Opinião

Soberano, ma non troppo

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8 de julho de 2020, 18h11

Um estudante de Direito europeu que aportasse em terras brasileiras para um intercâmbio acadêmico seria impactado com diversas contradições sistêmicas de nossa realidade jurídica. Ainda que tentassem convencê-lo de que adotamos o sistema processual penal acusatório, bastar-lhe-ia uma visita a um fórum e acompanhar algumas audiências judiciais para que ele lançasse uma pergunta aos seus interlocutores: mas, afinal, o que vocês entendem como modelo acusatório?

O recente "pacote anticrime", ao expressamente declarar aquilo que já dizia a Constituição Federal, talvez em letras mais sutis, ainda não teve o condão — seja pela brevidade de seu período de vigência, seja pela arraigada prática jurisdicional inquisitiva, que permanece em outros tantos institutos da legislação processual — de expurgar a inevitável conclusão de que na persecução penal no Brasil há um peso desproporcionalmente reduzido em relação às garantias defensivas, o que se reflete em tristes recordes de aprisionamentos, com inegável recorte sócio-racial, em contrapartida à falta de investimentos em alternativas penais, sobretudo, para delitos sem violência ou grave ameaça à pessoa. É a conhecida máxima do "prende-se muito, mas se prende mal".

Outro campo que causaria espanto ao jovem estrangeiro seria a adoção do procedimento do júri em nossa legislação. Perguntaria ele aos já aflitos cicerones: "Mas vocês não seguem a civil law? Como compatibilizar o júri com o Direito codificado? Como compatibilizá-lo com o sistema recursal?". Após tentarem explicar sobre a influência constitucional estadunidense, ainda à época do Império; falarem sobre sua natureza de garantia individual e cláusula pétrea constitucional e, ainda, insistirem que o júri é soberano — muito embora o tribunal togado possa rescindir o seu resultado e determinar um novo julgamento, mesmo sem saber os fundamentos do veredicto —, os anfitriões desistiriam e convidariam o pálido e assustado intercambista para uma conversa de bar.

Esse assombro do fictício estudante alienígena, ainda que estejamos mais ambientados, continua a nos aturdir. Dois dos últimos episódios desse enredo podem ser vislumbrados no próprio STF, nas Repercussões Gerais dos Temas nº 1068 e 1087, que envolvem o tribunal do júri, tratando, respectivamente, da possibilidade de execução provisória de condenação emanada do veredicto, ainda em primeira instância, e da possibilidade de tribunal de segundo grau determinar a realização de novo júri em recurso interposto contra absolvição assentada no quesito genérico, ante suposta contrariedade à prova dos autos.

Embora aparentemente distintos, os dois temas possuem íntima relação e os debates que deles se extraem refletem a dificuldade de absorção de um modelo de julgamento típico de países que adotam o Direito consuetudinário, em que os jurados julgam de acordo com sua íntima convicção, podendo, inclusive, negar a incidência da lei a determinado caso concreto. No Direito estadunidense, que possui um volume de julgamentos pelo tribunal do júri muito superior ao brasileiro, a Suprema Corte já admitiu a possibilidade de os jurados — cujas decisões de mérito são incontrastáveis pela magistratura togada — absolverem um réu mesmo em contrariedade à lei ou à prova dos autos. O jury nullification [1] é reconhecido como uma cláusula inerente ao tribunal do júri, refletindo um dos efeitos da soberana vontade popular, que pode, inclusive, se opor à lei no caso concreto.

Ao lado dessa concepção de soberania dos veredictos, o sistema processual penal dos Estados Unidos não admite a interposição de recurso de mérito pela acusação. Entende que se a persecução penal levada a efeito pelo Estado não foi suficiente para ensejar a condenação do acusado, não poderia o poder estatal submeter o indivíduo a um novo risco de condenação. É a conhecida cláusula no double jeopardy [2] inserta na Quinta Emenda à Constituição daquele país[3]. No entanto, como decorrência inerente à inaceitável perpetuação de erros judiciários contra o indivíduo pelo Estado, admite-se a revisão da condenação em favor do réu, o que não significa, no país em que o modelo processual penal acusatório mais se destaca, disparidade de armas, já que o poderio estatal, com todo o seu aparato investigativo e persecutório, sempre será superior ao da defesa [4].

Essa díade de exemplos contrapõe-se à linha já sustentada em face dos temas de repercussão geral acima mencionados. Com o risco de termos decisões do Supremo Tribunal Federal que, de um lado, afirmem a possibilidade de execução provisória dos veredictos condenatórios do tribunal do júri, sem trânsito em julgado, e, de outro, que impossibilitem os jurados de exercerem livremente seu poder de absolver, construir-se-ia mais um capítulo da contradição tupiniquim, pois o que se ensejará, na prática, será apenas a soberania para se condenar.

