Advocacia criminal

Dever de civilidade na prática jurídica da advocacia criminal

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8 de julho de 2020, 7h57

Spacca
Nestes tempos sombrios de desqualificação por rotulagem, intolerância, polarização etc., é importante reafirmar a importância do dever de civilidade do advogado. O fenômeno complexo e multifacetado da crise do Processo Penal brasileiro contemporâneo, que comporta várias dimensões de análise, engloba uma crise de civilidade.

A expressão civilidade deriva do latim civilitas (ciência política ou de governar o estado; civilidade, afabilidade, benignidade, bondade), e segundo o dicionário significa o conjunto de formalidades, de palavras e atos que os cidadãos adotam entre si para demonstrar mútuo respeito e consideração; boas maneiras, cortesia, polidez.

Trata-se de conceito impreciso e polissêmico, representando ideal normativo de comportamento social que é variável conforme o tempo e contexto histórico-social, além de comportar variegadas dimensões analíticas. 1

Jayne Reardon assim define a civilidade: código comportamental de decência ou respeito que é a marca da convivência, enquanto cidadãos no mesmo Estado. 2

Para fins de aplicação processual penal, a civilidade pode ser conceituada como o conjunto de normas de interação social cotidiana adequada entre Juízes, partes processuais penais e seus procuradores, órgãos auxiliares da justiça e terceiros, baseadas em valores tais como decência, respeito, sinceridade, lealdade processual e urbanidade. 3

Nos Estados Unidos da América, a crescente incivilidade na prática judiciária insuflou forte reação política, que levou à criação de Códigos de Civilidade por Tribunais federais, estaduais e entidades de Advogados a partir das décadas de 1980 e 1990, que hoje são praticamente universais.

A Corte norte-americana precursora na adoção de Código de Civilidade foi a United States Court of Appeals for the Seventh Circuit, em 1992. Essa codificação é intitulada Standards for Professional Conduct. 4

O preâmbulo desse Código dispõe que a conduta do Advogado deve ser sempre caracterizada pela cortesia pessoal e integridade profissional. Ao desempenharem suas funções, as partes devem ter em mente seus deveres perante o sistema de administração da justiça, cuja função é a resolução de problemas pessoais e sociais de forma racional, pacífica e eficiente.

A conduta do Juiz deve ser sempre pautada pela cortesia e paciência com todos os participantes do processo judicial, os quais são credores de respeito, diligência, pontualidade e proteção contra criticismo ou ataque injusto e impróprio.

Condutas caracterizadas por incivilidade, abrasividade, abusividade, hostilidade ou obstrução frustram o objetivo de solucionar as causas racionalmente, pacificamente e eficientemente, tendendo a retardar ou frustrar a Justiça.

Assim, os preceitos deontológicos do Código de Civilidade em digressão foram concebidos para encorajar o cumprimento dos deveres de Juízes e Advogados, entre si e para com o sistema de justiça, com o duplo objetivo de atingir a civilidade e o profissionalismo – marco de uma profissão culta e dedicada ao serviço público.

Quanto ao dever de civilidade no ordenamento jurídico pátrio, tal matéria foi regulada pelo Código de Processo Civil, cujo Livro III, Capítulo II prevê os deveres das partes, seus procuradores e todos aqueles que, de qualquer forma, participam do processo (artigo 77).

O descumprimento dos deveres em apreço é considerado ato atentatório à dignidade da justiça, ficando sujeito às sanções criminais, civis e processuais cabíveis, além de multa de até 10 salários mínimos, de acordo com a gravidade da conduta.

Também há vedação do uso de expressões ofensivas nos escritos apresentados pelas partes, Juízes, membros do Ministério Público, Defensoria Pública e qualquer pessoa que participe do processo, sob pena de serem riscadas. Caso tais expressões sejam manifestadas oralmente, o Juiz advertirá o ofensor que não as deve usar ou repetir, sob pena de cassação da palavra (artigo 78).

Esse arcabouço normativo é complementado por deveres de civilidade específicos previstos nos respectivos regimes jurídicos que regulam as carreiras da Magistratura (Lei Complementar nº. 35/79; Código de Ética da Magistratura do Conselho Nacional de Justiça), Ministério Público (Lei Complementar nº. 75/93; Lei nº. 8.625/93; Código de Ética e Conduta do Ministério Público da União), Defensoria Pública (Lei Complementar nº. 80/94) e Advocacia (Lei nº. 8.906/94; Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil).

