Opinião

Planos de saúde não podem negar contratação a idosos e enfermos

Autor

  • Vinícius G. F. Jallageas de Lima

    é advogado mestrando em Direito Processual Civil pela USP especialista Direito Processual Civil pela PUC-SP em Direito Imobiliário pela FGV-SP em Direito Médico e Hospitalar pela EPD sócio e fundador de Vinícius Jallageas Advocacia.

9 de julho de 2020, 17h12

Inescondível que, em tempos de pandemia, mudanças vêm ocorrendo, de maneira abrupta e repentina, em diversos ramos e tipos de serviços, nos seus mais variados segmentos, decorrente de alterações quanto a oferta de produto no mercado e a forma pela qual os serviços serão prestados, colocando, assim, os consumidores em uma situação de hipervulnerabilidade.

Com isso, algumas operadoras, pela ótica empresarial, analisando tão somente a questão financeira e comercial, têm aproveitado esse sensível momento pandêmico para retirar seus produtos de comercialização do mercado, leia-se, oferta de planos de saúde individual, coletivo por adesão ou coletivo empresarial.

Estaria correta essa conduta praticada pelas operadoras de planos de saúde? Além disso, as operadoras estariam obrigadas ou poderiam se negar a fornecer referidos serviços para idosos e pessoas enfermas e com comorbidades? Ou seja, as operadores têm o direito de escolher os riscos que irá correr durante e após a contratação?

Em relação à primeira pergunta, parece-me que esse comportamento adotado pelas operadores não seria justificável, sobretudo por infringir o §2º do artigo 10 da Lei 9.656/98:

"Artigo 10  É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no artigo 12 desta Lei, exceto:

(…)

§2o. As pessoas jurídicas que comercializam produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do artigo 1o desta Lei oferecerão, obrigatoriamente, a partir de 3 de dezembro de 1999, o plano-referência de que trata este artigo a todos os seus atuais e futuros consumidores".

Por meio de uma simples leitura do aludido dispositivo, denota-se que todas as operadores que comercializam produtos registrados na ANS devem oferecer o plano referência aos seus atuais e futuros consumidores.

Somente a título de elucidação, importante esclarecer que o plano referência foi instituído pela Lei nº 9.656/98 e engloba a assistência médico-ambulatorial e hospitalar com obstetrícia e acomodação em enfermaria. Sua cobertura mínima também foi estabelecida pela lei, devendo o atendimento de urgência e emergência ser integral após as 24 horas da sua contratação [1].

Portanto, denota-se pela impossibilidade das operadoras, inclusive neste atual cenário, em retirar qualquer tipo de plano de saúde anteriormente ofertado no mercado, com base no argumento de "caso fortuito e força maior", decorrente da pandemia, a qual teria desencadeado maior utilização dos consumidores destes tipos de serviços e, com isso, acarretado suposto prejuízo financeiro para as operadoras.

Partindo para a resposta da segunda pergunta, parece-me também abusiva e ilegal a postura de operadoras ao se valerem da seleção de risco para qualquer tipo de contratação (idoso e enfermos/portadores de comorbidades), pois essa conduta infringe: I) o artigo 14 da Lei 9.656/98; e  II) a súmula normativa 27 da ANS e, por fim, o entendimento já esposado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

O artigo 14 da Lei. 9.656/98 estabelece que:

"Artigo 14  Em razão da idade do consumidor, ou da condição de pessoa portadora de deficiência, ninguém pode ser impedido de participar de planos privados de assistência à saúde".

Nesse sentido, o artigo 39, inciso IX, do Código de Defesa do Consumidor também reputa como indevida a recusa a venda de bens ou a prestação de serviços diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento.

A fim de dar concretude aos referidos dispositivos legais, nessa mesma linha intelectiva de raciocínio a ANS editou a súmula normativa 27:

"É vedada a prática de seleção de riscos pelas operadoras de plano de saúde na contratação de qualquer modalidade de plano privado de assistência à saúde.

Nas contratações de planos coletivo empresarial ou coletivo por adesão, a vedação se aplica tanto à totalidade do grupo quanto a um ou alguns de seus membros.

A vedação se aplica à contratação e exclusão de beneficiários".

Nessa direção, caminhou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

"APELAÇÃO – Plano de saúde – Sentença condenou a ré a contratar plano de saúde com a apelada, incluindo portadores de doenças preexistentes – Infundadas alegações acerca de violações aos artigos 421, 422 e 2.035, parágrafo único, do CC e ao princípio da autonomia da vontade – Liberdade de contratação mitigada, nos casos envolvendo a área de saúde – Inteligência do artigo 14 da Lei nº 9.656/98 e Súmula nº 27 da ANS – Injustificada recusa de contratação, por parte da apelante – Sentença mantida – Majoração de honorária nos termos do artigo 85, §11, do CPC – Recurso desprovido" (TJ/SP, Apel. nº. 1012558-27.2018.8.26.0011, Des. Rel. Costa Netto, 6ª Câmara de Direito Privado, j. em 06.12.2019 – grifo do autor).

Logo, por qualquer prisma que se analise, reputa-se ilegal e abusiva a conduta de operadoras que neguem a oferta de planos de saúde e contratação de consumidores idosos e enfermos com base no frágil e perfunctório argumento da seleção de risco.

Nem se cogite ainda eventual recusa de contratação por parte da operadora com base no argumento de que o cliente possui comorbidades, haja vista a existência de mecanismos previsto em lei para a mitigação de riscos por parte das operadoras de planos privados de assistência à saúde, permitindo-se, quando for o caso, apenas a aplicação de carência, cobertura parcial temporária CPT e agravo.

Conclui-se, portanto, inicialmente que não podem as operadoras, por mera deliberalidade, sobretudo em tempos de pandemia, retirar seus produtos do mercado comercial.

Da mesma forma, também não podem as operadoras se valerem da seleção de risco para escolher seus futuros clientes, pois diferente do que ocorre em outras profissões, como por exemplo nas relações entre advogado e cliente, médico e paciente, a operadora de plano de saúde não possui a faculdade de negar qualquer tipo de contratação, independentemente da situação clínica e de idade do consumidor, mas pelo contrário, possui o dever de ofertar o produto e formalizar a contratação, mesmo se tratando de consumidor idoso, enfermo ou com comorbidade.

Mesmo assim, caso referidas ilegalidades sejam perpetradas pelas operadoras de planos de saúde, de rigor o recrudescimento da rede de proteção consumerista, razão pela qual o lesado deverá fazer valer seus direitos, por meio de um advogado especialista na área, objetivando receber o atendimento a um serviço isonômico e justo, evitando, assim, a perpetuação de qualquer abuso de direito praticado por referidas empresas.

Autores

  • é advogado, sócio e fundador do escritório Vinícius Jallageas Advocacia, mestrando em Direito Processual Civil pela USP, pós-graduado em Direito Processual Civil pela PUC-SP, em Direito Imobiliário pela FGV-SP e em Direito Médico e Hospitalar pela EPD.

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