Direito em Transe

Bolsonaro para Roxin: hold my beer

Autores

  • Davi Tangerino

    é sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e da FGV-SP.

  • Octavio Orzari

    é sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca.

9 de julho de 2020, 8h00

Spacca
Legenda

Claus Roxin, ao desenhar sua teoria do risco permitido, usou o seguinte exemplo — que ficou muito famoso — de conduta sem criação de risco, e, portanto, sem relevância penal: o sobrinho manda o tio para a floresta, torcendo para que sobre ele caia um raio, gerando seu óbito.

"Brasilien, lieber Herr Prof. Roxin, sei laut Tom Jobim nicht für Anfänger."[1]

Chegou o dia de o ministro da Justiça determinar à Polícia Federal (afinal é disso que se cuida a tal “requisição” do Código Penal, no artigo 145; e artigo 31, IV, da Lei de Segurança Nacional) que se apure crime contra a segurança nacional em razão de um artigo do jornalista Hélio Schwartsman, intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”.[2]

O título e o conteúdo podem desagradar, ser tidos como péssimos, e os leitores podem discordar veementemente. Acontece. Mas invocamos aqui o ministro conservador da Suprema Corte dos Estados Unidos, o falecido Scalia. O caso era o seguinte: pode-se criminalizar a queima de bandeira americana? Scalia, pessoalmente, achava odiosos/ridículos os queimadores de bandeira e os prenderia, se fosse rei. Mas não sou rei, concluiu.

Até há quem se autointitule Príncipe, e candidatos assanhados a ditador, mas não temos reis no Brasil. Trocamos pelo presidencialismo constitucional.

No nosso regime jurídico (artigo 4º do CPP e artigo 2º, parágrafo 1º, da Lei nº 12.830/13), inquéritos só podem investigar fatos criminosos e os indícios de sua autoria, a partir de motivos críveis de que algum crime existe (portanto, é necessário frisar, sua instauração deve ser fundamentada, sem que possa ser justificada para todo e qualquer fato que ocorre).

Ao aprofundar a análise dos fatos, embora desnecessário quando todas as circunstâncias fáticas já se mostram evidentes inclusive quanto à autoria, alguns veem o inquérito como uma garantia do cidadão para que contra ele não sejam intentadas ações penais temerárias, sem fundamento.

Essa perspectiva, todavia, não pode obnubilar que a instauração de um inquérito policial sem fundamento, sem o mínimo de lastro jurídico que indique um crime, gera inequivocamente constrangimento ao cidadão, afinal a polícia, o Estado e a sociedade o verão como criminalmente investigado, o que traz severas consequências extrajurídicas.

Mas, afinal, afastados os aspectos morais e religiosos, distantes do Direito Penal e da coerção estatal laica, que crime comete quem deseja a morte de Bolsonaro?

Spoiler: nenhum. Talvez tenha que resolver essa qüestão aí com uma deidade, ou haja impacto no tocante aí ao karma, talkey? Mas, ao menos por enquanto, a Constituição só cuida do direito terrenamente posto.

Só se pode começar a falar em crime quando houver ao menos perigo ao bem jurídico protegido pela norma incriminadora; no caso, a segurança nacional em nada é ameaçada ou lesionada com o artigo.

O artigo 30 do Código Penal expressamente exclui a punição em casos de ajuste, determinação, instigação ou auxílio (dolosos, obviamente), quando o crime não chega ao menos a ser tentado. Crime tentado, por sua vez, é aquele em que a consumação, embora iniciada a execução, não chega a ocorrer por circunstâncias estranhas à vontade do agente (cf. artigo 14 do CP).

Tanto é preciso esse perigo que, nos casos em que o meio escolhido ou o objeto do agir criminoso for totalmente inidôneo, o crime é considerado impossível e não recebe pena (cf. artigo 17 do CP). Por isso não se pune quem atira em alguém já morto, ou quem tenta matar o tio mandando-o para a floresta, na esperança que um raio o atinja mortalmente.

Hélio Schwartsman pode ter pecado, ou desbalanceado seu karma; pode ter sido descortês, ou até mesmo antiético (na perspectiva de cada que venha a ler seu artigo). Mas não incrementou em nada o risco a qualquer bem jurídico afeto à segurança nacional. Ademais, não haveria o que se perquirir em um inquérito, que é dispensável para uma ação penal, haja vista o fato por si só estar totalmente delimitado: há um artigo assinado, que se exaure plenamente. Se a questão é transformar o artigo em um fato político maior do que já é, ou inflamar os debates nas redes sociais invocando a Lei de Segurança Nacional e um inquérito policial, aí são outros quinhentos. O autor pode até agradecer.

