Segunda Leitura

A criação dos Tribunais de Justiça após a Proclamação da República

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de julho de 2020, 8h02

Proclamada a República em 15 de novembro de 1889, passou o Brasil por absoluta modificação no seu sistema de governo, inclusive o sistema de Justiça, que se transformou radicalmente. O Poder Judicial do Império, com as suas várias instâncias com o Supremo Tribunal de Justiça no ápice, cederam espaço a um novo Judiciário.

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Figuras que marcaram nossa história, como Rui Barbosa e Campos Salles, lutaram pela criação de uma Justiça Federal, nos moldes da existente nos Estados Unidos da América do Norte. E assim, antes mesmo de uma nova Constituição Republicana, surgiu o Decreto-lei 848, de 11 de outubro de 1890, criando a Justiça Federal, composta pelo Supremo Tribunal Federal e por juízes federais de primeira instância.

Mas, se juízes federais passaram a existir, para decidir os conflitos de interesse da União, juízes de Direito, agora estaduais e não mais das províncias, precisavam continuar na sua missão de julgar os demais casos. O Brasil poderia ter seguido o modelo de uma Justiça Nacional única, como a Venezuela, também um estado federal. Mas optou pela dualidade de Justiça, tal como o modelo norte-americano, seguido pelo Canadá e pela Austrália.

A Constituição da República, em 1891, não dispôs sobre o Poder Judiciário nos estados. Limitou-se, nos artigos 60 a 62, a disciplinar regras de recursos e competência. A razão era muito simples: às Constituições Estaduais caberia dispor sobre o seu Poder Judiciário.

Nestes, a reestruturação na primeira instância não apresentava grandes problemas. As comarcas continuariam com seus prédios, juízes e práticas. Mas os 21 novos estados membros que compunham a República dos Estados Unidos do Brasil este era o nome original passaram a ter seus tribunais, sucessores das chamadas Relações, para julgamento dos recursos.

Lenine Nequete relata que, além das denominações diversas, alguns criaram órgãos típicos. Assim, em Alagoas, Bahia e Goiás, foram criados tribunais correcionais ou pequenos júris, em Pernambuco, uma Junta Municipal que conhecia de recursos das sentenças dos juízes distritais, no Piauí e em Alagoas, regra através da qual o tribunal superior seria ouvido quando o governador recusasse a sancionar projeto de lei que entendesse ser inconstitucional [1].

No Estado do Paraná, antes mesmo da primeira Constituição, que é de 4 de julho de 1891, o Decreto nº 1, de 15 de junho daquele ano, dispôs que o órgão da segunda instância se chamaria Tribunal de Apelação e seria composto por cinco desembargadores. Todavia, em 1892, o governador do Estado foi deposto e foi editada nova Constituição. Nela, o Poder Judiciário seria denominado Superior Tribunal de Justiça e seus membros chamados de ministros. A Lei nº 15, de 21 de maio de 1892, alterou o nome para Supremo Tribunal de Justiça [2].

Em Santa Catarina, a Constituição do Estado de 1891 estabeleceu, no artigo 47, que o Poder Judiciário seria exercido por um Superior Tribunal de Justiça, com cinco desembargadores, tendo o Decreto nº 104 detalhado a estrutura do Poder Judiciário. Em 1892, o tribunal veio a chamar-se Relação da Justiça e em 1893 passou por uma das mais conturbadas histórias do Judiciário. O presidente da Província, insatisfeito com uma decisão do presidente da Relação, no dia 8 de abril de 1893 dissolveu o tribunal e nomeou novos desembargadores. Os demitidos protestaram junto ao presidente da República, Floriano Peixoto, sem sucesso. Posteriormente, os fatos transformaram-se, sendo deposto o presidente do Estado, fato que ocasionou intervenção federal com a morte de diversas pessoas, entre elas um juiz e um desembargador. Em seguida, houve a recondução ao cargo do antigo presidente da Relação, J. R. V. Guilhon, e a manutenção de todos os magistrados, os da antiga e os da nova composição.

No Pará, a Justiça de segunda instância era exercida pelo Tribunal da Relação de Belém, instalado em 1874 e extinto após a Proclamação da República, em 19 de junho de 1891, quando foi criado o Tribunal Superior de Justiça. Da mesma forma que no Paraná, a criação antecedeu a Constituição Estadual, que foi proclamada no dia 22 do mesmo mês e ano. Nesta, o tribunal foi mantido com o mesmo nome e composto por sete desembargadores [3].

Na instabilidade política do início da República, o Rio Grande do Sul teve sua Constituição em 14 de julho de 1891. Todavia, "o golpe que depôs Julio de Castilhos, em novembro de 1891, revogou a Constituição Estadual que havia criado o Superior Tribunal do Estado. Somente em 1892, com o retorno de Julio à Presidência do Estado, a Constituição tornou a vigorar" [4]. Na Constituição gaúcha, segundo o artigo 51, §1º, o órgão máximo do Judiciário era chamado de Superior Tribunal, com sede na Casa da Câmara, Praça da Matriz, 2º andar, e composto de nove desembargadores [5].

