Processo familiar

Intolerância, do chaude-colle à violência no confinamento familiar

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

5 de julho de 2020, 8h00

A intolerância familiar não se acha especificada na lei civil, em esfera do direito familista, para efeito de uma definição tipológica, mas os seus casos podem ser investigados em contraponto a concepções como respeito (desrespeito) amparo (desamparo) assistência (desassistência), tratados em diversos dispositivos do Código Civil.

A ideia de tolerância como valor jurídico, nos remete a refletir o seu emprego eficaz como instrumento de estabilidade familiar nos atuais tempos de confinamento.

Há de se exercer a tolerância como um “aporte de segurança” ao equilíbrio de convivência, mecanismo indutor de cumprimento dos valores sociais de proteção da família (cuidado, proteção, respeito). Em lado oposto, a intolerância pode implicar intemperanças verbais, injúrias (graves até) e, ao fim e ao cabo, culminando com a violência doméstica (intrafamiliar), nos planos psicológico e físico.

Exatamente nessa diretiva, a jurisprudência vem evoluindo a entender que os maus tratos (físicos ou emocionais) constituem espécie do gênero injúria, ganhando realce a intemperança verbal, primeiro elemento que se extrai da intolerância manifesta. [1]

No terreno movediço dos confinamentos familiares, as inquietudes do atual tempo atípico, quando não melhor unificam a família, arrastam consigo experimentos sérios de intolerância fácil, gratuita e desmotivada. As famílias assumem suas verdades e mentiras. Casais confinados que se amam, potencializam o amor que já consolidaram; os que (des)acreditam o presumido amor, estão a saber quando mais juntos e mais juntos por mais tempo, o des(amor) que já existia.

Nessa perspectiva tenham-se, de logo, presentes as eventuais intolerâncias que sediadas na exacerbação emocional das palavras, flertam com a injuria ou a materializam dentro do confinamento. Diz-se “chaude-colle”, o primeiro momento de raiva, perto de raiva quente, ou o “calore iracundia” (“De Ira”, do estoico Sêneca).

Em algumas situações concretas tem-se, noutro giro, que a repulsa imediata a uma provocação verbal injusta, mesmo que esta promova a retroversão com a intolerância exacerbada, pode implicar também em injúria reversa (ou, lado outro, em uma forma de excludente da ilicitude), na medida que, à semelhança da “chaude-colle”, guarda circunstâncias fáticas bem precisas e demarcadas.

No ponto, o direito sempre experimentou buscar sua evolução no tema da responsabilidade por maus tratos (físicos ou morais/psicológicos), em superação continuada ao denominado “poder marital”. Citamos, por decisivo:

(i) Exemplo frisante foi o voto (vencido) do desembargador Athos Gusmão Carneiro, do TJRS (depois Ministro do Superior Tribunal de Justiça), ao admitir, pela vez primeira (1982), possível a indenização (art. 159, Código Civil de 1916) por sevícias e injúrias cometidas por ex-marido, já reconhecidas em sentença de desquite litigioso. Esse voto-paradigma constitui a sede pioneira da jurisprudência em torno da reparação civil nas relações conjugais (ou convivenciais). [2]

A respeito de tal julgado, Mário Moacir Porto chegou a ponderar: “o réu, cônjuge delinquente, poderia demonstrar, na ação de indenização, que bater em sua mulher e ofendê-la em sua dignidade nenhum “dano” lhe causara?” [3]. Aliás, o tema da responsabilização civil familiar ganhou maior verticalidade, a partir dos seus estudos doutrinários precursores [4].

A propósito, lei francesa de 02.04.1941 deixou assente que, independente de outras reparações devidas pelos cônjuges contra o qual o divórcio foi pronunciado, os juízes poderão conceder ao cônjuge que obteve o divórcio, perdas e danos pelo prejuízo material ou moral que tenham lhe causado pela dissolução do casamento. O artigo 266 da Lei de Divórcio, na França (de 11.07.1975) repete a previsão legal.

(ii) Cumpre lembrar o Processo de Justificação de Sevícias n. 52, de 1815, quando o atual Supremo Tribunal Federal ainda era a Casa de Suplicação, sob a égide do direito português. Naquela ação, a mulher pedia a separação em face de maus tratos do marido, tendo o juiz do caso acolhido o pedido, em decisão que suscitou intensa polêmica à época. Afinal, a subordinação da esposa ao marido em direitos e obrigações era algo comum, admitindo o direito essa relação de inteira e total dependência.

Pois bem. Seguem-se, com o confinamento que completa, neste domingo (05.07), 112 dias — desde o dia 16/3/2020, quando do primeiro óbito decorrente da Covid-19 — registros de intolerâncias familiares, por seus mais diversos modos, culminando com os atos de violência explicita.

