Interesse Público

A recomendação necessária expedida pelo CNMP

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9 de julho de 2020, 8h03

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), por intermédio de seu presidente e de seu corregedor nacional, expediu recentemente recomendação aos ramos e às unidades do Ministério Público brasileiro de "critérios de atuação na fiscalização de políticas públicas". Trata-se da Recomendação nº 02/2020-CGNMP, que teve recepção controvertida nos tempos atuais em que conselhos, advertências e lições são recebidos com ressalvas. O ato traz exortações aos membros do MP relativas aos limites de suas funções institucionais, "evitando-se a invasão indevida das atribuições alheias e a multiplicação dos conflitos daí resultantes".

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Neste artigo, centrarei minha atenção no disposto no artigo 2º da referida Recomendação:

"Art. 2º Recomendar aos membros do Ministério Público brasileiro que, na fiscalização de atos de execução de políticas públicas, seja respeitada a autonomia administrativa do gestor e observado o limite de análise objetiva de sua legalidade formal e material.

Parágrafo único. Diante da falta de consenso científico em questão fundamental à efetivação de política pública, é atribuição legítima do gestor a escolha de uma dentre as posições díspares e/ou antagônicas, não cabendo ao Ministério Público a adoção de medida judicial ou extrajudicial destinadas a modificar o mérito dessas escolhas”. 

As entidades associativas ligadas ao Ministério Público – Conamp, ANPR, ANPT e AMPDFT — não concordaram com o teor do ato e requereram sua revogação. Alegaram vícios de competência formal e material — o corregedor geral somente poderia expedir recomendações em processos e procedimentos concretos já iniciados — e supostas violações aos princípios constitucionais do Ministério Público. No essencial, alegaram que o princípio da independência funcional assegura aos membros do Parquet o livre exercício de suas atribuições, de acordo com suas convicções, sem dever de guardar obediência a qualquer entendimento diverso emanado de outros órgãos do próprio Ministério Público.

O Plenário do CNMP, felizmente, decidiu pela manutenção da vigência da Recomendação[1]. Explico o "felizmente", mantendo o foco no controle de políticas públicas e na disposição constante do artigo 2º da recomendação.

Recomendar, antes de mais nada, é um ato despido de cogência, isto é, de normatividade; é ato quase gracioso[2]. Trata-se de uma modalidade de soft law, ou seja, de direito não impositivo que almeja buscar compromissos voluntários, firmar consensos. Como regra, é útil no processo interpretativo, ajudando a conferir sentido às normas jurídicas tradicionais, auxiliando na edição e no cumprimento dos demais atos normativos[3].

O Ministério Público tem papel essencial no controle das políticas públicas. Maria Paula Dallari Bucci, precursora na abordagem jurídica da categoria políticas públicas, as enxerga em seu caráter dinâmico, caracterizando-as como direito em ação. Trata-se de ações governamentais processualmente estruturadas e juridicamente reguladas, em diversos níveis, com o envolvimento de diversos atores e instituições, por meio da utilização de variados métodos e estratégias.

A Recomendação do CNMP, corretamente, enfoca o controle dos atos de execução de políticas públicas, ou seja, pressupõe a existência de um ciclo complexo composto pela percepção e definição de problemas, agenda-setting, elaboração de programas e decisão, implementação de políticas e, finalmente, avaliação e eventual correção da ação[4]. Pressupõe, desta forma, que exista uma política pública planejada e em pleno andamento em suas diversas ações, no âmbito de competência de cada Administração Pública. Desta forma, a autonomia administrativa do gestor à qual se refere o artigo 2º da Recomendação não é excessivamente abrangente, quiçá ambiciosa — refere-se apenas à fiscalização de atos de execução, integrados no macro contexto da política pública.

A limitação do controle aos juízos de legalidade formal e material não diz muito, sobretudo se for entendida a legalidade material como a conter todos os demais princípios constitucionais da Administração Pública.

