Opinião

ADC 58 e suspensão de ações trabalhistas

Autor

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

6 de julho de 2020, 17h31

Há tempos a seara trabalhista tem sido impactada pela interminável discussão quanto à atualização monetária dos respectivos créditos judiciais. Em um último desdobramento, no último dia 27 o ministro Gilmar Mendes proferiu liminar nos autos da ADC 58 determinando a suspensão do julgamento dos processos em curso na Justiça do Trabalho que envolvam a aplicação dos artigos artigos 879, §7 (atualização dos créditos judiciais trabalhistas pela Taxa Referencial — TR), e 899, §4º (atualização dos depósitos recursais pelos mesmos índices da poupança), ambos da CLT, e artigo 39 da Lei 8.177/91 (atualização pela TRD e juros de mora de 1% ao mês).

A TR, criada nos anos 90 para a desindexação da economia, reflete a remuneração de algumas aplicações bancárias (artigo 1º da Lei nº 8177/91), não se destinando a medir o poder de compra da moeda, sendo tradicionalmente inferior a índices focados nesta última finalidade (como INPC ou IPCA). Por tal razão, os créditos trabalhistas e outros créditos judiciais "atualizados" pela TR costumavam perder progressivamente valor, encorajando a procrastinação e a inadimplência.

Tal situação ganhou novos contornos, principalmente a partir de 2015, com o julgamento da ADI nº 4357 e do Tema 810 da Repercussão Geral. Em tais ações, a maioria do STF, vencidos os ministros Gilmar Mendes e Dias Toffoli, entendeu pela inconstitucionalidade da TR como atualização de créditos contra a Fazenda Pública. A Corte entendeu que tal violava diversas garantias constitucionais como o direito fundamental de propriedade do credor (artigo 5º, XXII), coisa julgada (artigo 5º, XXXVI), isonomia (artigo 5º, caput) e princípio da separação dos Poderes (artigo 2º), além da eficácia e efetividade do título judicial [1].

No entanto, na recente liminar, o relator entendeu que as decisões da Justiça do Trabalho afastando o uso da TR não se amoldavam às decisões proferidas pelo STF, já que, no seu "sentir, teria o condão de estabelecer uma distinção que aparta o caso concreto da controvérsia tratada no Tema 810, tornando inviável apenas se considerar débito trabalhista como ‘relação jurídica não tributária". O relator tece ainda conjecturas quanto à urgência do momento pandêmico, não esclarecendo como isso afeta a análise de constitucionalidade de norma perene, não destinada ao enfrentamento da emergência da Covid-19.

Em suma, para o relator, haveria distinção entre o contexto fático essencial daqueles julgados do STF invocados (referentes a créditos judiciais contra a Fazenda Pública) e as novas ações relativas aos créditos judiciais trabalhistas. Não explica, entretanto, que distinção é essa e porque impediria os órgãos julgadores da especializada de aplicar o mesmo entendimento do STF ainda mais quando significativa parte dos processos trabalhistas estaria de qualquer forma sujeitos à ratio da ADI 4357 e do Tema 810, quando o devedor é a Fazenda Pública.

Qual seria o motivo para tratar o credor de créditos judiciais trabalhistas contra pessoa privada de forma inferior [2] ao credor judicial em face da Fazenda Pública? Em outras palavras: o tipo de devedor teria sido concebido como fato determinante para a definição da ratio decidendi?

Ousamos discordar. Ainda que os julgados acima tenham, por exemplo, discutido a constitucionalidade do artigo 1º-F da Lei 9.494/1997, no contexto das condenações da Fazenda Pública, tal contexto é juridicamente irrelevante para a conclusão de nossa Suprema Corte. Vejamos a ratio decidendi dos julgados paradigma:

Fato A: a utilização do índice aplicado à caderneta de poupança TR;

Fato B: a atualização de créditos judiciais;

Resultado: viola a constituição (por restringir desproporcionalmente o direito fundamental à propriedade, a coisa julgada e a isonomia).

A inconstitucionalidade se dá conforme disse a Corte por restringir desproporcionalmente o direito fundamental à propriedade, a coisa julgada e a isonomia, porque falha ao manter hígido o poder de compra do valor veiculado no título judicial. É, portanto, juridicamente irrelevante se o devedor do título é a Fazenda Pública ou ente privado.

É em tal senda a lição da praticamente uníssona doutrina especializada, no sentido de que a eficácia vinculante de um precedente se dá quando repetida a mesma questão jurídica dentro das mesmas balizas fáticas juridicamente essenciais ("material facts", na doutrina de Goodhart), que constituem os "fundamentos determinantes" ou ratio decidendi de um precedente [3]. Como a aplicabilidade de um precedente pressupõe a identidade dos fatos essenciais, eventual diferença fática deve ser examinada com cuidado para verificação de sua essencialidade para a questão jurídica sub judice, podendo ser: 

a) Juridicamente irrelevante (immaterial), não afetando a similitude entre os dados essenciais do caso precedente e do atual; se os fatos essenciais daquele estiverem presentes neste, cabe a aplicação vinculante da mesma ratio decidendi (following); 

b) Juridicamente relevante e grave a ponto de ensejar a recusa à aplicação do precedente (distinguishing); ou

c) Juridicamente relevante, mas não a ponto de ensejar solução diversa ao novo caso ficando o juiz do caso atual livre para inspirar-se no precedente, adotando raciocínio analógico (analogical reasoning[4].

