Opinião

A revogação das súmulas 5 e 7 do STJ e os leading cases do artigo 927 do CPC

Autores

  • Lisiane Valéria Linhares Schmidel

    é advogada consultora mestranda em Direito pela Fadisp sócia-fundadora da Schmidel & Associados Advocacia pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (RJ) e em Direito Empresarial Negocial e do Consumidor pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado de Mato Grosso. É membro do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas.

  • Alan Vagner Schmidel

    é advogado consultor e mestrando em Direito pela Fadisp.

9 de julho de 2020, 6h34

Desde a edição das Leis Federais 11.418/2006 e 11.672/2008, criando os recursos especiais repetitivos e extraordinários com repercussão geral, o sistema jurídico brasileiro, adepto do civil law, tem se forçado a importar conceitos do método common law para implantação dessa sistemática.

A Lei Federal 13.105/2015, ao inaugurar a reforma completa do sistema processual civil brasileiro, positivou na legislação infraconstitucional a lógica jurídica do sistema de precedentes do método common law em seu artigo 926 e, no artigo 927, III, elegeu como leading cases de observância obrigatória os acórdãos decididos nos recursos especiais repetitivos e extraordinários com repercussão geral, para matérias de legislação infraconstitucional e constitucional, respectivamente.

A doutrina norte-americana (GARNER et al., 2016, p. 175, tradução livre) nos ensina que no conceito de leading case: "(…) Esses casos estabelecem princípios que atribuíram um tipo de status inatacável … No cenário instável da lei comum, os principais casos servem como guias essenciais para ajudar os tribunais a encontrar o caminho" [1].

E o leading case, portanto, é o julgamento representativo que serve de precedente para casos semelhantes, pois, como adverte GARNER et al. (2016, p. 21), "nosso sistema de precedentes busca consistência para garantir que problemas legais recorrentes sejam tratados da mesma forma serão tratados igualmente" (tradução livre e grifo dos autores) [2].

Esse sistema de julgamentos reiterados formando precedentes de estabilidade foi observado por Alexis de Tocqueville (1835)/(2005, p. 115/116) como a força-motriz de controle da discricionariedade judicial no papel político do Poder Judiciário norte-americano realizado pelo controle da constitucionalidade das leis:

"Os americanos confiaram pois a seus tribunais um imenso poder político, mas obrigando-os a só criticar as leis por meios judiciários, diminuíram muito os perigos desse poder.

Mas, quando o juiz critica uma lei num debate obscuro e sobre uma aplicação particular, oculta em parte a importância do ataque aos olhos do público. Sua decisão tem por objetivo unicamente atingir um interesse individual; a lei só é ferida por acaso.

De resto, a lei assim censurada não é destruída: sua força moral é diminuída, mas seu efeito material não é suspenso. Somente pouco a pouco e sob os golpes repetidos da jurisprudência é que ela sucumbe.

Nesse sistema, ela não é exposta às agressões cotidianas dos partidos. Assinalando os erros do legislador, obedece a uma necessidade real, parte-se de um fato positivo e apreciável, pois deve servir de base a um processo" (grifos dos autores).

Esse imenso poder político atribuído ao Poder Judiciário era impensável no século XIX nos países europeus pós-Revolução Francesa, com o seu império das leis, mas subsistia de forma louvável através do controle dos precedentes vinculantes, à medida que os casos semelhantes eram resolvidos de forma semelhante, com a censura inconstitucional das leis e atos estabelecida pela necessidade real dos casos concretos que a justificavam reiteradamente.

A consequência inerente da política de precedentes vinculantes, no entanto, verifica-se na correta extração do raciocínio jurídico da decisão, que é "a distinção entre holding e dicta: apenas a parte do raciocínio de uma opinião que é necessário para o julgamento é vinculativo para os tribunais futuros" [3] (SCHMIDT, Thomas P. & KATYAL, Neal Kumar, 2015, p. 2.124, tradução livre e grifo dos autores).

O raciocínio jurídico vinculante, chamado holding, representa o precedente vinculante para os casos semelhantes, e "questões difíceis surgem quando se trata de decidir o que significa dois casos serem 'parecidos'" [4] (GARNER et. al., 2016, p. 21, tradução livre)

A verificação da identidade do caso em exame frente ao precedente investigado não exige a identidade absoluta dos fatos, mas apenas a similaridade substancial fática, ou seja, a investigação da substantially similar facts:

"Para que uma decisão seja precedente para outra, os fatos em dois casos não precisam ser idênticos. Mas eles devem ser substancialmente semelhantes, sem diferença material. Sobre questões de construção em que nenhuma regra arbitrária está envolvida, é sempre mais importante considerar as palavras e as circunstâncias do que até fortes analogias em decisões anteriores. Em resumo, regras transmogrificadas ao longo do tempo como semelhanças ou diferenças são amplificadas nas opiniões dos juízes, ou também diminuídas" [5] (GARNER et. al., 2016, p. 92, tradução livre).

