Opinião

A importância da delação premiada no combate à pornografia infantil

Autores

  • Víctor Gabriel Rodríguez

    é professor livre-docente de Direito Penal da Universidade de São Paulo (USP) membro do Prolam/USP autor do livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado com versão ibero-americana pela Ed. Temis (Colômbia e Argentina) e bolsista da Fundación Carolina/España para professor convidado na Universidad de Granada e pela Capes na Autónoma de Madrid.

  • Carolina Christofoletti

    é graduanda em Direito Penal da USP intercambista na Universidade de Freiburg (Alemanha) e bolsista na USP.

9 de julho de 2020, 19h23

A internet tem o potencial de facilitar o consumo de pornografia infantil, espalhando material por todo o planeta, e na América Latina ocorre grande parte da faceta mais sensível dessa conduta: a necessária produção de materiais pornográficos, os quais muitas vezes são registro de delitos sexuais de altíssima gravidade. Progressivamente os instrumentos de repressão do Estado começam a tentar conter tal fluxo, porém com insuficiente eficácia: a persecução a esse tipo de delito demanda alto grau de conhecimento desse verdadeiro submundo, que é, ao mesmo tempo, hermético e fluido. Quer pelo modo de ação dos consumidores e alimentadores de pornografia, quer pelos sofisticados meios informáticos de que se utilizam, os filtros comuns de internet são impotentes para levar as autoridades aos chamados "clubes" de pornografia infantil. A delação premiada, mesmo com todos seus dilemas éticos, transforma-se em instrumento imprescindível para romper essa cadeia de consumo. Tentamos comprová-lo a partir do relato e da análise de alguns casos paradigmáticos.

Recentemente: o caso de Bergisch Gladbach
Em meados de abril de 2020, já em tempos de pandemia, a polícia alemã se depara com um caso que estamparia, pelos meses seguintes, as manchetes dos principais jornais nacionais. Dois homens estariam, entre 2015 e finais de 2019, operando um "complexo de abusos sexuais de menores", na cidade de Bergisch Gladbach. Tratava-se de uma confraria que se formara a partir de encontros casuais em fóruns de internet, cujos integrantes passaram a reunir-se periodicamente para praticar atos sexuais com menores [1]. A investigação do caso desemboca, por fim, em um clube mais amplo, especializado em armazenar, em grande quantidade, material pornográfico infantil.

Conta a polícia europeia que conseguiu desbaratar esse grupo porque um dos suspeitos ofertava dicas de sua identidade [2], porém o grande volume de material apreendido sempre sugere existência de muitos outros partícipes, que não foram alcançados. O caso Bergisch Gladbach para nós é paradigmático não apenas por sua magnitude, mas porque revela uma mecânica comum às redes de pornografia infantil: sua capilarização, com técnicas avançadas de anonimato. Aparentemente, as pistas sobre a existência do clube vieram de Estados Unidos e Canadá, onde as autoridades de depararam com endereços de IPs suspeitos e com um chat possivelmente relacionado a tipo de material ilícito [3]. Investigar um fórum de pornografia, dirão os especializados, é como montar um quebra-cabeça: as peças não se unem diretamente e os indícios relevantes estão espalhados em pequenos e misturados fragmentos [4]. Sem uma informação interna, é quase impossível deparar-se com a verdadeira fonte desses materiais.

A eficácia nas investigações
Se assumimos que, nesses casos de pornografia infantil, são as imagens e seus hospedeiros o foco a ser combatido em Direito Penal, em lugar dos consumidores em si mesmos, pode-se renunciar a grande parte da pena destes, caso venham a ser um instrumento de colaboração. Eles superariam os enormes obstáculos para identificação dos clubes, sobre os quais temos dissertado em outros trabalhos, mas que aqui cabe sintetizar em quatro pontos: 1) a dificuldade de romper a criptografia dos materiais; (2) a impossibilidade de deparar-se com os verdadeiros IPs dos computadores que distribuem o material, por sistemas de ocultação; 3) as barreiras, inclusive legais, a agentes infiltrados; e 4) os avançados instrumentos de autodestruição dos clubes ao mero sinal de perigo de invasão (os botões de pânico).

1) Exemplo de criptografia foi o conhecido Clube País das Maravilhas (Wonderland)[ 5]. Um clube pornográfico com impressionante quantidade de material, somente era acessível através do convite de um membro interno [6].Para os não convidados, o material mantinha-se sob forte proteção criptográfica. Conforme dados fornecidos pelo sistema de inteligência americano, não fora a ajuda de um dos membros internos do Wonderland, seriam necessários não menos que 40 anos [7] para as autoridades policiais romperem os códigos-clave [8]. Tempo que, claro, inviabiliza qualquer persecução penal.