Uma aguda exegese casuística importa distinguir o regular exercício de um direito de não tolerar, que não alcança o exercício arbitrário das próprias razões, por conter-se nos limites da razoabilidade, daquele que excede por representar um exercício anormal da intolerância. Essa ilicitude se extrai dos mesmos parâmetros traçados no artigo 334º do Código Civil português e no art. 187 do Código Civil brasileiro, quanto ao Abuso de Direito, no dizer que “o abuso está no seu uso anormal” (R. Saleilles).

É ilustrativo o caso do senhor feudal, na Alemanha, que fez sepultar a sua mulher, nos domínios do seu castelo, impedindo que o filho de ambos, com quem nutria discórdia, pudesse visitar na propriedade a sepultura de sua mãe. O Tribunal alemão, em acórdão paradigma e histórico, garantiu ao filho enlutado o direito de acesso, coibindo a exorbitância do uso(abuso) de direito de propriedade pelo pai que, em seu significado, também importava em Abuso de Intolerância.

A intolerância é o triunfo do extremo, no ininteligível do agir humano, em pantomima de ritos de encenações desagregadoras. No essencial, a intolerância é um abandono da razão, de realidade inversa, em desproveito da humanidade (ou do ciclo familiar), intermitente, guardando com ela flagrante desaproximação.

De tais formulações, constrói-se a assertiva do dever de não recusar tolerância, quando a intolerância configura transgressão ética contra o sentido de razoabilidade que orienta a temperança e a própria tolerância.

A tolerância é sempre objetivada pelo comportamento mínimo de valores de cooperação ou de respeito de autonomia, a minorar os conflitos (familiares), exorcizá-los ou impedi-los. Tolerância é abertura desmedida de espírito; a intolerância, o fechamento também desmedido e dominante de uma nulificação convivencial.

Diante do elevado espectro das mais graves intolerâncias familiares ocorrentes no confinamento, servem às melhores reflexões, inclusive “de lege ferenda”, as situações seguintes:

(i) Intolerâncias disfuncionais
Famílias confinadas têm sido submetidas, mais das vezes, às desconformidades dialogais com o núcleo familiar, designadamente com o parceiro, ensejadoras de intolerâncias que se colocam culminadas em pugilatos orais, então formadores de injúrias.

Vale relembrar o jurista Orlando Gomes quando advertiu que “os atos de intolerância, em relações típicas de família, devem ter sua repressão independente do dever de indenizar, porquanto podem receber correção por outras formas de sanções civis”.

Essas sanções civis estão formando uma jurisprudência de família, merecedora de registros.

Impõe-se admitir que a ilicitude da intolerância, nessa perspectiva, pode ser modelada como um desequilíbrio no exercício regular de posições jurídicas, significando, de consequência, desvio desconcertante dos valores sociais de um determinado direito ou a identificação de um juízo lógico de censura (reprovação), de acordo com o consenso social (fundamento axiológico).

Mas não é só: a injúria, decorrente da intolerância, é sempre um ato lesivo à dignidade de outrem, permitindo, na seara familiar, identificar, em situação contínua, a quebra da comunhão de vida (art. 1.513, CC) e do princípio da solidariedade familiar. Como injuria, faz-se imperativo acentuar que as reprimendas legais podem ser imediatas.

(ii) Violência doméstica
A violência doméstica não é crime típico à falta de uma tipologia própria, em nosso ordenamento jurídico, quando a Lei nº 11.340/2006, de 07 de agosto (Lei Maria da Penha) não criou figuras penais, remetendo todas as hipóteses de violência ao Código Penal vigente, que se torna insuficiente a enfrentá-la.

No direito português, o crime de violência doméstica extrai-se do disposto no art. 152º do seu Código Penal, introduzido pela Lei nº 59/2007, de 04 de setembro, reunindo os maus tratos físicos; maus tratos psíquicos; ameaça; coacção; injúrias; difamação e crimes sexuais, servindo, portanto, como modelo de repressão mais eficaz [5].

No essencial, consabido que “a família é uma estruturação psíquica onde cada integrante possui um lugar definido…” (Rodrigo da Cunha Pereira) retenha-se, a tanto, que as intolerâncias familiares a configurar injúrias constituem, iniludivelmente, com base nessa premissa, maus tratos de ordem psíquica.

Inegável que a violência doméstica aumentou durante o confinamento, recentes dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) divulgados em relatório Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19 (01.06.20), atualizado a pedido do Banco Mundial, indicam que os casos de feminicídio cresceram 22,2 % entre os meses de março e abril passado, em doze estados do país, em face do ano anterior. Significativo assinalar. ainda, que em pleno confinamento, a procura pelo serviço 190, cresceu 37,6% (abril). [6]

(iii) Alienação Parental
Outra grave intolerância familiar, de maiores recorrências no confinamento, situa-se na ocorrência da Alienação Parental, disciplinada pela Lei nº 12.318/2010, de 26 de agosto, em vizinhanças de completar seus dez anos de vigência.