No Estado de Goiás, a Constituição foi homologada em 1º de junho de 1891 e nela se previa a existência do Superior Tribunal de Justiça, com cinco membros. Tal qual na maioria dos estados, aproveitavam-se os juízes de Direito mais antigos para as novas funções, sendo a escolha do presidente do Estado. Contudo, os primeiros anos da magistratura goiana foram de enorme instabilidade. Revela a história que "crimes, enfrentamento às autoridades, conflitos coronelísticos, falta de magistrados e envolvimento de alguns com as chefias político-partidárias de suas comarcas permaneceram mais arraigados do que no regime monárquico" [6].

O Poder Judiciário da Paraíba teve a sua primeira Corte instalada em 15 de outubro de 1891, sob o nome de Superior Tribunal de Justiça do Estado da Parahyba do Norte, sob a presidência do desembargador Manoel F. C. Andrade.

São Paulo antecipou-se ao governo federal, lançando sua primeira Constituição em 15 de dezembro de 1890. Nela se previa a criação de um Tribunal de Justiça, com nove membros, intitulados ministros. Mas a efervescência política não poupou São Paulo. O presidente do Estado nomeou os nove ministros, mas com a renúncia do marechal Deodoro da Fonseca ele foi deposto. O vice-presidente do Estado assumiu e editou decreto voltando à situação anterior, retornando os desembargadores da Relação até a reorganização da Justiça Estadual, em 1892. Mas foi na Constituição de 1891 que se criou uma inovação significativa, qual seja, a admissão dos juízes de Direito por concurso público (artigo 46) [7]A ousadia gerou revolta de deputados e senadores, tendo sido retirada na Constituição de 1905 e restaurada em 1921 [8].

O Rio de Janeiro tem uma situação especial. Com a proclamação da República, "foram separadas a justiça do Rio e do Distrito Federal. Em 1891 instalou-se, no antigo edifício da Relação, a Corte de Apelação do Distrito Federal, mais alta instância do Poder Judiciário à época" [9]. O então Estado do Rio de Janeiro teve o seu tribunal instalado em Niterói, sua capital.

O Maranhão recebeu a "Relação Maranhense, instalada em São Luís a 04 de novembro de 1813, jurisdicionando do Ceará ao Amazonas e só extinta com a proclamação da República, em 1889", quando foi implantado o Superior Tribunal de Justiça (1891) [10]. Minas Gerais, que teve instalada a Relação de Ouro Preto, então capital da província, em 6 de fevereiro de 1874, com a Constituição Estadual de 1891, instalou sua Corte Estadual, porém mantendo o nome de Tribunal da Relação [11].

Assim, sob nomes diversos e desenvolvendo práticas e características diferentes, os tribunais foram uniformizados na Constituição de 1934 sob o nome de Corte de Apelação, nome este alterado na Constituição de 1945 para Tribunal de Justiça, que até hoje permanece. Todos mantiveram os juízes de paz por décadas, alguns possuíam juízes distritais, outros pretores, que julgavam causas de menor valor ou relevância, sendo que o Rio Grande do Sul e o Pará os mantiveram até a Constituição Federal de 1988.

Atualmente os TJs possuem um grau de autonomia bem menor do que à época da Proclamação da República. Sob controle de uma Constituição Federal minuciosa, supervisionados pelo CNJ, dispõem de espaço pequeno para grandes inovações. Este é um aspecto negativo, porque torna-os semelhantes, reduzindo a criatividade para a solução de problemas específicos.

Todavia, em meio a dificuldades de toda ordem, agravadas por recente crise econômica, seguem os TJs cumprindo seu papel constitucional, mantendo suas tradições (v.g., a abertura do ano judiciário), mas adaptando-se às necessidades da contemporaneidade (v.g., julgamentos virtuais).

 


[1] NEQUETE, Lenine. O Poder Judiciário no Brasil a partir da Independência – II República. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2000, os. 32-33.

[2] O Poder Judiciário e a Emancipação Política do Paraná: Memória e Atualidade. Curitiba: Artes e Textos, 2003, pgs. 121-124.

[3] Memória dos 135 anos: do Tribunal da Relação de Belém ao Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Belém: Marques Editora, 2008, pgs. 63-64.

[4] As sedes do Tribunal. Porto Alegre: Arte Impressa Gráfica e Editora, p. s/nº.

[6] Presença do Tribunal de Justiça na história de Goiás. Goiânia, TJGO, 2010, p. 91.

[8] Tribunal de Justiça de São Paulo. Memória e Atualidade – 1874-2007. São Paulo: Imprensa Oficial, 200, p. 31.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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