Opinião

Chega de abusos normativos e das autoridades estaduais e municipais — II

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10 de julho de 2020, 12h07

Continuação da parte I do artigo

Posteriormente, nos mesmos autos da Repercussão Geral tratada no RE 855.178 (Tema 793), em Embargos de Declaração, o STF resolveu, por maioria, dar redação mais abrangente à tese jurídica debatida, nos termos do voto do ministro Edson Fachin, relator para o acórdão:

"Os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro".

No citado precedente, o Colegiado também destacou o papel preponderante da União na gestão do SUS e de seus órgãos correlatos:

"CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PROCEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, Rel. Min. Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos" (RE 855178 ED/SE, Relator p/ Acórdão: Min. EDSON FACHIN, j. 23/05/2019, Pleno, DJe 15-04-2020).

Nesse sentido, o reconhecimento expresso da Suprema Corte, como demonstrado, de que o artigo 23, II, da Constituição Federal assegura a competência material comum das pessoas políticas federativas para "cuidar da saúde", e, independentemente da previsão legal de gestão compartilhada do SUS (artigos 14-A e 14-B da Lei nº 8.080/90, na redação data pela Lei nº 12.466/11), data venia, não afeta, muito menos minimiza, o papel da União, por intermédio do Ministério da Saúde, na implementação, na direção e na hierarquização do sistema, que, por óbvio, não pode se limitar, como querem alguns governadores e prefeitos, exclusivamente na dimensão e no ônus financeiros. Isso porque a mesma lei federal, aprovada pelo Congresso Nacional e examinada pela Suprema Corte, ao cuidar das atribuições especificas de coordenação e formulação superior do SUS, enumera aquelas que seriam próprias de direção nacional, deixando explícito também (parágrafo único do artigo 16 da Lei nº 8.080/90), a competência da União para as ações próprias nos casos de "agravos inusitados à saúde" ou representem "risco de disseminação nacional".

 

E o que se poderia chamar de antevisão normativa e jurisprudencial dos poderes constitucionais da União não se revela só na inédita e recente decisão do STF que versa sobre o uso de medicamentos "sem comprovação científica de eficácia e segurança", mas, com maior ênfase, nas alterações e nas releituras da Lei do SUS, discorrendo, inclusive, sobre os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas a serem adotados para todo o sistema de saúde pública do país (CF. artigos 19-O e 19-Q da Lei nº 8.080/90, na redação data pela Lei nº 12.401/11).

 

Data venia, o que causa mais surpresa não é o nível de detalhamento, a antevisão e a atualidade das normas há muito aprovadas pelo Congresso Nacional, mas, ao revés, o injustificável desconhecimento de tais enunciações normativas e jurisprudenciais em praticamente todos os enfadonhos, cansativos, repetitivos e estéreis debates, veiculações e mensagens transmitidas à população, justamente por quem deveria informar e esclarecer correta e adequadamente, quando, em tese, ficariam afastados os incontáveis escândalos e manchetes desses mesmos meios de comunicação.

Aliás, veja-se que, nos termos do §7º do artigo 3º da Lei nº 13.979/2020, os gestores locais de saúde só poderiam adotar: isolamento (inciso I); quarentena (inciso II); exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver (inciso V); restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de entrada e saída do país e de locomoção interestadual e intermunicipal (inciso VI) e autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa (inciso VIII), desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, resguardados (cf. § 8º do artigo 3º da referida Lei) "o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais".

Seria inidôneo e extravagante pensar que só o presidente da República teria que se sujeitar a eventuais contribuições, alterações e inovações decorrentes do processo legislativo constitucional e da própria discricionariedade técnico-sanitária do Ministério da Saúde, dispensando-se os governadores e os prefeitos de igual sujeição nas respectivas esferas para dispor, simplesmente por meio de decretos, sobre todas as medidas de combate à Covid-19, sem vinculação alguma às leis federais do SUS e, na maioria das situações regionais e locais, nem ao menos às leis estaduais e municipais específicas.

É de se ter também presente que, não obstante as matérias de competência material comum seguirem o rito da sanção e da regulamentação pelos chefes dos poderes executivos, cada esfera política deve observar os condicionamentos e as escolhas normativas impostas pelas próprias casas legislativas, inclusive para não incorrerem em ofensa ao princípio da legalidade. Afinal, diferentemente do particular, que detém ampla liberdade para fazer "tudo o que não prejudica ao outro", a Administração Pública só pode agir e fazer o que a lei, formalmente aprovada pelo Poder Legislativo, prevê, permite e autoriza. Tanto que toda e qualquer atuação do poder público (artigo 37 da Constituição Federal) deve estar estritamente vinculada ao princípio constitucional da legalidade, sem que caiba a nenhum agente público realizar atividade, decidir, restringir direitos ou exigir cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer "sem expresso amparo legal".