Foquemos, entretanto, na questão do "consenso científico em questão fundamental à efetivação de política pública". Discutir o que seria "consenso científico" nos dias atuais renderia outro artigo, quem sabe uma tese. Limito-me a colacionar uma pequena citação, a título de provocação, a respeito da evolução da ciência:

"O século 20 assistiu a uma drástica modificação na relação com o conhecimento. O modelo clássico de ciência germinado na antiguidade grega, que repudia a incerteza e admite apenas um saber associado à verdade absoluta, foi gradualmente substituído por um modelo estocástico, que aceita a variabilidade e a incerteza. Em diversos ramos da ciência, inclusive nos mais tradicionais (como a física e a química), conhecer não mais significa ter controle sobre todas as causas de produção de um fato e sobre o seu comportamento futuro. O objeto do pesquisador deixou de ser a descoberta de leis naturais invariáveis e de cogência universal, capazes de predeterminar com qualquer grau de precisão os resultados dos experimentos. Na atualidade, o pesquisador tem consciência de que a complexidade de certos processos inviabiliza a redução de suas causas a um modelo determinístico. A ciência abandonou sua pretensão de ser exaustiva na investigação das causas e precisa nas previsões do futuro, para admitir um conhecimento incompleto, que busca apenas errar menos. Dentro dessa nova e mais modesta abordagem, componentes tradicionais do pensamento científico ganham novas feições. Ao invés de leis naturais, temos modelos probabilísticos. Ao invés de relações causais determinísticas, temos índices de correlação e regressão. E ao invés de resultados certos, temos frequências de distribuição de possíveis resultados. Tais mudanças levaram os historiadores a cunhar a expressão ‘Revolução Estatística’ para descrever essa guinada de trajetória descrita pelo conhecimento humano"[5].

Retomando a análise, convém perceber que a recomendação não se dirige às questões em que, em tese, exista consenso científico (o controle, em tais casos, seria total, à semelhança do controle de legalidade formal), mas às outras, com relação às quais existam diferentes entendimentos científicos igualmente admissíveis. Ressurge o velho fantasma do controle da discricionariedade: enfocando nossos problemas atuais, diante de diferentes opções de tratamentos e medidas voltadas à proteção da saúde igualmente admissíveis, em diferentes escalas, pela comunidade científica, a quem cabe a escolha?

Retomo entendimento já exposto algumas vezes neste conceituado espaço. Quando se trata do exercício de competências estabelecidas por normas de textura aberta, ampla, muitas vezes positivadas sob a forma de princípios jurídicos, em atendimento à distribuição constitucional de competências é dever dos órgãos de controle respeitar a esfera de atuações delimitada para o gestor público. O cenário se tornou mais claro com a Lei 13.655/18, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.  As decisões administrativas deverão avaliar concretamente as eventuais soluções possíveis, notadamente na interpretação de conceitos abertos, considerando os prós e contras da adoção de cada qual. A atividade de controle, por outro lado, somente poderá examinar as eventuais alternativas que se apresentavam ao gestor, por se tratar de fiscalização de conformidade — cabe ao gestor identificar as alternativas, sopesá-las e decidir; ao controle cabe a posterior verificação da decisão diante do cenário posto.

Nesses casos, os órgãos de controle devem deferência à opção feita pelo gestor. Nesse particular, na esteira de lição de Vanice Valle, compreendemos na deferência o atributo determinante de três distintos efeitos sobre a função de controle: "1º) determina o dever do controlador de conhecer os termos da opção administrativa que seja objeto de crivo; 2º) determina ainda ao controlador aferir se a escolha administrativa está sendo executada como formalmente enunciada — e se não está, quais os motivos da modificação; e 3º) determina o dever de que a impugnação à opção administrativa se desenvolva a partir de uma relação dialética para com as razões oferecidas pela Administração para a eleição daquela específica trilha de ação"[6].

Em outras palavras, em situações como a tratada o gestor tem o dever jurídico de buscar a melhor opção, mas o controle deve se contentar com opção proporcional. É necessário exercitar a autocontenção e respeitar o legítimo exercício da competência administrativa, ainda quando com ele não se concorde.

Não há qualquer conflito do que foi exposto com a independência funcional reconhecida pela Constituição ao Ministério Público. No abalizado magistério de Carlos Vinícius Alves Ribeiro, a independência funcional é a carta coringa utilizada por alguns membros do Ministério Público diante da falta de justificativa para determinadas decisões[7]. A independência funcional deve ser exercida nos quadros da juridicidade, aí incluída a distribuição das competências administrativas feita no plano constitucional.

