Tribuna da Defensoria

A crise da Covid-19 e a tecnologização da Defensoria Pública

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7 de julho de 2020, 8h00

A garantia supraconstitucional do efetivo acesso à justiça, embora sólida por cláusula pétrea, possui conceito teórico evolutivo no tempo.

Tal assertiva se deve ao fato de que a aludida efetividade implica, historicamente, em soluções práticas para a sua concretização, o que remonta às chamadas “ondas" de acesso, consagradas no estudo capitaneado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth1.

A primeira delas – intitulada de “assistência judiciária para os pobres” – partindo da ideia de essencialidade do auxílio de um advogado para tal desiderato, pontua, em linhas gerais, que “os métodos para proporcionar a assistência judiciária àqueles que não a podem custear são, por isso mesmo, vitais2”.

A par dos múltiplos modelos assistenciais conhecidos, fato é que, no Brasil, a Defensoria Pública é a Instituição que recebeu a incumbência constitucional de promover direitos humanos e de garantir a assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados – concretizando aqueles ideais da pioneira onda de acesso à justiça.

Nesse contexto, da mesma maneira que houvera, progressivamente, a transmudação de uma assistência meramente judiciária (estritamente processual) para uma assistência jurídica (ampla, inclusive extrajudicial), seus destinatários também ganharam novos contornos, finalisticamente voltados a uma ampliação para além daquela exclusiva hipossuficiência econômica (derivada do termo “pobre”).

Assim é que, tendo com pano de fundo as "Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condições de Vulnerabilidade" (100 Regras de Brasília)3, chega-se a um campo profícuo e em constante mutação para a exploração de novas situações de vulnerabilidades que, por obstaculizarem vozes nos Tribunais, os habilitam como potenciais usuários da Defensoria Pública.

Uma destas situações contemporâneas é a vulnerabilidade tecnológica, atrelada, em especial, à exclusão digital.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), fundação pública vinculada ao Ministério da Economia, em estudo de 2019 sobre as tecnologias digitais e seus usos4, concluiu que “a falta de acesso à rede repete as mesmas adversidades e exclusões já verificadas na sociedade brasileira no que se refere a analfabetos, menos escolarizados, negros, população indígena e desempregados”.

Na mesma linha, analisando a figura do litigante vulnerável no âmbito do processo civil, Fernanda Tartuce atentou-se à peculiaridade de que “a exclusão digital pode se dar pela insuficiência econômica que impede o acesso a computadores e outros equipamentos. Contudo, não se resume a tanto: há quem, apesar de dispor do aparato físico, tenha dificuldades de utiliza-lo5”.

Exsurge, assim, o questionamento: é possível a utilização de tecnologias digitais do serviço público jurídico-assistencial no Brasil?

A partir de uma análise da gradativa evolução da assistência jurídica no mundo, Diogo Esteves e Franklyn Roger Alves Silva identificaram o surgimento de diversos movimentos (ou sub-movimentos) distintos. Naquilo que passou a ser denominado de sexta onda renovatória de acesso à justiça pela “nova edição do Projeto Florença” (Global Access to Justice Project)6, a Tecnologização da Assistência Jurídica é assim explicada pelos autores:

 

“Dentro do atual cenário mundial de crise econômica e de busca pela otimização de recursos, diversos países passaram a investir em tecnologia como forma de reduzir ou, pelo menos, estabilizar os gastos orçamentários com os serviços jurídico-assistenciais públicos. Atualmente, os serviços de call center são utilizados por grande parte dos modelos de assistência jurídica no mundo, como etapa preliminar para o atendimento presencial ou como forma de prestar orientação jurídica extrajudicial. Essa ferramenta tem possibilitado a redução do custo inerente ao deslocamento físico dos advogados e a maximização do tempo gasto na prestação de orientações jurídicas, além de facilitar a superação de obstáculos geográficos que poderiam dificultar o acesso das classes mais pobres à justiça. A crescente difusão do acesso à internet tem possibilitado, também, o fornecimento de assistência jurídica on-line, seja por intermédio de chats ou, até mesmo, por videoconferência. Outrossim, foram desenvolvidos websites interativos que auxiliam o usuário a resolver pequenos problemas jurídicos (selfhelp systems)” 7

 

No Brasil, já há algum tempo, é verdade, se observa, no cotidiano das Defensorias Públicas (Estaduais e da União), a implementação de recursos tecnológicos, especialmente voltados à divulgação e difusão de informações em sites e redes sociais, e à aproximação do contato entre Instituição e usuário, de maneira mais dinâmica, a partir de aplicativos de mensagens e e-mails, por exemplo.

Todavia, ainda não se tinha visto – antes da pandemia mundial ora vivenciada – a efetiva tecnologização da assistência jurídica, de forma integral e substitutiva ao atendimento presencial.