Não obstante, ao que tudo indica há declínio da civilidade no sistema de administração de justiça criminal pátrio – problema multidimensional (v.g. cultural, educacional, ético, político-institucional etc.) que provavelmente decorre de variegadas causas concorrentes. 5

Tais fatores são especialmente perniciosos, ao criarem caldo cultural de incivilidade arraigado no nosso meio forense. Com efeito, jovens praticantes tendem a mimetizar padrões de comportamento de seus colegas mais experientes, gerando vicioso ciclo de retroalimentação. 6

Embora os comportamentos processuais caracterizadores de incivilidade variem na casuística forense, é possível propor o seguinte esboço (exemplificativo) de tipologias: (i) incivilidade típica: consiste na prática de conduta criminosa contra a administração da justiça criminal (v.g. falso testemunho, falsa perícia, fraude processual etc.), ou a integridade corporal, saúde, honra etc. alheia; (ii) incivilidade enganosa: composta de condutas atípicas que visam a induzir o Juiz, parte adversa, órgão auxiliar da justiça ou terceiro em erro (v.g. apresentação de fatos que se sabe serem falsos; deturpação de citações doutrinárias ou jurisprudenciais etc.); (iii) incivilidade obstrutiva: caracterizada pela fabricação de óbices à resolução ordeira, custo-eficiente e célere do caso penal (v.g. descumprimento de prazos; interposição de recursos manifestamente incabíveis etc.); (iv) incivilidade discriminatória: consubstanciada na dispensa de tratamento discriminatório a outrem; (v) incivilidade comunicativa: manifestada pela falta de urbanidade nas manifestações escritas, orais e não verbais (v.g. balançar a cabeça; bufar; revirar os olhos etc.); (vi) incivilidade desidiosa: revelada por falta de capacitação técnica, de empenho pessoal ou conhecimento dos autos; impontualidade; omissão quanto ao dever de informar o Juiz sobre fato processual relevante; má redação ou formatação de peças etc.; (vii) incivilidade interativa: consiste em manter interações impróprias (v.g. desonestas, injustas, desrespeitosas, obscuras etc.), com a parte adversa, visando a obter vantagem injusta, fazer ataque ou crítica pessoal, ou postular a aplicação de sanções por motivos inadequados; (viii) incivilidade comportamental: composta por conduta pessoal inadequada, que demonstra desrespeito pelo julgador (v.g. uso da palavra fora de ordem; insistência no mesmo argumento mesmo após prolação da decisão; reação emocional à decisão desfavorável; uso de deboche, ironia ou sarcasmo etc.); (ix) incivilidade individualista: caracterizada pela falta de cooperação com pedidos razoáveis de compartilhamento de elementos informativos e probatórios com a parte adversa; (x) incivilidade exemplar: consubstanciada em comportamentos contrários ao modelo preconizado pelos preceitos deontológicos, além de omissão quanto ao dever de educar clientes, público e colegas mais jovens sobre os sobreditos preceitos.

Michael Code sustenta que a incivilidade intensa e incessante pode ensejar violação à cláusula do julgamento justo, por cinco motivos: (i) os ataques à competência ou integridade da parte adversa podem causar o abandono da sua função (preparar argumentos e provas sobre o mérito da causa), em favor da defesa contra tais ataques, prejudicando as chances de êxito processual do cliente; (ii) o clima de incivilidade pode acarretar abandono da função precípua do julgador (acertamento do caso penal), em favor da mediação do conflito entre as partes; (iii) o tempo desperdiçado com a mediação de conflitos entre as partes pode ensejar duração excessiva do processo penal; (iv) a inviabilidade de comunicação racional entre as partes resulta em impossibilidade de resolução consensual de questões surgidas durante o julgamento; (v) a consequência do comprometimento da legitimidade do sistema de administração da justiça criminal, enquanto instituição capaz de solucionar os casos penais de forma eficaz.

Ainda segundo Michael Code, o bom senso e as evidências empíricas demonstram haver importante relação funcional entre civilidade e julgamento justo. Via de consequência, a civilidade deve ser considerada componente da sobredita cláusula, tendo o mesmo status jurídico de outras garantias do processo penal, que integram a concepção de justiça natural. 7

Nos Estados Unidos da América, foram adotadas diversas soluções para a crise de civilidade verificada no âmbito do sistema de administração da justiça criminal.

Tais soluções incluem: (i) a instituição de Códigos de Civilidade por Tribunais e entidades associativas de integrantes de carreiras jurídicas; (ii) a criação de associações privadas (Inns of Court), dedicadas à discussão sobre profissionalismo, ao compartilhamento de experiências e conselhos, à mentoria e a fomentar elevados padrões de civilidade; (iii) o aumento do protagonismo judicial na prevenção, detecção e repressão de comportamentos processuais caracterizadores de incivilidade; (iv) a inserção de conteúdos e disciplinas relacionados à civilidade na matriz curricular dos cursos de Bacharelado em Direito etc. 8

Logo, se afigura recomendável debate público de qualidade sobre possíveis soluções para a crise de civilidade que viceja no sistema pátrio de administração da justiça criminal.

Uma possível solução é processual, outorgando-se ao dever de civilidade cariz normativo e proibitivo, regulamentando-o no Estatuto Processual Penal e sujeitando a incivilidade a sanções processuais.

