Opinião

Chega de abusos normativos e das autoridades estaduais e municipais — I

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10 de julho de 2020, 10h35

As pessoas de Direito público interno, que formam a federação brasileira, União, Estados, Distrito Federal e municípios, têm suas próprias competências privativas e, em algumas hipóteses, competências constitucionais comuns e concorrentes. Tais competências resultam em leis aprovadas pelos órgãos legislativos, que invariavelmente são regulamentadas por decretos dos chefes dos Poderes Executivos, o que tem favorecido a proliferação de normativos, seguindo-se os abusos de autoridade, principalmente no âmbito dos entes federativos subnacionais.

Na prática, essa competência constitucional atribuída ao presidente da República alcança, por simetria, prefeitos e governadores, mas, repita-se, apenas, para regulamentar a execução das leis aprovadas (CF. artigo 84, IV, c/c o artigo 25 da referida Carta e artigo 11 do ADCT/88).

Em situações excepcionais, como a vivenciada nesse tempo de pandemia, aumentam sobremaneira os riscos desses abusos, uma vez que, devido às circunstâncias, podem ocorrer restrição de direitos e/ou imposição de obrigações, consubstanciadas em atos e ações de agentes do poder público que extrapolem os limites da legalidade. E o que é pior, revestidos de aparente formalidade, porque amparados nos normativos editados nas esferas estadual, distrital e municipal, sob a forma de decretos ou regulamentos, sem o crivo, no entanto, do processo legislativo a cargo das Assembleias Legislativas ou Câmaras de Vereadores (CF. artigo 23-II ou 24-XII, §3º, c/c os artigos 59, II e III, e 61, caput, da Constituição Federal).

Tanto que, sem observância dessas exigências constitucionais para aprovação das leis estaduais e municipais, os decretos editados por governadores e prefeitos tornam-se regulamentos autônomos e afrontam, com isso, o princípio democrático, o postulado da separação de poderes e, mais recentemente, a Lei Federal n° 13.869/2019 (Nova Lei de Abuso de Autoridade), uma vez que, esse diploma normativo, com vigência a partir de 3 de janeiro deste ano, impõe a todos os agentes públicos, inclusive aos ocupantes de cargos por eleição (parágrafo único do artigo 2º), a rigorosa adstrição ao princípio da legalidade (artigo 33), sujeitando-se todos, em caso de descumprimento, às sanções ali impostas.

Assim, os numerosos abusos inseridos em meros "decretos autônomos", fonte de descontroles, extrapolações e verdadeiros atos antidemocráticos, elevam a sua potencialidade no momento em que a nação atravessa difícil, desafiadora e preocupante situação causada pelo vírus SARS-CoV-2 (novo coronavírus).

A grave pandemia no Brasil, além de seu enorme potencial endêmico, associado às conhecidas complicações fatais e comorbidades, poderá, nas palavras de especialistas e juristas, trazer profundas e imprevisíveis repercussões sociais, sanitárias, econômicas, políticas e institucionais, estas últimas agravadas com possíveis paralisações, violências e desordens públicas, bem como desobediências civis generalizadas, de gravíssimas consequências.

Nesse contexto, lamentavelmente fracassou a tentativa do Supremo Tribunal Federal de pacificar o país, por ocasião do julgamento da ADI 6.341/DF, possibilitando a todos os entes federativos, União, Estados, DF e municípios a adoção de medidas normativas e administrativas no combate à Covid-19, outorgando-lhes o exercício pleno das chamadas "competências constitucionais comuns" (artigo 23-II da Constituição Federal), na síntese: "SAÚDE PÚBLICA É MATÉRIA DE COMPETÊNCIA COMUM A TODOS OS ENTES FEDERATIVOS" (ADI 6.341/DF – julgamento em 15-4-2020 – Informativo 973), enquanto que, em decisão cautelar monocrática do mesmo STF (ADPF 672/DF – DJe 14-4-2020), assegurava-se o "EXERCÍCIO DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE", inclusive, "para a adoção ou manutenção de medidas restritivas legalmente permitidas durante a pandemia".

Então, qualquer que seja a dicção de ambas as decisões da Suprema Corte, pelo modelo da separação de poderes, os órgãos legislativos de cada uma das pessoas políticas elaboram as leis pertinentes, e os respectivos chefes dos executivos podem, via de consequência, expedir os competentes decretos, sem que isso, em que pese o caráter de urgência, autorize, por exemplo, governadores e prefeitos a simplesmente regulamentarem a referida lei federal.

Ainda que se trate de competência legislativa sobre saúde pública ou vigilância sanitária, no dizer de Dalmo de Abreu Dallari, "o artigo 24 faz a enumeração de matérias sobre as quais a União, os Estados e o Distrito Federal poderão legislar concorrentemente, tendo-se acrescentado alguns parágrafos a esse artigo fixando regras visando prevenir o risco de conflitos que poderiam decorrer da hipótese de haver lei federal e outra dispondo sobre o mesmo assunto (…), sobretudo pelo fato de que a Constituição contém, no artigo 23, uma longa enumeração de matérias que são de competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios. Como é óbvio, aquele que é competente para cuidar de certa matéria será, forçosamente, obrigado a legislar sobre ela, pois toda participação do poder público deve ocorrer nos quadros da lei" (grifo dos autores).

Observe-se, outrossim, que as competências constitucionais comuns (artigo 23) e as concorrentes (artigo 24) diferem muito entre si, e só nos casos de competência legislativa concorrente (artigo 24) e competência suplementar (artigo 24, §2º, e 30-II) podem ser estendidas aos diversos entes da federação disposições de leis federais expedidas como "normas gerais"  hipótese em que não poderá haver contrariedade aos critérios minimamente estabelecidos (ADI 2.903/PB, RTJ 206/134, ADI 2.396 MC/MS, DJ 14-12-2001).