É cediço que, diante da recomendação mundial das autoridades sanitárias quanto à imprescindibilidade de isolamento social para mitigar os riscos de contágio pelo novo coronavírus, surgiu a necessidade de criação de alternativas capazes de manter o serviço público essencial prestado pela Instituição.

No âmbito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em tempo recorde, foram criados (e estão em pleno funcionamento desde o dia 23 de março de 2020), 110 polos de atendimento remoto para garantir a orientação jurídica à população sem a necessidade de deslocamento8, com fluxo de comunicações por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp, e-mails e telefone – cujas informações foram consolidadas em um site criado especificamente para essa finalidade9. Há, também, atendimentos no plantão noturno diário e nos plantões de feriados e finais de semana – tratando-se, pois, de serviço ininterrupto.

Dados divulgados no site oficial da Defensoria Fluminense dão conta de que, no período compreendido entre a implementação do funcionamento remoto e o dia 17 de junho de 2020, foram registrados 144 mil‬ atendimentos10.

Igualmente, a Defensoria Pública da União11 e Defensorias Públicas de outros estados adotaram a sistemática de informatização de seus atendimentos. Restringindo-nos àquelas da região sudeste, citem-se as Instituições de São Paulo12, Minas Gerais13 e Espírito Santo14.

O que se vê, positivamente, no âmbito da Defensoria do Rio de Janeiro, é que a excepcionalidade da adoção de recursos tecnológicos na atividade-fim, atrelados ao seu caráter temporário, prepondera frente à discussão atinente ao distanciamento digital, nomeadamente porque utilizados justamente para preservar a continuidade do serviço público e implementados com base nos ideais de simplicidade e informalidade.

Dito de outro modo, a informatização da assistência jurídica gratuita carece, justamente, do reconhecimento do status social de vulnerabilidade tecnológica o qual estamos inseridos e da correlata empatia – na mais ampla de suas acepções – para driblar mais este obstáculo de acesso à justiça.

Para tanto, imprescindível a difusão da informação por todos os meios possíveis; a utilização de linguagem simples e absolutamente distanciada de termos técnicos; o oferecimento de alternativas remotas diversas para eventual contato iniciado, mas não compreendido; o reconhecimento da inclusão digital como um direito fundamental; e o acolhimento do usuário.

Os equipamentos postos à disposição também influenciam na qualidade do atendimento remoto. Isso se reflete, por exemplo, na adoção, dentre outros meios, do WhatsApp para o contato direto entre o usuário e a Instituição – aplicativo de troca de mensagens (escritas e por voz) e de compartilhamento de arquivos e fotos absolutamente difundido no país e no mundo15 – sem prejuízo, frise-se, do imediato atendimento pela via telefônica, para a eventualidade de intercorrências diversas, como ausência de acesso à internet.

Acrescente-se, ainda numa ótica favorável ao que se propala, que os casos emergenciais podem ser rapidamente atendidos pela via remota, racionalizando, com ganho de tempo, dificuldades que o atendimento presencial se depara.

Basta relembrar aquelas situações corriqueiras – certamente já vivenciadas por muitos membros – em que surge a necessidade de o assistido ter de proceder a mais de um deslocamento entre sua casa ou hospital (em casos de saúde, por exemplo) e o Núcleo da Defensoria –, para a respectiva coleta e entrega de diversos documentos necessários ao ajuizamento da pretensa demanda. Sem contar o fato de que a deflagração de processos judiciais, atualmente, se dá exclusivamente pela via eletrônica.

Todavia, na contramão do aduzido, isto é, para que tudo dê errado, basta, voluntariamente, distanciar-se da compreensão de que a máquina pública deve funcionar em prol do povo e fechar os olhos para exclusão digital.

É o que se vê no âmbito do Governo Federal. Há uma verdadeira peregrinação16 de muitos brasileiros para a obtenção do “auxílio emergencial”, suporte financeiro para trabalhadores informais, cujo acesso se efetiva através de complexo aplicativo digital. Complexo, note-se, do ponto de vista do vulnerável tecnológico – a partir do abstrato exercício de nos colocarmos na mesma situação em que este se encontra – e de, sobretudo, reconhecer e compreender que se trata de um cenário social comum em nosso país.

Pensamos, no que tange à utilização de tecnologias digitais no serviço público jurídico-assistencial, como Franklyn Roger Alves Silva, para quem “as medidas dessa natureza devam ser internalizadas pela Defensoria Pública como instrumentos colocados à disposição do membro da instituição, mas jamais apresentados como alternativa ao atendimento institucional”.17

Mas podemos ir além. A assistência jurídica gratuita, notadamente a prestada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, se mostrou efetiva no pior dos cenários possíveis, inspirando modelos mundo afora18.