De todo o modo, ainda que respeitosamente se discorde em nível acadêmico da decisão liminar em comento, e que se acredite possível sua reforma quando reexaminada pelo Plenário, ou mesmo pela presidência do STF, é essencial que examinemos seus desdobramentos práticos.

Em primeiro lugar, veja-se que, ao contrário de outras decisões de suspensão prolatadas pelo STF, a decisão acima não suspende o trâmite dos processos que envolvam os artigos 879, §7, e 899, § 4º, da CLT, e 39, caput e §1º, da Lei 8.177/91 mas apenas o julgamento. Isso quer dizer que:

1) Na fase de conhecimento, não é necessário suspender o trâmite do processo, que causaria um trágico lockdown na Justiça do Trabalho [5]Primeiramente, veja-se que existe a técnica de julgamento do processo por capítulos (artigo 356 do CPC), prosseguindo-se no julgamento dos itens não suspensos da sentença ou do recurso. Em segundo lugar, o julgador pode inclusive nada suspender desde que deixe para julgar a taxa de juros e atualização monetária na fase de liquidação. Tratando-se de matéria acessória, não se justifica o tumulto e procrastinação da fase de conhecimento no aguardo de tal definição, sendo pacificamente admissível a resolução de tais tópicos em sede de liquidação, conforme Súmula 211 do TST [6].

2) Nas fase de liquidação e de execução, a apresentação de cálculos pelas partes, ou a busca, constrição e alienação de bens, não constituem "julgamento" quanto aos índices de atualização ou taxa de juros, não havendo necessidade de suspensão, até que seja efetivamente provocada uma discussão acerca dos mesmos, colocando-se o juiz em posição de julgar quais são efetivamente aplicáveis. Tal que ocorrerá, naturalmente, quando o juiz tiver de enfrentar as impugnações à conta (artigo 879, §2º, da CLT), ou julgar embargos à execução ou impugnação à sentença de liquidação, ou ainda quando o tribunal estiver diante do julgamento do correspondente agravo de petição.

No entanto, havendo que prolatar julgamento em sede de execução acerca de controvérsia que envolva a aplicação dos artigos artigos 879, §7, e 899, §4º, da CLT, ou o artigo 39, caput e §1º, da Lei 8.177/91, ainda assim, não necessitará o julgador suspender o processo como um todo, mas apenas o julgamento da questão:

2.1) Para tanto poderá determinar a apresentação de dois cálculos, um utilizando a TR e outro o IPCA-E;

2.2) Ficará suspenso o julgamento quanto ao índice correto de atualização até ulterior decisão do STF e portanto obstada a liberação, ao credor, da diferença entre o cálculo pela TR e o cálculo pelo IPCA-E;

2.3) Os valores incontroversos (cálculo com atualização pela TR) poderão ser liberados imediatamente ao credor;

2.4) Pelo poder geral de cautela (artigos 765 da CLT e 139 e 300 do CPC), a fim de resguardar o resultado útil da execução, poderá o julgador manter a busca de bens para a garantia do juízo pelo valor global, conforme cálculo atualizado pelo IPCA-E, ainda mais ante a verossimilhante aplicabilidade de tal índice, dado o vetor desenhado pelo próprio Pleno do STF na ADI 4357 e no Tema 810 da repercussão geral, não aparentando existir distinguishing válido para aplicar, ao credor trabalhista hipossuficiente, atualização inferior quando o devedor não for integrante da Fazenda Pública.

 


[1] Conforme síntese da ratio decidendi do STF no voto vencedor da ADI 4357, mencionada no acórdão TST-ArgInc-479-60.2011.5.04.0231, p. 21.

[2] Com atualização inferior aos demais índices, zerada desde 2017.

[3] Ver GOODHART, Arthur L. Determining the ratio decidendi of a case. The Yale Law Journal, v. 40, nº 2, 1930, p. 162 e ss.; SCHAUER, Frederick. Precedent, Standford Law Review, v. 39, n. 3, 1987, p. 571 e ss; assim como a quase totalidade da doutrina nacional. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. 4ª ed. revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 163 e ss.

[4] Ver, de forma geral: PRITSCH, Cesar Zucatti. Manual de prática dos precedentes no processo civil e do trabalho: atualizado conforme o CPC de 2015 e Reforma Trabalhista. Ver ainda PRITSCH, Cesar Zucatti. Como identificar a ratio decidendi e aplicar ou distinguir um precedente? In Precedentes no Processo do Trabalho: Teoria Geral e Aspectos Controvertidos. Coord. Cesar Pritsch, Fernanda Junqueira, Flávio Higa e Ney Maranhão. Editora Revista dos Tribunais, 2020.

[5] GASPAR, Danilo Gonçalves; FERNANDEZ, Leandro. ADC 58: Lockdown na Justiça do Trabalho? Instituto Trabalho em Debate, 28/6/2020. Disponível em <http://trabalhoemdebate.com.br/artigo/detalhe/adc-58-lockdown-na-justica-do-trabalho>.

[6] Tal entendimento é pacífico em diversos Tribunais Regionais, a exemplo do TRT da 4ª Região (4ª Turma, 0000615-36.2010.5.04.0023 RO, em 3/10/2018, Desembargadora Ana Luiza Heineck Kruse – Relatora).

Autores

  • Brave

    é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal, juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA), conselheiro da Escola Judicial e membro da Comissão de Jurisprudência do TRT da 4ª Região.

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