Opinião

Sobre investigações pelo Poder Judiciário

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8 de julho de 2020, 13h31

O Supremo Tribunal Federal, por dez votos a um, no julgamento da ADPF 572-DF, considerou constitucional investigação criminal conduzida pela corte para apurar crimes cometidos contra o próprio tribunal, seus ministros e familiares, relativizando, assim, o sistema acusatório e a regra estrita de competência estabelecida no artigo 102 da Constituição Federal.

As circunstâncias desse caso específico estão bem delineadas no voto do ministro Edson Fachin, que apresentou argumentos para fundamentar o que considerou como uma "necessidade de conferir instrumentos ao exercício de um dever constitucional, no caso, de guardião da Constituição".

O voto do ministro Fachin, acompanhando pela quase integralidade da corte, representou o que a literatura política atual define como a superação do mito da neutralidade do Poder Judiciário e uma reatividade da corte em razão das pressões de outros poderes. "A Corte Constitucional, nesse sentido, não está numa torre de marfim, mas no calor da política" [1].

Os limites e as consequências dessa solução adotada pela corte, estejamos ou não de acordo, serão doravante balizados pelo próprio Supremo Tribunal Federal, que tem a função de estabilizar as discussões públicas em razão da autoridade da sua decisão, ainda que de uma forma provisória, diante do dinamismo da vida em sociedade e da acomodação das forças legitimantes do sistema democrático.

No contexto dos fundamentos apresentados no voto do ministro Fachin, relator dessa ação constitucional, uma situação específica sobressai-se pela implicação direta à independência funcional do Ministério Público Federal, que, assim como a magistratura, goza de prerrogativas constitucionais para o desempenho de uma atividade persecutória isenta e livre de pressões.

Trata-se de uma legitimação implícita do Poder Judiciário, ou especificamente do Supremo Tribunal Federal, para instaurar e conduzir investigações quando considerar inertes os órgãos do sistema persecutório (Ministério Público e polícia) ou ineficientes as providências  adotadas.

O ministro cita em seu voto, como um possível precedente, debate estabelecido no julgamento do Habeas Corpus 152.720, que ensejou a instauração do Inquérito nº 4696 (relator ministro Gilmar Mendes, 2ª Turma, j. 14/8/2018). A despeito do posicionamento discordante do ministro Fachin à época, foi instaurada investigação própria pela 2ª Turma, sob o fundamento da ineficiência das apurações que estavam sendo desenvolvidas pela polícia e pelo Ministério Público no caso específico — uso de algemas no ex-governador Sérgio Cabral em circunstâncias consideradas pelo relator do Habeas Corpus no STF como não justificáveis.

Nesse episódio, houve uma imediata interferência da Procuradoria-Geral da República, que se posicionou contrariamente à instauração de investigação autônoma pelo STF, em manifestação que pode ser sintetizada no seguinte parágrafo: "O ordenamento jurídico vigente não prevê a hipótese de o mesmo juiz que entende que um fato é criminoso, determinar a instauração da investigação e presidir essa investigação. Para além da não observância das regras constitucionais de delimitação de poderes ou funções no processo criminal, o fato é que tal conduta transforma a investigação em um ato de concentração de funções, e que põe em risco o próprio sistema acusatório e a garantia do investigado quanto à isenção do órgão julgador".

O posicionamento institucional da chefe do parquet à época foi desconsiderado pela 2ª Turma e a investigação prosseguiu sem a participação do Ministério Público, na forma de inquérito, conduzida por juiz instrutor designado para tal finalidade.

Necessário, para o devido registro histórico desse episódio, esclarecer que, concluída essa investigação, os autos foram encaminhados à Procuradoria-Geral da República e arquivados por entender a PGR, na linha da manifestação anterior, a ilegitimidade dessa forma de condução da apuração pelo próprio Supremo Tribunal Federal, em situação que sequer os investigados gozariam de foro por prerrogativa de função nessa corte.

Nessa ocasião, não havia decisão com eficácia erga omnes e estava plenamente preservada, à luz do ordenamento jurídico pátrio, a independência do titular da ação penal na avaliação sobre a necessidade e utilidade da prova produzida no referido apuratório, mas também da legalidade da sua origem e forma de produção, com base nos princípios constitucionais que estruturam o sistema democrático, principalmente a isenção e imparcialidade do órgão julgador.

Esse episódio, que foi objeto de artigo doutrinário e citado pelo ministro Edson Fachin como um precedente para o recente julgamento da ADPF 572, remete a uma profunda reflexão sobre a aplicação do paradigma em relação à atuação independente do Ministério Público em todas as instâncias, não apenas no STF, que pode ser absolutamente relativizada quando o Poder Judiciário entender, nas mais diversas situações, que a atuação do órgão da acusação é ineficiente e, assim, instaurar investigação e conduzi-la diretamente. Estará, nessa hipótese, preservado o Estado democrático de Direito que, como o próprio ministro Fachin enfatizou, foi restaurado pela Constituição Federal de 1988?

 


[1]. MENDES, Conrado Hubner. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. 2008. p. 182-183. Tese apresentada no Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do Título de Doutor em Ciências Políticas. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8131/tde-05122008-162952/publico/TESE_CONRADO_HUBNER_MENDES.pdf

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