E justamente pela inerente necessidade de investigação das circunstâncias fáticas que identificam a similaridade substancial entre o leading case dos temas repetitivos do Superior Tribunal de Justiça, o artigo 927, III, do Código de Processo Civil revogou nessas hipóteses as súmulas 5 e 7, que impedem o reexame de fatos ou interpretação de cláusulas contratuais para análise do recurso especial.

Essas súmulas foram expedidas em 21 de maio e 28 de junho de 1990, respectivamente, portanto, sob regras processuais que não autorizavam a veiculação do recurso especial para questionar a não aplicação de leading cases estabelecidos pelo Superior Tribunal de Justiça ou pelo Supremo Tribunal Federal.

A Corte Especial recentemente impediu a utilização do procedimento da reclamação para impugnar a não aplicação de leading cases pelas instâncias ordinárias, estabelecendo o exaurimento da instância ordinária provocada para tal análise:

"A investigação do contexto jurídico-político em que editada a Lei 13.256/2016 revela que, dentre outras questões, a norma efetivamente visou ao fim da reclamação dirigida ao STJ e ao STF para o controle da aplicação dos acórdãos sobre questões repetitivas, tratando-se de opção de política judiciária para desafogar os trabalhos nas Cortes de superposição. Uma vez uniformizado o direito, é dos juízes e tribunais locais a incumbência de aplicação individualizada da tese jurídica em cada caso concreto" (Recl 36.476/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, DJe 6/3/2020).

Dessa forma, a conclusão inegável será a ocorrência da violação do artigo 927, III, do Código de Processo Civil, sempre que um tribunal recursal deixar ilegalmente de aplicar leading cases definidos pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal.

Portanto, para o Superior Tribunal de Justiça investigar a violação dessa regra processual no recurso especial, será ilícito invocar os óbices processuais das súmulas 5 e 7, que são incompatíveis com a doutrina da substantially similar facts, indispensável para o juízo de identidade ou distinção do precedente vinculante com o caso reportado em juízo.

Referências bibliográficas
BRASIL. Lei 11.418, de 19 de Dezembro de 2006. Acrescenta à Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, dispositivos que regulamentam o § 3º do artigo 102 da Constituição Federal (2006). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11418.htm. Acesso em 4 jul. 2020.

_______. Lei 11.672, de 8 de Maio de 2008. Acresce o artigo 543-C à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, estabelecendo o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (2008). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11672.htm. Acesso em 4 jul. 2020.

________. Lei 13.105, de 16 de Março de 2005. Código de Processo Civil. (2016). Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13105.htm. Acesso em 4 jul. 2020.

GARNER, A. Bryan et al. The Law of Judicial Precedent. 1ª Edição – New York: Thomson Reuters, 2016.

SCHMIDT, Thomas P. & KATYAL, Neal Kumar. Active Avoidance: The Modern Supreme Court and Legal Change. Harvard Law Review. Cambridge: v. 128, 2015, p. 2.109/2.165. Disponível em: <https://harvardlawreview.org/wp-content/uploads/2015/06/vol128_katyalschmidt.pdf>. Acesso em 20/09/2019.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A DEMOCRACIA NA AMÉRICA: Leis e Costumes. De certas leis e costumes políticos que foram naturalmente sugeridos aos americanos por seu estado social democrático. Tradução de Eduardo Brandão. 2ª Edição – São Paulo: Martins Fontes, 2005.

 


[1] These cases establish principles that have atteained a kind of unassailable status. … In the shifting landscape of the common law, leading cases serve as essential guideposts to help courts find ther way.

[2] Our system of precedente seeks consistency to ensure that recurrent legal problems will be dealt with similarly – will be treated equally.

[3] the distinction between holding and dicta: only that part of the reasoning of an opinion that is necessary to the judgment is binding on future courts

[4] Hard questions arise when it comes to deciding what it means for two cases to be "alike".

[5] For one decision to be precedent for another, the facts in two cases need no be identical. But they must be substantially similar, without material difference. … "Upon questions of construction when no arbitrary rule is involved, it is always more important to consider the words and the circumstances than even strong analogies in earlier decisions" … In short, rules are transmogrified over time as similarities or dissimilarities are amplified in judges opinions, or else diminished.

Autores

  • é sócia-fundadora da Schmidel & Associados Advocacia, pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (RJ) e em Direito Empresarial, Negocial e do Consumidor pela Fundação Escola do Ministério Público do Estado de Mato Grosso. É membro do Instituto Brasileiro de Práticas Colaborativas.

  • é advogado, consultor, e mestrando em Direito pela Fadisp.

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