdição, diante do mesmo sujeito e do mesmo substrato fático, contra novos processos ou contra riscos de novos processos, contra uma segunda condenação ou contra uma segunda sanção, e também contra qualquer nova pretensão com sentido punitivo. SABOYA, Keity. Ne bis in idem em tempos de multiplicidades de sanções e agências de controle punitivo. Jornal de Ciências Criminais, São Paulo, vol. n. 1, p. 71-92, jul.- dez. 2018. Em sentido semelhante, Juliette Lelieur-Fischer traz três diferentes definições do ne bis in idem, sintetizadas como a proibição do: a) cúmulo de ações de natureza punitiva contra a mesma pessoa pelos mesmos fatos; b) cúmulo de qualificações jurídicas por uma só conduta e; c) cúmulo de sanções. LELIEUR-FISCHER, Juliette. La Règle Ne Bis in Idem: du principe de l´autorité de la chose jugée au principe d´unicité d´action répressive. 2005. (Tese de doutoramento). Universitè Panthéon-Sorbonne (Paris I), Paris, 2005. p. 21.

2 Na mesma esteira do decidido na Medida Cautelar na RCL. 41.557/SP, o Ministro Eros Grau já havia reconhecido que, apesar de a ação por ato de improbidade administrativa ser apurada no juízo cível, não se haveria de negar sua nítida natureza punitiva. Supremo Tribunal Federal. ADI 2797, Relator(a): Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em: 15 set. 2005, DJ 19 dez. 2006.

3 Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na RCL. 41.557 São Paulo. Relator Min. Gilmar Mendes. Reclte.: Fernando Capez. Adv.: Alberto Zacharias Toron. Recldo.: Juiz Federal da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo. Publicação, DJE nº 169, divulgado em 03/07/2020.

4 Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na RCL. 41.557 São Paulo. Relator Min. Gilmar Mendes. Reclte.: Fernando Capez. Adv.: Alberto Zacharias Toron. Recldo.: Juiz Federal da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo. Publicação, DJE nº 169, divulgado em 03/07/2020.

5 No mesmo contexto, pode-se entender como sanções administrativas de heterotutela as previstas na Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), aqui compreendidas como aquelas aplicadas tendo como fundamento relações gerais de sujeição. SABOYA, Keity. Idem. p. 142. SABOYA, Keity. Ne Bis in Idem: história, teoria e perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 99-100.

6 O TEDH estabelece uma relação de alternatividade entre o segundo e o terceiro critérios. Cf.: Caso Sergey Zolotukhin v. Russia (2009). In: Guide on Article 4 of Protocol N. 7 to the European Convention on Human Rights. Right not to be tried or punished twice. Updated on 30 April 2020. Disponível em: <https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_4_Protocol_7_ENG.pdf>. Acesso em: 06 jul. 2020. Essa amplitude conceitual para a identificação do conceito de sanção de natureza criminal também é aceita pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE). Alinhando-se aos critérios “Engel”, para a Corte de Luxemburgo também são três os referenciais alternativos para a determinação substancial do conceito de penalidade: a) a classificação legal da infração; b) sua natureza intrínseca; e c) o grau de penalidade. Cf. a propósito a decisão do Caso 617/10, Åkerberg Fransson (2013). In: Case law by the Court of Justice of the European Union on the principle of ne bis in idem in criminal matters. April 2020. Disponível em: <http://www.eurojust.europa.eu/doclibrary/Eurojust-framework/Pages/Case-law-analysis.aspx>. Acesso em: 06 jul. 2020.

7 Nessa relação, deve haver “adaptação” funcional e nunca “supressão” substancial. GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo; FERNÁNDEZ, Tomáz-Ramón. Curso de Derecho Administrativo. 10. ed. Madrid: Civitas, 2006. v. 2. p. 171.

