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Privatização da Petrobras, o barco de Teseu e o desvio de finalidade

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

7 de julho de 2020, 8h00

Spacca
Foi noticiado pela imprensa, e destacado pela ConJur em sua manchete principal, que as Mesas do Senado e da Câmara dos Deputados enviaram Manifestação ao STF no dia 1º/7 requerendo que seja concedida medida liminar incidental nas ADIs nº 5.624, 5.846 e 5.924, a fim de que "seja explicitado que a criação artificial de subsidiárias, isto é, a constituição de novas subsidiárias a partir de desmembramentos da empresa-matriz, quando se cuidar de um processo não orientado por novas oportunidades de negócios, mas sim pelo interesse na alienação de ativos, configura desvio de finalidade, sendo prática proibida e inconstitucional". O texto em debate no STF é o art. 29, inc. XVIII, da Lei nº 13.303/2016, e a aplicação do regime especial de desinvestimento do Decreto nº 9.188/2017.

A questão central consta da liminar concedida em 06/06/19, que, pelo voto médio do Plenário do STF, referendou liminar monocrática deferida pelo Ministro Ricardo Lewandowski. No item I da ementa consta que “a alienação do controle acionário de empresas públicas e sociedades de economia mista exige autorização legislativa e licitação pública”.

A discussão está no item II da referida ementa, pois estabeleceu que “a transferência do controle de subsidiárias e controladas não exige a anuência do Poder Legislativo e poderá ser operacionalizada sem processo de licitação pública, desde que garantida a competitividade entre os potenciais interessados e observados os princípios da administração pública constantes do art. 37 da Constituição da República.”

Alegam as Mesas do Congresso que está em curso o seguinte procedimento pela Petrobrás, desviando o caso do item I da ementa, para o item II: “cria-se uma subsidiária, transferem-se ativos da controladora para a subsidiária criada e vende-se, sem licitação, o controle acionário dessa subsidiária. Ou seja, a Petrobras está criando novas empresas subsidiárias com a finalidade apenas de vender seus ativos, em absoluto desalinho com o art. 64 da Lei do Petróleo”. Como consta da reportagem da Conjur, escrita por Fernanda Valente, está havendo uma “criação artificial” de subsidiárias de estatais.

A decisão do STF foi tomada pelo voto médio em liminar plenária, mas pende a decisão de mérito das ADIs.

Em breve síntese: o que o STF decidiu liminarmente foi que, para vender a “empresa matriz”, criada por lei, é necessária autorização legislativa (item I da ementa), todavia, para vender as “empresas subsidiárias e controladas”, criadas através de instrumentos contratuais e não por lei, não é necessária autorização do Congresso e nem processo licitatório (item II da ementa).

O que alegam as Mesas do Senado e da Câmara?

Que a Petrobras “retomou o processo de alienação de ativos e deverá concluir a venda da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, até o final do ano, bem como que marcou para o próximo dia 13 de agosto a entrega das propostas vinculantes para a Refinaria do Paraná (Repar)”.

Além disso, informa que a Petrobras pretende vender ainda a Refinaria Abreu e Lima (RNEST) em Pernambuco, a Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP) no Rio Grande do Sul, a Refinaria Gabriel Passos (REGAP) em Minas Gerais, a Refinaria Isaac Sabbá (REMAN) no Amazonas, a empresa Lubrificantes e Derivados de Petróleo do Nordeste (LUBNOR) no Ceará e a Unidade de Industrialização do Xisto (SIX), assim como seus ativos logísticos correspondentes.

Relata ainda a Manifestação que “o modelo prevê a criação de empresas subsidiárias, reunindo ativos da região Nordeste e Sul do país. A Petrobras pretende vender 100% de sua participação acionária a partir da criação dessas novas empresas.”

A síntese das alegações é que “a decisão tomada pela Suprema Corte será, em sua essência, fraudada, pois, por meio desse expediente de desvio de finalidade, a soberania popular estará privada de influenciar os contornos da venda substancial de ações da empresa matriz”. A problema é que, segundo o “programa de desinvestimentos, a empresa anunciou ao mercado a pretensão de alienar todos os seus ativos de refino”, o que já foi aprovado pelas instâncias deliberativas da Petrobras, iniciando dia 13 de agosto – daqui há menos de 60 dias. E, na sequência, vender a integralidade das ações de todas as demais refinarias mencionadas.

O processo foi dirigido ao Relator das ADIs, Ministro Ricardo Lewandowski, que ainda não se manifestou.