2) A identificação dos membros do clube via IP dos computadores é também dificílima. Sistema como o TOR, hoje, mesclam caminhos na rede, proporcionando total anonimato do usuário. Esses programas estão abertos hoje aos particulares.

3) Se a quebra da criptografia e a identificação dos IPs não representam instrumentos férteis, a infiltração de agentes do Estado é, igualmente, alternativa de duvidosa eficácia. Os clubes mais complexos exigem que qualquer candidato à confraria comprove, antes de seu ingresso, ser um produtor ou possuidor em massa de material pornográfico. Basta dizer que, nesse referido Wonderland, a entrada de um novato era autorizada quande ele apresentasse a postagem de 10 mil  [9] novos materiais para os veteranos. A exigência mira a uma dupla função: se, de um lado, é um método de o clube ganhar material para seguir sua cadeia produtiva, de outro funciona como eficaz barreira para os undercovers do Estado: nenhum policial se infiltra no clã antes de tornar-se, para muito além de infiltrado, um agente provocador, ao fornecer ingente quantidade de imagens infantis.

4) Não bastassem esses métodos, há fortes evidências de que os clubes contam com uma tecnologia de autodestruição que impede seguir vestígios digitais. Como em um sistema de autofagia protetiva, a mínima suspeita de um monitoramento externo do clube pode acionar um "botão de pânico", que, via uma sofisticada estratégia informática, destrói as pastas de arquivos e rapidamente transporta o material a outros dispositivos, novamente apagando rastros. O País das Maravilhas, por exemplo, era designado por seus membros por W0nderland, escrito com 0 (zero) em lugar de um O [10]. Seus membros sabiam que, se a palavra fosse digitada com essa grafia em um buscador de internet, estavam sob risco de invasão, funcionado-lhes como alerta para que todo o grupo cambiasse totalmente sua localização.

Os clubes em cadeia
Se o potencial tanto dos buscadores de internet quanto da infiltração de agentes é bastante baixo, algum histórico pode comprovar que as informações internas dos membros, arrependidos ou em busca de vantagens penais, detém eficácia. Caso aqui se permita uma narrativa bem breve, note-se o caso do Clube da Orquídea, de 1996: após a denúncia de uma garota de dez anos de que seu abuso sexual teria sido filmado, um suspeito foi preso na Califórnia, EUA. Aparelhos de gravação de vídeo e um grande acervo de pornografia infantil foram apreendidos junto ao suspeito. Do caso, descobre-se que este era parte desse Orchid Club [11], um grupo de pornografia infantil que estava ligado a outro através da cooperação de um dos participantes [12]: a partir dela é que se desvelou o já referido País das Maravilhas (1998). Durante a investigação de outro clube, o Mesa Redonda [13], emergiram, igualmente, três outros membros do mesmo País das Maravilhas.

Por sua vez, um dos membros do País das Maravilhas facilitou a descoberta de outro potente clube: o Nosso Lugar [14]. Quase duas décadas depois, declaradamente por "fontes anônimas", as autoridades americanas alcançam um suspeito que administrava ainda outro clube altamente populoso de pornografia infantil: Bem-vindo ao Vídeo (2019) [15], pelo qual se descobriram ainda outras duas importantes confrarias. Uma cadeia de autocooperação e confiança recíproca, pelo que se nota, bastante clara.

Delação premiada e cautelas éticas
Faltam dados exatos para saber-se o quanto realmente cada membro contribuiu, após ser incautado e incriminado, com revelações de segredos de seus clãs, ainda que por declarações informais, porém as evidências de que as informações principais às autoridades brotam desses insiders não são tão poucas. E o fato de que esses clubes são encadeados, isso sim, está amplamente comprovado. Logo, se consideramos, de um lado, a gravidade do crime e as dificuldades, aqui expostas, de sua investigação, o investimento em um programa de delação premiada para os usuários incriminados seria uma estratégia eficaz.

Porém, como temos sempre feito notar, qualquer programa de delação não vale por si mesmo, e deve rechear-se de cautelas. No caso concreto, é imprescindível que o delito de posse de pornografia infantil seja legitimado por si mesmo, para que não se torne um instrumento [16] punitivo destinado apenas a alcançar os verdadeiros traficantes ou produtores de imagem, à custa da incriminação de alguém que, por escala de valores, deveria ser um indiferente penal. Mais, caso seja considerada realmente legítima a incriminação da posse, que se preserve um mínimo de punição ao possuidor-delator, a fim de que o efeito da contribuição seja templada. Por outro lado, um programa de fomento a denunciar a autoridades a existência dos clubes, sem qualquer prêmio ao delator, não seria em vão, visto que também há indícios de que os membros desses ocultos clubes seguem regras éticas internas que ensejam punições e cizânias internas. Seria o desenvolvimento de uma speak up culture a partir do próprio grupo, mas esse é assunto para reflexão em outro espaço.