8 Para o Ministro Gilmar Mendes, “círculos concêntricos de ilicitude não podem levar a uma dupla persecução e, consequentemente, a uma dupla punição, devendo ser o bis in idem vedado no que diz respeito à persecução penal e ao direito administrativo sancionador pelos mesmos fatos”. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na RCL. 41.557 São Paulo. Relator Min. Gilmar Mendes. Reclte.: Fernando Capez. Adv.: Alberto Zacharias Toron. Recldo.: Juiz Federal da 12ª Vara Cível Federal de São Paulo. Publicação, DJE nº 169, divulgado em 03/07/2020. Ainda a propósito da inexistência de diferenças estruturais entre o ilícito penal e o administrativo, percuciente é o pensamento de Nelson Hungria, para quem a ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, em sua essência, é o dever jurídico, razão pela qual não se há de falar em um ilícito administrativo ontologicamente distinto de um ilícito penal. HUNGRIA, Nelson. Ilícito administrativo e ilícito penal. Revista de Direito Administrativo. Seleção histórica, 1945-1995. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. p. 17. Interessante também é a posição de Helena Regina Lobo da Costa, para quem não há diferenças ontológicas entre as condutas consideradas ilícitas no âmbito administrativo e na esfera penal. É que, considerando que o ilícito é um conceito criado normativamente, as diferenças encontradas entre tais esferas de ilicitude são fundadas somente em critérios normativos, tais como os relacionados à técnica jurídica adotada, às regras processuais, aos requisitos formais e materiais para a configuração de tais infrações, entre outros. LOBO DA COSTA, Helena. Direito Penal Econômico e Direito Administrativo Sancionador. 2013. p. 202-206.

9 Aqueles nos quais a autoridade da coisa julgada material poderá recair sobre os motivos do decisum. Nesse sentido: ARMENTA DEU, Tereza. Lecciones de Derecho Procesal Penal. 2. ed. Madrid: Marcial Pons, 2004. p. 311

10 Entende-se que não há, pelo menos de forma precisa, como aclarar a natureza dessa inter-relação, a ponto de indicar se a coisa julgada teria, ou não, seu fundamento na proibição do bis in idem. LEÓN VILLALBA, Francisco Javier de. Acumulación de Sanciones Penales y Administrativas: sentido y alcance del principio ne bis in idem. Barcelona: Bosch, 1998. p. 443.

11 Não obstante também conferir segurança jurídica individual, a coisa julgada tem por fim precípuo a promoção de estabilidade, de higidez e de integridade do sistema jurídico, por meio de proteção da autoridade de suas decisões, especificamente das relações jurídicas atingidas pelos efeitos da sentença; por sua vez, o ne bis in idem tem por missão proteger, de forma direta, a situação jurídica do cidadão, assegurando-lhe proteção de natureza individual, representada pela garantia de unicidade da (re)ação punitiva estatal.

12 Ver a jurisprudência do TEDH sobre o conceito de “decisão definitiva” – como aquela não mais passível de ser impugnada por meio de recursos ordinários – tal como decidido, verbi gratia, nos casos Nikitin v. Rússia (2014) e Mihalache v. Romania (2019). In: Guide on Article 4 of Protocol N. 7 to the European Convention on Human Rights. Right not to be tried or punished twice. Updated on 30 April 2020. Disponível em: <https://www.echr.coe.int/Documents/Guide_Art_4_Protocol_7_ENG.pdf>.

13 No sentido de que é “decisão definitiva” o pronunciamento absolutório por insuficiência dos elementos de prova: TJUE – Caso 398/12, M. v. Itália (2014). In: Case law by the Court of Justice of the European Union on the principle of ne bis in idem in criminal matters. April 2020. Disponível em: <http://www.eurojust.europa.eu/doclibrary/Eurojust-framework/Pages/Case-law-analysis.aspx>. Acesso em: 06 jul. 2020.

Autores

  • Brave

    é advogado, doutor em Direito Processual Penal e professor titular da PUCRS.

  • Brave

    é juíza no Rio Grande do Norte, doutora em Direito Penal pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e professora de Direito Penal na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!