Outras nações também revelaram nível satisfatório, se considerada, é claro, a abrupta e excepcionalíssima mudança de padrões e a comparação com o próprio funcionamento, nas mesmas condições, do sistema judicial em si (historicamente mais privilegiado com equipamentos e recursos financeiros), como constatou a recente pesquisa sobre os Impactos do COVID-19 nos Sistemas de Justiça em todo o mundo, promovida pelo Global Access to Justice Project, coordenada por Alan Paterson, Anna Barlow, Bryant Garth, Cleber Alves, Diogo. Esteves, Earl Johnson Jr., Kim Economides e Peter Biggelaar19.

A forçada mudança de paradigma, do “analógico” para o “digital”, que já era fomentada no texto das "Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condições de Vulnerabilidade" (100 Regras de Brasília)20” pode deixar, como herança, um serviço público jurídico-assistencial mais moderno e, portanto, mais eficaz.

Em análise sobre o contexto da pandemia no âmbito do próprio sistema de justiça, Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave e Marco Bruno Miranda Clementino igualmente refletiram que “se, de um lado, percebemos que os avanços tecnológicos já nos ofereciam bem mais do que imaginávamos, o fato é que a tradição nos fazia resistir ao aproveitamento de todo esse potencial”21.

Novas perspectivas, antes inexploradas, agora vieram à tona, e o futuro se incumbirá de trazer outras, de modo que não há outra conclusão senão compreender, em definitivo, que não há mais como voltar atrás.

 

 

 

1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editora, 1988. p. 31.

2 IDEM. p. 32.

3 Capítulo I, Seção 2, Regra 03: "Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico".

4 DA SILVA, Frederico Augusto Barbosa; ZIVIANI, Paula; GHEZII, Daniela Rivas. As Tecnologias Digitais e seus usos. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_uuu2470.pdf>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

5 TORRES, Fernanda. Vulnerabilidade processual no Novo CPC. Disponível em: <http://www.fernandatartuce.com.br/wp-content/uploads/2016/01/Vulnerabilidade-no-NCPC.pdf>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

6 GLOBAL ACCESS TO JUSTICE PROJECT. Book Outline, 2020. Disponível em: <http://globalaccesstojustice.com/book-outline/>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

7 ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 3. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. p. 36.

8 DEFENSORIA PUBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/10089-DPRJ-cria-109-polos-de-atendimento-remoto-e-fecha-servico-presencial>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

9 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Disponível em: <https://coronavirus.rj.def.br/>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

10 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Polos remotos já contabilizam 144 mil atendimentos durante pandemia. Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/10376-Polos-remotos-ja-contabilizam-144-mil-atendimentos-durante-pandemia>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

11 DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Disponível em: <https://www.dpu.def.br/contatos-dpu>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

12 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Disponível em: <https://www.defensoria.sp.def.br/dpesp/Default.aspx?idPagina=6725>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

13 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Disponível em: <https://defensoria.mg.def.br/index.php/2020/04/30/funcionamento-da-defensoria-publica-ate-15-5-2020-resolucao-conjunta-no-003-2020/>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

14 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. Disponível em: <http://www.defensoria.es.def.br/site/>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

15 AGENCIA BRASIL. Usuários de smartphone devem atualizar WhatsApp, orienta empresa, 2020. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-05/usuarios-de-smartphone-devem-atualizar-whatsapp-orienta-empresa>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

16 FOLHA DE SÃO PAULO. Dificuldade com Caixa tem motiva fila do auxílio emergencial, 2020. Disponível em: <https://agora.folha.uol.com.br/grana/2020/05/dificuldade-com-caixa-tem-motiva-fila-do-auxilio-emergencial.shtml>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

17 SILVA, Franklyn Roger Alves. Tecnologia da informação como recurso ou obstáculo ao acesso à Justiça, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-mai-07/tribuna-defensoria-tecnologia-informacao-recurso-ou-barreira-acesso-justica>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

18 DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Assistência Jurídica da Tanzânia se inspira no modelo da DPRJ, 2020. Disponível em: <http://www.defensoria.rj.def.br/noticia/detalhes/10212-Assistencia-juridica-da-Tanzania-se-inspira-no-modelo-da-DPRJ>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

19 GLOBAL ACCESS TO JUSTICE PROJECT. Impactos do COVID-19 nos Sistemas de Justiça, 2020. Disponível em: <http://globalaccesstojustice.com/impacts-of-covid-19/?lang=pt-br>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

20 Capítulo IV, Seção 5, Regra 95: "Procurar-se-á o aproveitamento das possibilidades que o progresso técnico possa oferecer para melhorar as condições de acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade".

21 PRESGRAVE, Ana Beatriz Ferreira Rebello; CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. Da videoconferência à teleaudiência: tradição cede à inafastabilidade da jurisdição. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-02/opiniao-videoconferencia-teleaudiencia>. Acesso em: 19 de maio de 2020.

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