A delação premiada traz muitos riscos éticos, mas uma equilibrada utilização, no caso específico, pode ajudar a vencer a guerra contra os clubes de pornografia infantil.

 


[1] Zwei Männer sollen Tochter und Nichte missbraucht haben. Prozessbeginn im Fall Bergisch Gladbach. Spiegel Online. 19/4/2020. Acesso em: 3 de julho de 2020. Disponível em: https://www.spiegel.de/consent-a-?targetUrl=https%3A%2F%2Fwww.spiegel.de%2Fpanorama%2Fjustiz%2Ffall-bergisch-gladbach-zwei-maenner-sollen-tochter-und-nichte-missbraucht-haben-a-0c8d04d2-8c4b-414d-9852-250454c831d8

[2] Zwei Männer sollen Tochter und Nichte missbraucht haben. Prozessbeginn im Fall Bergisch Gladbach. Spiegel Online. 19/4/2020. Acesso em: 3 de julho de 2020. Disponível em: https://www.spiegel.de/panorama/justiz/fall-bergisch-gladbach-zwei-maenner-sollen-tochter-und-nichte-missbraucht-haben-a-0c8d04d2-8c4b-414d-9852-250454c831d8

[3] Wie die Polizei Pädokriminelle aufspürt. Süddeutsche Zeitung. 2/7/2010. Acesso em: 03.02.2020. Disponível em: https://www.sueddeutsche.de/panorama/missbrauch-bergi sch-gladbach-polizei-1.4954394

[4] Wie die Polizei Pädokriminelle aufspürt. Süddeutsche Zeitung. 02.07.2010. Acesso em: 03.02.2020. Disponível em: https://www.sueddeutsche.de/panorama/missbrauch-bergi sch-gladbach-polizei-1.4.954394

[5] Technological level of Wonderland network shocked all investigators. The Irish Times. 3 de setembro de 1998. Acesso em: 3 de julho de 2020. Disponível em: https://www.irishtimes.com/news/technological-level-of-wonderland-network-shocked-all-investigators-1.189298

[6] Girl, 8, raped to order on the internet. Telegraph. 14 de fevereiro de 2001. Acesso em: 02 de julho de 2020. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/uknews/1322551/Girl-8-raped-to-order-on-the-internet.html

[7] Pervert who ran infamous 'wonderland' child porn network caught looking at sick images in Old Trafford library. Manchester Evening News. 25 de março de 2011. Acesso em: 03 de julho de 2020. Disponível em: https://www.manchestereveningnews.co.uk/news/local-news/pervert-who-ran-infam%20ous-wonderland-857088

[8] Technological level of Wonderland network shocked all investigators. The Irish Times. 3 de setembro de 1998. Acesso em: 3 de julho de 2020. Disponível em: https://www.irishtimes.com/n%20ews/technological-level-of-wonderland-network-shocked-all-investigators-1.189298

[9] Girl, 8, raped to order on the internet. Telegraph. 14 de fevereiro de 2001. Acesso em: 02 de julho de 2020. Disponível em: https://www.telegraph.co.uk/news/uknews/1322551/Girl-8-rape%20d-to-order-on-the-internet.html

[10] How police smashed child porn club. CCN. 13 de fevereiro de 2020. Acesso em: 3 de julho de 2020. Disponível em: https://edition.cnn.com/2001/WORLD/europe/UK/02/13/paedophile.police/%20index.html

[11] Police found abuse being broadcast live. The Irish Times. 7 Setembro 1996. Acesso em: 15 de junho de 2020. Disponível em: https://www.irishtimes.com/culture/police-found-abuse-being-broadcast-live-1.83847

[12] S. Walls, D (2009). Crime and Deviance in Cyberspace. 1st Edition. Routledge. Acesso em: 15 de junho de 2020. Sem página, versão online

[13] Disgrace follows child porn bust. Associated Press. 7 de Novembro de 1998. Acesso em 16 de junho de 2020. Disponível em: http://www.ishipress.com/wonderla.htm

[14] Carr, I. (2009). Computer Crime. Routledge. p. 72

[15] How one brave 16-year-old girl helped cops nail Matthew Falder, Britain’s "worst" pervert. The Sun. Fevereiro, 2018. Acessado em: 15 de junho de 2020. Retrieved from: https://www.thesun.co.uk/news/5629159/matthew-falder-was-caught-by-nca-gchq-and-16-year-old-girl/

[16] Sobre instrumentalização do indivíduo na delação premiada, vide nosso RODRÍGUEZ, Víctor Gabriel, Delação Premiada: limites éticos ao Estado, RJ: GenForense, 2019, especialmente capítulo 2.

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