Outra solução é autorregulatória, atribuindo-se ao dever de civilidade natureza axiológica e prescritiva, regulando-o em Códigos de Civilidade de entidades de associação compulsória (v.g. Ordem dos Advogados do Brasil) ou facultativa (v.g. Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas), com base nas diretrizes gerais dos marcos reguladores das carreiras jurídicas.

Não se discute que a atuação profissional vigorosa das partes é componente essencial do processo penal acusatório, revestindo-se de interesse público relevante. 9

Também se afigura indiscutível a possibilidade de transposição bem-sucedida de conceitos de origem bélica (v.g. estratégia, tática etc.) para o campo do processo penal. 10

Nada obstante, jamais se deve olvidar que o Fórum não é teatro de operações, o Direito Processual Penal não é a arte da guerra, o caso penal não é conflito armado, os atos processuais penais não são batalhas, o Juiz e as partes não são combatentes inimigos, nem suas respectivas manifestações escritas e orais são armas destinadas a ferir ou matar.


1 BAUMGARTEN, Britta, GOSEWINKEL, Dieter, RUCHT, Dieter. Civility: Introductory notes on the history and systematic analysis of a concept, In: European Review of History, v. 18, n. 03, pp. 289-312, june 2011.

2 No original: behavioral code of decency or respect that is the hallmark of living as citizens in the same state (REARDON, Jayne. Civility as the core of professionalism, In: HASKINS, Paul (Org.). Essential qualities of the professional lawyer, pp. 35-47. Chicago: American Bar Association, 2013). Essa autora alerta que a civilidade não se confunde com: (i) consenso, pois dissenso e debate integram o processo decisório, e são salutares para o desenvolvimento de uma sociedade democrática; (ii) afeto, porque o dever de civilidade existe independentemente de se nutrir afeto pelo interlocutor, ou mesmo de conhecê-lo; (iii) ausência de criticismo, porquanto o respeito pelo próximo, em certas relações sociais, exige postura de criticismo; (iv) boas maneiras ou etiqueta, pois pode haver incivilidade em comportamentos permeados por educação.

3 MALAN, Diogo. Civilidade no processo penal, In: SANTORO, Antonio Eduardo Ramires; MALAN, Diogo; MADURO, Flávio Mirza (Orgs.). Crise no processo penal contemporâneo: Escritos em homenagem aos 30 anos da Constituição de 1988, pp. 111-133. Belo Horizonte: D’Plácido, 2018.

4 UNITED STATES COURT OF APPEALS FOR THE SEVENTH CIRCUIT. Standards for Professional Conduct within the Seventh Federal Judicial Circuit. Disponível em: https://www.insd.uscourts.gov/sites/insd/files/Standards%20for%20Professional%20Conduct.pdf

5 Por exemplo: (i) inadequação da matriz curricular do curso de Bacharelado em Direito e cursos de formação e aperfeiçoamento das carreiras jurídicas, carentes de disciplinas teóricas e práticas de cariz deontológico; (ii) deficiências dos concursos públicos para ingresso nas carreiras jurídicas, que privilegiam conteúdo dogmático, em detrimento de aspectos relacionados à experiência, maturidade, segurança, perfil psicológico etc. dos candidatos; (iii) omissões de Magistrados em prevenir, detectar e sancionar atos de incivilidade; (iv) deficiências na formação acadêmica e intelectual dos atores processuais, geradora de distorções (v.g. associação da incivilidade à coragem, e da civilidade à covardia etc.); (v) recrudescimento da intolerância na cultura e padrão de comportamento dos atores jurídicos; (vi) aumento exponencial da quantidade de profissionais jurídicos, que torna as suas relações mais efêmeras e pontuais, dificultando relações longevas, baseadas em cordialidade e respeito; (vii) mudanças no mercado da advocacia (v.g. competitividade, mercantilização, pressão por êxito, falta de mentoria etc.); (viii) expectativas comportamentais influenciadas por representações cinematográficas e teatrais que deturpam o verdadeiro papel dos profissionais jurídicos etc.

6 BILLS, Bronson. To be or not to be: Civility and the young lawyer, In: Connecticut Public Interest Law Jornal, n. 05, pp. 31-40, 2005.

7 CODE, Michael. Counsel’s duty of civility: An essential component of fair trials and an effective justice system, In: Canadian Criminal Law Review, Toronto, n. 11, pp. 97-139, feb. 2007.

8 NAGORNEY, Kara Anne. A noble profession? A discussion of civility among lawyers, In: Georgetown Journal of Legal Ethics, n. 12, pp. 815-827, 1999.

9 FREEDMAN, Monroe. Lawyers’ ethics in an adversarial system, pp. 09 e ss. Indianapolis: Bobbs-Merrill, 1975.

10 ABREU, Carlos Pinto de. Estratégia processual: De uma visão bélica para uma perspectiva meramente processual. Coimbra: Almedina, 2014. Entre nós, ver: ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: EMais, 2020.

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