Opinião

Os efeitos da Medida Provisória 984/2020 no futebol brasileiro

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9 de julho de 2020, 14h25

O isolamento provocado pela pandemia da Covid-19 paralisou diversos setores da economia e, em especial, a indústria do entretenimento, prejudicando as atividades realizadas por esse setor. O governo federal, a fim de mitigar os impactos da pandemia e objetivando viabilizar o encerramento das competições esportivas em curso, editou a Medida Provisória nº 984, em 18 de junho (MP 984/2020), que trouxe alterações na Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998 (Lei Pelé), relacionadas ao contrato de trabalho do atleta profissional e ao direito de transmissão de evento desportivo.

Alterações ao contrato de trabalho do atleta profissional
A MP 984/2020, sob o pretexto de corrigir anomalias geradas pela Covid-19, que fez com que os campeonatos estaduais fossem suspensos antes do seu término, editou norma prevendo a possibilidade de, extraordinariamente, serem celebrados contratos de trabalho com os atletas pelo prazo mínimo de um mês.

Isso porque muitos clubes de pequeno porte disputam competições esportivas apenas no primeiro semestre, que são os campeonatos estaduais ou regionais. Terminadas essas competições, os aludidos clubes, por não participarem de disputas nacionais, deixam de atuar no segundo semestre. Desse modo, não faz sentido para essas entidades de prática desportiva menores celebrar contratos de longa duração, por períodos de um ano ou superiores.

Em grande parte das vezes, os clubes de pequeno porte assinam com seus jogadores contratos com duração entre três e quatro meses. Assim, com a interrupção dos campeonatos locais em vista da pandemia instaurada pela Covid-19, tais contratos se encerraram. Assim, com a retomada das competições, tais equipes seriam obrigadas a assinar novos contratos com seus atletas por um período mínimo de três meses, somente para disputar poucas partidas.

Para os pequenos clubes, nessas condições, os gastos com os atletas superariam as receitas a serem obtidas com os poucos jogos que restam das competições estaduais e regionais, sendo desinteressante a formalização de novos vínculos de trabalho. A situação colocava em risco o término das competições.

Como solução, o governo flexibilizou a regra prevista na Lei Pelé. O artigo 30 da referida lei prevê que o "contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses nem superior a cinco anos". Com o advento da MP 984/2020, houve a modificação provisória dessa regra, passando-se a admitir, somente até 31 de dezembro de 2020, que o período de vigência mínima do contrato de trabalho do atleta profissional, passe a ser de 30 dias.

A medida é salutar e atende a uma demanda dos pequenos clubes, cuja situação financeira é complicada, e do grande público, que poderá assistir à conclusão dos campeonatos locais. Acontece que, além dessa alteração implementada pela MP 984/2020, o governo federal aproveitou a circunstância para trazer outras modificações na Lei Pelé, entre elas a que mais chamou a atenção foi uma mudança nas regras quanto à propriedade do direito de transmissão e reprodução das partidas esportivas.

Alterações ao direito de transmissão do evento desportivo
O artigo 42, caput, da Lei Pelé, até o advento da MP 984/2020, dispunha que pertencia conjuntamente às entidades de prática desportiva envolvidas na partida o direito de negociar, autorizar ou proibir fixação, transmissão ou retransmissão de imagem do espetáculo desportivo de que participassem. Dessa maneira, a transmissão de um jogo por determinada emissora de televisão só ocorria se houvesse consenso entre os dois clubes envolvidos ambos deveriam ter contrato com a mesma emissora para que o evento fosse transmitido , sendo comum a celebração de acordos coletivos com as emissoras para que o espetáculo pudesse circular sem entraves na televisão.

Com a nova redação proposta pela MP 984/2020, que altera a redação do artigo 42 da Lei Pelé, estabeleceu-se que pertence ao clube mandante do jogo o direito de ceder os direitos de transmissão e retransmissão do evento esportivo. Com isso, o pagamento do direito de arena deixa de ser repartido entre o mandante do jogo e a equipe visitante, e a empresa interessada em transmitir o evento passa a poder negociar apenas com um time.

Será somente na hipótese de haver indefinição quanto ao mandante do jogo que, nos termos do parágrafo 4º do artigo 42, incluído pela MPV 984/2020, a emissora dos sinais será obrigada a negociar com os dois clubes.