Essa dura conclusão é facilmente perceptível nos dados extraídos dos julgamentos das apelações interpostas pela acusação e pela defesa em face de decisões proferidas pelo Conselho de Sentença. Em uma recente pesquisa realizada junto ao sistema do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, com os recortes de recursos exclusivos de apelação em que a ementa contenha a expressão "manifestamente contrário/contrária à prova", nos termos do artigo 593, III, "d", do Código de Processo Penal, buscaram-se os últimos 200 acórdãos proferidos sobre o tema, entre dezembro de 2019 e junho de 2020, independentemente da Câmara julgadora [5]. Eis o resultado:

Das 200 apelações, 174 foram interpostas exclusivamente pela defesa e 23 apenas pelo Ministério Público. Duas apelações foram interpostas por ambas as partes.

Das 176 apelações apresentadas pela defesa, em apenas um acórdão decidiu-se pela rescisão do julgamento e submissão do réu a novo júri. Isso representa um êxito da defesa de 0,56%. Nesse ponto, aliás, a garantia de acesso aos tribunais superiores torna-se medida das mais eficazes na preservação de direitos e garantais, pois é certo que, em muitos casos, a defesa somente alcança sua pretensão com o manejo de recursos interpostos contra decisões de segundo grau.

Das 25 apelações apresentadas pelo Ministério Público, em dez a corte recursal decidiu pela realização de novo júri, o que indica um êxito de 40%.

Em uma análise superficial, tal cenário poderia induzir o raciocínio do acerto em se permitir a execução provisória das condenações do júri, em detrimento do que já decidiu o próprio STF nas ADCs 43, 44 e 54. No entanto, para que essa linha de pensamento prevalecesse, necessário seria conceber um sistema imune a erros condenatórios —, algo inimaginável — e que a estabilidade da decisão do Conselho de Sentença também albergasse as decisões favoráveis ao acusado. Mas se percebe na prática um juízo seletivo sobre a força dos veredictos, pois uma pessoa submetida a um primeiro risco de condenação em um julgamento pelo júri tem, caso absolvida pelos jurados, grandes chances de vir a ser novamente conduzida a um novo julgamento de mérito.

Ao contrário do preceito no double jeopardy, temos no sistema processual do júri brasileiro o duplo risco condenatório, com um cenário em que, para o réu ser absolvido, deva ser submetido a dois Conselhos de Sentença distintos, o que nos coloca em dissonância de qualquer outro modelo de julgamento por jurados que se tenha conhecimento.

Espera-se do Supremo Tribunal Federal que, ao revisitar a instituição do tribunal do júri — cláusula pétrea de autocontenção do poder estatal —, revigore a força e o significado da soberania dos veredictos, não como instrumento de condenação ou de violação de direitos, mas como resgate de sua essência existencial: a garantia da liberdade e da justiça.

 


[1] Jury nullification. A jury´s knowing and deliberate rejection of the evidence or refusal to apply the law either because the jury wants to send a message about some social issue that is larger than the case itself or because the result dictated by law is contrary to the jury´s sense of justice, morality or fairness. GARNER, Bryan A. (editor). Black’s law dictionary. Thomson West: Connecticut, 8. ed., 2004, p. 875. Livre tradução: "A consciente e deliberada rejeição do júri à evidência dos autos ou na recusa de aplicar a lei, seja porque o júri quer enviar uma mensagem acerca de uma questão social que transcende o próprio caso em julgamento, seja porque o resultado decorrente da aplicação da lei é contrário ao senso de justiça, moral ou equidade do júri".

[2] Como afirma Julio Maier, "o direito anglo-saxão interpreta de forma mais estrita a proibição da múltipla persecução penal – ne bis in idem –, princípio formulado como uma proibição de submeter o acusado a um risco múltiplo de sofrer uma conseqüência jurídico-penal (double jeopardy), ao qual se agregam outros princípios básicos do procedimento penal, como o juízo público perante o júri e a concepção do recurso do acusado contra a condenação como uma garantia processual penal". Derecho processal penal: fundamentos. 2. ed., 3. reimp. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004, V.1, p. 633.

[3] "Ninguém poderá pelo mesmo crime ser duas vezes ameaçado em sua vida ou saúde", cláusula impeditiva de recurso acusatório contra o veredicto de absolvição. ANSANELLI JÚNIOR, Angelo. O tribunal do júri e a soberania dos veredictos. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005, p. 197.

[4] Para Jaques de Camargo Penteado, o Estado possui meios adequados para o acertamento do fato durante a investigação e instrução processual, podendo "alcançar a efetividade do processo sem o emprego sistemático do duplo grau de jurisdição". Já o réu, segundo Penteado, "merece um tratamento legal diverso daquele proposto para o acusador em face do duplo grau de jurisdição, pois, estando aquele inferiorizado na fase investigatória e na esfera de admissibilidade da acusação, deve ser equilibrada a posição desses sujeitos processuais com a extensão do regramento constitucional da ampla defesa para o âmbito do duplo grau de jurisdição, prevendo-se o acesso da defesa ao juízo superior para reexame da questão de fato e da questão de direito, sem restrição alguma, o que está em consonância com o texto constitucional integrado pelos documentos internacionais de proteção aos direitos humanos". PENTEADO, Jaques de Camargo. Duplo grau de jurisdição no processo penal: garantismo e efetividade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 175.

[5] A pesquisa foi realizada com o auxílio do estagiário de Direito Victor Andrade.

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