No pedido de revogação, as instituições autoras elencam "situações ocorrentes no país após a edição do ato normativo, que concretamente tem dificultado sobremaneira a atuação do Ministério Público", trazendo notícias de questionamentos feitos com relação ao isolamento social em dois Estados. A atuação nos espaços reservados à opção administrativa na ausência de consenso científico, na verdade, dificulta sobremaneira a confiança do cidadão e a execução de estratégias em tempo de pandemia — basta verificar, como exemplo, as diversas iniciativas do Ministério Público ligadas à polêmica cloroquina, ora para distribuir[8], ora para "proibir"[9].

Entendo que não há, desta forma, qualquer mitigação à independência funcional no conteúdo do artigo 2º da Recomendação, incluindo seu parágrafo único. Ao contrário, a recomendação preserva o exercício de atribuições constitucionais acometidas aos gestores públicos, em circunstâncias específicas.

A questão ganhou novo relevo recentemente. Como se sabe, o STF concedeu medida cautelar em sete Ações Diretas de Inconstitucionalidade para conferir interpretação conforme à Medida Provisória nº 966/2020, relativa à responsabilização de agentes públicos decorrentes de atos ligados à pandemia Covid-19[10]. No que se refere ao tema central deste artigo, na esteira do entendimento do STF, cabe ao Ministério Público, no controle dos atos em relação aos quais não exista consenso científico: a) exigir que as autoridades administrativas pautem suas decisões em opiniões técnicas; b) exigir que as opiniões técnicas levadas às autoridades competentes tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”.

Percebe-se que não há imunidade ou liberdade absoluta para os gestores no exercício de atribuições voltadas à preservação da saúde e que o Ministério Público é peça essencial para a defesa da sociedade e do interesse público.


[2]É interessante perceber a irresignação com relação à falta de efeito vinculante por parte das associações pois, como alegam, “na prática, principalmente quando são tratadas matérias de cunho eminentemente funcional pela autoridade correcional/disciplinar nacional, as coisas não se desenvolvem de modo assim tão simples”. A questão remonta a tema que já tratei em outra oportunidade, neste mesmo espaço – a tentativa de imposição disfarçada de recomendação, desvirtuamento de um importante instrumento de atuação (https://www.conjur.com.br/2019-set-26/interesse-publico-recomendacoes-ministerio-publico-var)

[3] SARMIENTO, Daniel. El Soft Law Administrativo: Un studio de los efectos jurídicos de las normas no vinculantes de la Administración.  Navarra: Thomson Civitas, 2008.

[4] Essa a conhecida metodologia do ciclo de políticas públicas, nesse particular exposta por FREY, Klaus. Políticas Públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas no brasil. Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, n. 21, p. 211-259, 2000.

[5] NUNES, Marcelo Guedes. Jurimetria – como a estatística pode reinventar o direito. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p.21.

[6] VALLE, Vanice Regina Lírio do. Deferência judicial para com as escolhas administrativas: resgatando a objetividade como atributo do controle do poder. Revista de Direitos Fundamentais & Democracia, Curitiba, v. 25, n. 1, p. 110-132, jan./abr., de 2020. Sobre deferência, confira JORDÃO, Eduardo. Controle judicial de uma Administração Pública complexa. A experiência estrangeira na adaptação da intensidade do controle. São Paulo: Malheiros Editores, 2016.

[7] O autor identifica o cerne da questão: “Assim, é fundamental, desde logo, corrigir a leitura do princípio da independência funcional. A máxima de que ele garante ao membro
do Ministério Público total independência, só devendo satisfação à lei
e à consciência, pode não dizer tudo.[…] observa-se
facilmente que se tem dado a esse princípio um conteúdo tão amplo
e distorcido que chega a gerar a sua completa incompatibilidade com
o princípio da unidade. Disso advém a crítica encabeçada por Maria
Tereza Sadek ao afirmar que “o Ministério Público é uma tribo só de
caciques”
RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves. Ministério Público – Funções Extrajudiciais. Histórico, Natureza Jurídica,

Discricionariedade, Limites e Controle. Belo Horizonte: Editora Fórum. 2015. Página 156

[10] Na ocasião, foram firmadas as seguintes teses: “1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.

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