Outra interessante inovação trazida pela MPV 984/200 foi a revogação dos parágrafos 5º e 6º do artigo 27-A da Lei Pelé, passando-se a permitir que as emissoras possam patrocinar e/ou veicular sua marca nos uniformes das equipes, prática proibida até então.

Nesse cenário, vale destacar que essas modificações podem aumentar as disparidades de receitas entre os clubes, uma vez que a tendência é que as grandes entidades desportivas consigam firmar contratos mais vantajosos com empresas de geração e transmissão de imagens  tanto para transmitirem seus jogos quanto para patrocinarem seu time  do que devem conseguir os clubes menores.

Como consequência, os grandes clubes tendem a concentrar ainda mais recursos para contratar jogadores, aumentando ainda mais o abismo já existente com os clubes pequenos. Esse aumento da disparidade, prejudica a competitividade dos campeonatos nacionais.

A Premier League foi a precursora ao tentar combater a desigualdade econômica entre os clubes ao estipular que 50% da receita proveniente dos direitos de transmissão será dividida igualmente entre os clubes, 25% será dividida de acordo com a classificação das equipes na temporada anterior e 25% será dividida conforme o número de partidas transmitidas. Tal modelo de negócio foi bem-sucedido e conseguiu proporcionar uma maior paridade na distribuição dos recursos, de modo que a diferença entre o montante captado pelo líder do campeonato e o montante captado pelo clube que se encontra na última posição não é tão substancial, como o que se observa em outros campeonatos do mundo.

No Brasil, a desigualdade econômica entre os clubes, que pode ser agravada se efetivadas as alterações implementadas pela MP 984/2020, só veio a ser observada com mais atenção recentemente. Em 2019, Globo e Turner, empresas que compraram os direitos de transmissão do campeonato brasileiro no período de 2019 a 2024, em conjunto com os clubes, adotaram sistemática de repartição de receitas semelhante à implementada pela Premier League.

Com relação à Globo, detentora dos direitos de transmissão na televisão aberta e fechada, 40% dos recursos passaram a ser divididos igualmente entre todos os clubes, 30% passaram a ser divididos conforme número de jogos transmitidos e 30% divididos de acordo com colocação na tabela. Ao passo que a Turner, detentora do direito de transmissão apenas na televisão fechada, passou a repartir as receitas em formato mais próximo ao da liga inglesa de futebol: 50% são divididos igualmente entre todos os clubes, 25% são divididos conforme a audiência dos jogos e 25% são divididos de acordo com colocação na tabela.

O futebol argentino, de outra forma, adotou estratégia distinta, a fim de mitigar a desigualdade de verbas entre os seus clubes. No ano de 2009, o futebol tornou-se "bem público" e passou a ser regulado em alguns aspectos pela Lei de Meios Audiovisuais (Lei nº 26.522), que impunha a transmissão à toda a população pela televisão aberta. Contudo, no ano de 2017, o então presidente argentino Mauricio Macri oficializou o desmonte do programa Futebol para Todos, possibilitando aos dois maiores clubes do país — Boca Juniors e River Plate voltar a negociar maiores vencimentos junto aos conglomerados privados de comunicação.

Aprovação no Congresso Nacional
O prazo para os membros do Congresso Nacional apresentarem emendas à medida provisória encerrou no dia 22 de junho. A nova norma será analisada no Plenário da Câmara, conforme o rito sumário de tramitação definido pelo Congresso Nacional durante o período de calamidade pública. A MP 984/2020 produz efeitos desde sua publicação, tendo validade de 60 dias, com a possibilidade de prorrogação por mais 60 dias, antes de deixar de produzir efeitos, caso não seja aprovada pelo Congresso Nacional.

O que está em jogo no Congresso Nacional neste momento são alterações nas regras de transmissão dos direitos de imagem e som de eventos esportivos, sob a perspectiva de tornar o ambiente desportivo mais competitivo e economicamente interessante para todos os envolvidos. Se as modificações propostas irão trazer avanços ou retrocessos, benefícios ou malefícios para o esporte, ainda não é possível saber. Essas são cenas dos próximos capítulos, cabendo a nós, neste momento, apenas ficar na torcida para que tais medidas permitam efetivamente o fortalecimento do esporte e, em especial, do futebol brasileiro.

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