Esse debate me fez lembrar um antigo mito grego sobre o barco de Teseu, relatado por Plutarco. Em tempos históricos, cerca de 1.200 a.C., Atenas estava subjugada à Creta, e era obrigada a enviar parte de suas riquezas e de seus jovens ao dominador, visando manter a relação de subordinação. Depois de algum tempo nessa situação, o ateniense Teseu foi à Creta, matou o lendário Minotauro, destruiu a máquina de dominação e libertou seu povo daquele jugo. Em júbilo, a população preservou o barco de Teseu como um símbolo daquele feito heroico. Ao longo dos séculos partes do barco se deterioraram e ele foi sendo restaurado. As madeiras que haviam sido substituídas eram despejadas em um armazém.

Certo dia, um forasteiro, entusiasmado com a história de Teseu, pediu para ver seu barco e os atenienses lhe mostraram o restaurado, o que o decepcionou. Pediu então para ver o original, tendo-lhe sido apresentados os destroços acumulados no armazém. Partiu decepcionado, pois o original era apenas um amontoado de tábuas velhas, e o que então se apresentava não era aquele do herói ateniense, mas uma réplica.

Muitos filósofos se debruçaram sobre esse assunto, que se tornou conhecido como o paradoxo do barco de Teseu ou o paradoxo da substituição, dentre eles Hobbes e Leibniz, o que aponta para a complexidade do assunto, que pode ser assim descrito: até que ponto a substituição de partes de um todo, mantém o todo original?

Correndo o risco de simplificar ao extremo, mas buscando ser didático, usarei um exemplo popular e contemporâneo: se todos os jogadores do time do Flamengo, atual Campeão Brasileiro de Futebol, Campeão da Taça Libertadores e Vice-campeão mundial, fossem integralmente substituídos pelos jogadores do time do Olaria, ele ainda seria o mesmo Flamengo? A resposta é sim e não. O nome do time ainda seria Flamengo, mas, na essência, seria outro time, não o atual, muitas vezes campeão.

Retornemos à Petrobras. Diversamente do barco de Teseu ou do time do Flamengo, sequer haverá substituição, pois o que se apresenta no caso é o esvaziamento da empresa, sem nada colocar em seu lugar. É como se todos os jogadores de futebol do Flamengo fossem vendidos, sem substituição, e o departamento de futebol daquele clube fosse simplesmente extinto. Ou como se a epopeia de Teseu fosse simplesmente esquecida ou sequer tivesse ocorrido.

No caso, não ocorre nem o paradoxo descrito, pois, segundo alegado na Manifestação, a Petrobrás está alienando suas partes sem que haja autorização legislativa e licitação, o que só subsistiria para a venda da empresa matriz. Partida e repartida a empresa matriz, no que é seu objeto social, o que dela restará? Apenas o nome e os móveis e utensílios que guarnecem sua sede, no centro do Rio de Janeiro – nada além.

Vamos ao detalhe da questão, envolvendo forma e essência, tal como no caso do barco de Teseu.

Os Estatutos da Petrobras indicam que seu objeto social é “a pesquisa, a lavra, a refinação, o processamento, o comércio e o transporte de petróleo proveniente de poço, de xisto ou de outras rochas, de seus derivados, de gás natural e de outros hidrocarbonetos fluidos, além das atividades vinculadas à energia, podendo promover a pesquisa, o desenvolvimento, a produção, o transporte, a distribuição e a comercialização de todas as formas de energia, bem como quaisquer outras atividades correlatas ou afins”.

Em 2013 a Petrobras comprou da Vale uma empresa de fertilizantes, o que não tem correlação com energia — ou seja, não faz parte da essência do seu objeto social. Caso esta empresa ainda esteja em seu portfólio, a Petrobras poderá aliená-la respeitando o item II da ementa da liminar do STF, isto é, sem autorização legislativa e sem licitação.

Porém, para a venda de todas as empresas que executam as atividades vinculadas ao seu objeto social será necessária a autorização legislativa e licitação, a teor do que determina o item I da ementa da liminar do STF. Segundo a Manifestação todas as empresas mencionadas têm direta correlação com o objeto social da empresa, ou seja, fazem parte da essência da Petrobrás, e compõem a totalidade das unidades de refino da empresa.

Acresce-se que, nesta questão há o esvaziamento da empresa matriz. Isoladamente é possível o reposicionamento dos negócios, pois pode haver a compra e venda de refinarias, como uma oportunidade de mercado. O que está sendo alegado é que se pretende vender as partes que compõem o todo, aproveitando-se do fato de que existem regras diferentes para a venda do todo, e para a venda das partes. Eis a razão pela qual o assunto me fez vir à mente o barco de Teseu — e o exemplo do Flamengo.

Observe-se que não se trata de uma questão ideológica ou política, pois o que se debate é o estrito respeito a uma decisão judicial. Pode-se vender, desde que as regras sejam obedecidas.

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    é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

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