Poderíamos parar aqui.

Por amor ao debate, algumas linhas aos famigerados crimes contra a Segurança Nacional.

A Lei 7.170/83 não desconhece a premissa de que é preciso haver lesão ou perigo de lesão a bens jurídicos, como está expresso no caput de seu artigo 1º, e os enumera: I — integridade e segurança nacional; II — o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; e III — a pessoa dos chefes dos Poderes da União.

Pretender a instauração de inquérito com base no artigo da Lei de Segurança Nacional que trata de calúnia e difamação contra o presidente da República é um equívoco jurídico.

Dizer que houve crime contra a honra — um aluno de Direito Penal I sabe dizê-lo — não atende aos mínimos parâmetros de tipicidade; isso porque não houve atribuição de nenhum fato ao Presidente (descartadas, assim, calúnia e difamação), tampouco ofensa à honra subjetiva do mandatário.

Mas ainda que houvesse uma afirmação materialmente verdadeira, porém desonrosa: a Constituição Federal garante a liberdade de pensamento, particularmente quando se dá por meio da imprensa.

No fundo, o artigo jornalístico critica quem nega uma pandemia mortal estimulando o uso de remédio sem comprovação curativa; atenta contra o regime democrático, se soma a movimento que luta pela intervenção militar e pede a dissolução do Supremo.

Quem escreve um artigo desejando a morte do Presidente, sem se mover nesse sentido, não fere a Lei de Segurança Nacional, já que o Direito Penal não se presta e repreender pensamentos e desejos. O próprio Bolsonaro bem o sabe. Desejou que Dilma morresse de câncer ou de infarto em 2015 e não foi admoestado por isso. E de forma mais publicamente impossível, enalteceu os atos do maior torturador da história do Brasil oficialmente documentado, causador de centenas de mortes diretas. A par do Direito Penal, vem à tona o plano do “decoro” do representante eleito, que aparece na Constituição e na Lei de Crimes de Responsabilidade, e que independe de condenação criminal definitiva, mas de um juízo político dos demais representantes eleitos.

Então não há nenhum crime nesse episódio? Segue a discussão.

Olhando bem, há uma figura da Lei de Abuso de Autoridade que merece atenção: “Art. 27.  Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa”. Essa lei foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Bolsonaro em 5 de setembro de 2019.

Sobre essa questão, cabe ao Procurador-Geral da República formar a opinio delicti, já que ministro de Estado tem foro por prerrogativa de função junto ao Supremo. A opinião é simples: ou o ministro da Justiça desconhece Direito Penal, dada a manifesta atipicidade na requisição que mandou, ou pretende mandar, para a instauração de inquérito por calúnia e difamação da Lei de Segurança Nacional, como afirmou em rede social; ou cabe apurar detalhadamente se seria caso que se enquadraria, em tese, no dispositivo acima da Lei de Abuso de Autoridade.

Já em 2003 o Ministro Sepúlveda dizia que “Estamos todos cansados de ouvir que o inquérito policial é apenas um ‘ônus do cidadão’, que não constitui constrangimento ilegal algum e não inculpa ninguém (embora, depois, na fixação da pena, venhamos a dizer que o mero indiciamento constitui maus antecedentes: são todas desculpas, Sr. Presidente, de quem nunca respondeu a inquérito policial algum)”.[3]

Pois bem, Ministro Sepúlveda, a Lei de Abuso de Autoridade veio para endereçar precisamente esse seu democrático incômodo.

Quanto a Hélio Schwartsman, a Constituição está a seu lado; essa requisição deve morrer no ninho, inclusive para que não choque mais uma serpente.

 

[1] “O Brasil não é para principiantes”, frase atribuída a Tom Jobim.

[2] Publicado na Folha de São Paulo, em 7 de julho de 2020.

[3] STF, HC nº 80.564, Primeira Turma, relator ministro Ilmar Galvão. DJ 21/2/2003.

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    é doutor em Direito Penal pela USP, sócio de Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados, professor da UERJ e da FGV-SP.

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    é graduado e mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da USP, ex-delegado da Polícia Federal, sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados.

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