A situação de danos ou sequelas emocionais sofridas pelos filhos por alijamento da figura paterna tem sido observada durante o confinamento, como resultado de atos (ilícitos) de intolerância. Configura um grave fenômeno de disfuncionalidade nas relações de família, sob o egoístico interesse de prejudicar a relação afetiva paterno-filial.

O atual distanciamento social do genitor não guardião, impedido de condições normais ao regular exercício de convivência, tem sido utilizado por quem detém a guarda singular do(s) filho(s). Demandas em juízos de família tem buscado assegurar o direito de convívio, para que os filhos não sejam vitimizados por uma ausência não deliberada do genitor porquanto imposta pelo outro, a dificultar outros meios de comunicação, como os de visitação virtual, e não somente o da presença física [7].

Tal sucede, na denominada “purga emocional”, quando o(a) genitor(a) procura destruir lembranças que possam evidenciar presente a imagem paterna ou materna, provocando uma ruptura emocional com o passado.

Bem é certo dizer, com o devido acertamento, que a guarda compartilhada, como instituto jurídico (Lei nº 11.698/2008) dinamizado pela Lei nº 13.058, de 22.12.1014, apresenta-se como um importante instrumento dissuasório às práticas de alienação, devendo este regime de guarda representar a solução mais adequada ao melhor interesse da criança e/ou adolescente.

Na alienação parental os pais são desconstruídos, quando a guarda singular se torna um território auspicioso para a prática, em prejuízo ao direito à convivência familiar (art. 1.589, Código Civil), como “princípio básico do direito de família” [8][9].

A alienação parental reclama melhor tratamento normativo, e não a revogação pura e simples da Lei 12.318/2010, como pretende o Projeto de Lei do Senado nº 498/2018, de 06 de dezembro, extraído da CPI dos Maus Tratos, “por considerar que tem propiciado o desvirtuamento do propósito protetivo da criança ou adolescente, submetendo-os a abusadores”, ainda pendente de designação de Relator no Senado Federal (17/4/20) [10].

Quando gravames maiores acontecem nas intolerâncias ditadas pelos inventos de egoísmo e de incompreensão, e a pandemia da Covid-19 deixa inúmeros aprendizados para a humanidade, reservam-se aos atuais protagonistas do confinamento familiar, a exortação lapidar de William Shakespeare:

“Por mais que minhas palavras transbordem em desacatos, não permita, meu coração, que eu as transforme em atos”


[1] A jurisprudência francesa, antes da Lei de Divórcio nº 617, de 1975, já considerava a injúria, constituída por atos contrários às obrigações reciprocas, conjugais ou parentais e não apenas feita na ofensa por palavras.

[2] Acórdão em Revista dos Tribunais n. 560, junho de 1982, pp. 178-186. No caso julgado, teve-se por improcedente o pedido da ação indenizatória, ao fundamento de que a postulante não fizera prova dos danos que alegara, ou mais precisamente, da ocorrência de prejuízo patrimonial que teria resultado das sevícias e injúrias; não se admitindo, em rigor, o dano exclusivamente moral.

[3] PORTO, Mário Moacir. Temas de Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora RT, 1989, 1ª; ed., 187 p., p. 75.

[4] Tratando acerca da Responsabilidade civil entre marido e mulher (Cap. 8), o jurista potiguar expressou: “Entre nós, uma ação de responsabilidade civil entre cônjuges desavindos ainda soa como algo estranho ou inusitado. Mas não há, ao que parece, nada que se oponha ao procedimento, sendo de acrescentar-se que o art. 5º, caput, c/c o art. 19 da lei do Divórcio são, a rigor, desdobramentos do artigo 159 do Código Civil de 1916 (obra cit., p. 70).

[5] Pratica o crime de violência doméstica quem infligir maus tratos físicos ou psíquicos, uma ou várias vezes, sobre cônjuge ou ex-cônjuge, unido/a de facto ou ex-unido/a de facto, namorado/a ou ex-namorado/a ou progenitor de descendente comum em 1.º grau, quer haja ou não coabitação e, ainda, à pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.

[6] Web: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/casos-de-feminicidio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia

[7] Projeto de Lei nº 4488/2016-CD, de 10.02.16, criminaliza os atos, com reversão da guarda, sem prejuízo de a prática da alienação parental também caracterizar calúnia, já prevista como ilícito penal.

[8] ALVES, Jones Figueirêdo. Direito de convivência com filho não se limita a mera visita. Consultor Jurídico, 26.02.2014. Web: https://www.conjur.com.br/2014-fev-26/jones-figueiredo-direito-convivencia-filho-nao-limita-mera-visita

[9] No direito português, o Código Civil lusitano (Lei nº 84/95) expressa no seu artigo 1.88º-A, o seguinte: “Os pais não podem injustificadamente privar os filhos do convívio com os irmãos e os ascendentes”.

[10] Web: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7893728&ts=1587151237465&disposition=inline

Autores

  • é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont)

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