Portanto, é importante averbar que, apesar das distorções, o recente posicionamento do STF, consubstanciado na referida ADI 6.341/DF, nada mais fez do que deixar assentado ser constitucional a competência material comum entre os entes federativos, como "incumbência de natureza qualificadamente irrenunciável" (ADI 2.544 MC/RS, DJ 08-11-2002, ADI 2.544/RS, DJ 17-11-2006), cujas as novas "premissas teóricas" foram plasmadas no leading case – ADIN 4.060/SC (DJe 30-04-2015) para conciliar a unidade com a diversidade, passando a prestigiar as iniciativas de leis regionais e locais, surgindo, assim, a regra geral "para que cada ente federativo faça as suas escolhas institucionais e normativas, as quais já se encontram bastante limitadas por outras normas constitucionais materiais que restringem seu espaço de autonomia".

Desse modo, ao contrário da interpretação veiculada pelos meios de comunicação, o que foi prestigiado na recente decisão da Suprema Corte (ADI 6.341/DF) foi a autonomia dos demais entes políticos para editar "leis" sobre a mesma matéria objeto da Lei Federal nº 13.979/2020, e subsequentes "decretos" sobre os serviços públicos e atividades essenciais, considerando a partilha democrática das competências constitucionais com alicerces no chamado "federalismo cooperativo".

Na mesma assentada, a Suprema Corte rejeitou a alegação, embora relevante, da necessidade de reserva de lei complementar, ainda não editada, a qual poderia, aí sim, disciplinar a cooperação entre os entes federativos e, quem sabe, impedir descontroles e desperdícios de recursos públicos, desgastes políticos e superposições de funções idênticas, com vista ao equilíbrio e ao bem-estar nacional (CF. parágrafo único do artigo 23 da Carta Política).

Logo, diversamente do que propalado, a decisão do STF, ao enquadrar a temática examinada pela ADI 6.341/DF nesse especifico rol de competência constitucional comum (artigo 23-II), obrigaria, automática e imediatamente, os governadores e os prefeitos a buscar aprovações semelhantes de leis estaduais e municipais, caso desejassem seguir senda normativa diferente, sem vício de inconstitucionalidade ou ilegalidades. E isso porque na hipótese deveriam, necessariamente, ser observados os princípios da reserva legal e da distribuição de competências constitucionais, impossibilitando que decretos revogassem leis federais, no todo ou em parte, ou que esses "atos normativos secundários" substituíssem ou dispensassem leis regionais e locais aprovadas pelos respectivos órgãos legislativos, no dizer do voto proferido na ADI 2.075 MC/RJ, DJ 27-06-2003, relator ministro Celso de Mello:

"O princípio constitucional da reserva de lei formal traduz limitação ao exercício das atividades administrativas e jurisdicionais do Estado. A reserva de lei analisada sob tal perspectiva constitui postulado revestido de função excludente, de caráter negativo, pois veda, nas matérias a ela sujeitas, quaisquer intervenções normativas, a título primário, de órgãos estatais não-legislativos. Essa cláusula constitucional, por sua vez, projeta-se em uma dimensão positiva, eis que a sua incidência reforça o princípio, que, fundado na autoridade da Constituição, impõe, à administração e à jurisdição, a necessária submissão aos comandos estatais emanados, exclusivamente, do legislador. Não cabe, ao Poder Executivo, em tema regido pelo postulado da reserva de lei, atuar na anômala (e inconstitucional) condição de legislador, para, em assim agindo, proceder à imposição de seus próprios critérios, afastando, desse modo, os fatores que, no âmbito de nosso sistema constitucional, só podem ser legitimamente definidos pelo Parlamento. É que, se tal fosse possível, o Poder Executivo passaria a desempenhar atribuição que lhe é institucionalmente estranha (a de legislador), usurpando, desse modo, no contexto de um sistema de poderes essencialmente limitados, competência que não lhe pertence, com evidente transgressão ao princípio constitucional da separação de poderes" (grifo dos autores).

Na mesma seara de competência comum dos entes federativos para legislar sobre saúde pública, o Supremo já havia proclamado, em duas oportunidades, ao apreciar em processo sob o rito da Repercussão Geral (Tema 500 e Tema 793), a dicção do artigo 23, II, da Constituição, segundo a qual os critérios de descentralização não afastam a hierarquização, a cooperação e a responsabilidade solidária do Sistema Único de Saúde (SUS). Na ocasião, inclusive, foi feita abordagem sobre outro tema, o qual vem sendo muito debatido nos dias atuais: uso excepcional de medicamentos em caso de doenças raras:

"(…) No caso de medicamentos experimentais, sem comprovação científica de eficácia e segurança, e ainda em fase de pesquisas e testes, não há nenhuma hipótese em que o Poder Judiciário possa obrigar o Estado a fornecê-los. Isso não interfere com a dispensação desses fármacos no âmbito de programas de testes clínicos, acesso expandido ou de uso compassivo, sempre nos termos da regulamentação aplicável. (…) No caso de doenças raras e ultrarraras, é possível, excepcionalmente, que o Estado forneça o medicamento independentemente do registro. Isso porque, nesses casos, muitas vezes o laboratório não tem interesse comercial em pedir o registro" (RE 657718/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 22/5/2019 (Informativo 941, de 20 a 24 de maio de 2019).

O artigo continua na parte II

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