Com isso, os chefes dos poderes executivos estaduais e municipais se atribuíram poderes antidemocráticos e superiores aos da própria Constituição Federal e das leis federais acima citadas. E, curiosamente, passaram a se orgulhar de tudo isso, com o apoio da grande mídia, em flagrante e odioso desprezo à regra máxima, solene e democrática de que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (artigo 5º, II, da Constituição Federal), bem como ao pressuposto inafastável de que as normas constitucionais de repartição de competências federativas se referem às leis a serem aprovadas pelos órgão legislativos (RE 194.704/MG, Pleno – DJe 16-11-2017).

Por sua vez, a referida Lei nº 13.979/2020, de fato, não previu expressamente a delegação de tais competências exclusivas conferidas apenas ao Ministério da Saúde (artigo 3º, §7º), sem prejuízo de terem sido previstos (artigo 7º) atos de regulamentação e operacionalização do disposto da citada lei.

Vale dizer, tratando-se de funções específicas do órgão federal, e na falta de previsão de eventual delegação aos demais órgãos setoriais locais de saúde, a questão ficou sujeita às normas gerais da Lei nº 9.784/1999 (CF. artigos 11 a 14), em que consta, de modo expresso, a irrenunciabilidade de qualquer competência legalmente atribuída (artigo 11) e a delimitação da possibilidade de delegação (artigo 12) apenas no caso de "funções genéricas e comuns de administração", seguindo-se de impedimento absoluto (artigo 13-III) nos casos de "matérias de competência exclusiva".

De qualquer maneira, ainda que não fosse essa a melhor interpretação, a legislação federal (artigo 14) previu que "o ato de delegação e sua revogação deverão ser publicados no meio oficial".

Logo, passível de razoável dúvida, e de questionável legalidade, a delegação genérica de tais funções especificas (CF. artigo 4º, §1º, da Portaria nº 356, de 11 de março de 2020).

Portanto, não se poderia, com base no princípio da descentralização administrativa, inovar no ato infralegal de regulamentação ministerial para criação ou alteração de regras e competências legais, conferindo atribuições a outros órgãos ou autoridades de maneira diversa da prevista em lei. Isso só seria possível se houvesse alteração do texto legal ou, ao menos, previsão expressa de delegação. Até na lei delegada (artigo 68, §2º, da Constituição Federal), editada e dirigida ao Chefe do Executivo, deve estar expressamente previsto o poder de inovar e impor, por conta própria, obrigação, dever ou restrição, na "resolução do Congresso Nacional, que especificará seu conteúdo e os termos de seu exercício".

Por conseguinte, apesar da notória complexidade em tema de saúde pública, majoritário tem sido o posicionamento segundo o qual as competências e as funções atribuídas em disposição legal específica não podem ser modificadas na sua posterior regulamentação.

Fácil, então, de se verificar que os entes subnacionais deixaram de cumprir o disposto no artigo 3º, §7º, da Lei nº 13.979/2020, ao mesmo tempo em que, por razões não explicitadas na citada regulamentação, o Ministério da Saúde abriu mão de competência administrativa irrenunciável, deixando, a propósito, de observar as normas legais de delegação e avocação legalmente admitidas (artigo 11 da Lei nº 9.784/99).

Na realidade, as questionadas disposições regulamentares incrustadas em decretos autônomos de governadores e prefeitos por certo não se revestem de competência normativa e nem se caracterizam como amparo legal a que se refere o artigo 33 da Nova Lei de Abuso de Autoridade (Lei n° 13.869/2019), em que pese, pela generalidade, abstração e impessoalidade tenham afetado, com intensidade, a população local, incluindo, especialmente, empresários, empregados, trabalhadores autônomos e demais instituições públicas e privadas, sem falar na grave ocorrência do citado crime no tocante a policiais militares, agentes de trânsito e guardas civis.

Diante das iniciativas destoantes e inconstitucionais de governadores e prefeitos, muito pouco se vê de reação por parte da comunidade jurídica, diante de constantes abusos, entre os quais aceitar o poder regulamentar diretamente da Constituição, quando o decreto vem a invadir a competência material comum ou legislativa concorrente e suplementar reservada a lei aprovada pelo Poder Legislativo.

É hora de nos posicionarmos e dizer: chega de abusos normativos e das autoridades estaduais e municipais.

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