Opinião

TCU assimila como ampliação de poderes o que o STF define como limite de atuação

Autor

4 de julho de 2020, 16h37

No Boletim de Jurisprudência nº 314, o Tribunal de Contas da União veiculou a ementa da seguinte decisão:

"Acórdão 1482/2020 Plenário (Tomada de Contas Especial, Relator Ministro Walton Alencar Rodrigues).

Responsabilidade. Débito. Imprescritibilidade. Omissão no dever de prestar contas. Dolo. Improbidade administrativa.

Configurada a ausência injustificada de prestação de contas como ato doloso de improbidade administrativa tipificado no artigo 11 da Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), a ação que pretende obter o ressarcimento ao erário dos recursos cuja regularidade não foi demonstrada é imprescritível, conforme decidido pelo STF no RE 852.475 (Tema 897)".

A leitura do enunciado surpreende. Afinal, estaria o TCU, órgão administrativo de controle federal, avocando para si a função judicial de processar e julgar ações de improbidade administrativa na forma da lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa)? Mais do que isso, estaria exercendo esse juízo por vislumbrar, na conduta do agente, uma omissão dolosa e, portanto, determinando o ressarcimento ao erário em razão da imprescritibilidade dessa pretensão?

Há poucas semanas, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Recurso Extraordinário 636.886-AL, decisão da qual derivou o tema de repercussão geral nº 899 ("É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas"). No acórdão, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, o STF afirma que:

"3. A excepcionalidade reconhecida pela maioria do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no TEMA 897, portanto, não se encontra presente no caso em análise, uma vez que, no processo de tomada de contas, o TCU não julga pessoas, não perquirindo a existência de dolo decorrente de ato de improbidade administrativa, mas, especificamente, realiza o julgamento técnico das contas a partir da reunião dos elementos objeto da fiscalização e apurada a ocorrência de irregularidade de que resulte dano ao erário, proferindo o acórdão em que se imputa o débito ao responsável, para fins de se obter o respectivo ressarcimento". (grifo do autor)

No voto proferido na tomada de contas especial que resultou no Acórdão 1482/2020-Plenário TCU, ao contrário do que decidiu o STF, o relator, ministro Walton Alencar, afirma que:

"Como consectário lógico do artigo 71, II, da Carta Magna, com vistas à continuidade do julgamento das contas dos responsáveis, por prejuízos aos cofres públicos, tem este Tribunal o dever-poder de avaliar, no seu âmbito, o cometimento de ato típico de improbidade administrativa e se o agente cometeu o ato de forma dolosa". (grifo do autor)

O caso analisado pelo TCU envolvia a omissão total de prestação de contas relativa a recursos federais repassados para um município do interior de Goiás. A execução ocorreu integralmente no exercício de 2010, totalizando o valor histórico de R$ 133.275,00. A análise conclusiva da prestação de contas e a instauração da Tomada de Contas Especial, pelo ministério competente, ocorreram no ano de 2018.

A qualificação da conduta "ímproba" e "dolosa" pelo TCU decorreria da omissão reiterada do ex-prefeito da cidade, que permaneceu silente desde a primeira citação na tomada de contas especial. O TCU determinou, além de devolução do recurso atualizado e acrescido de juros de mora, aplicação de multas na importância de R$ 200 mil.

A posição do relator foi ressalvada por um de seus pares no plenário do TCU, o ministro Raimundo Carreiro. Mas o voto divergente se voltou apenas ao enquadramento dos fatos, não ao juízo de reprovação das contas:

"Faço duas ressalvas ao entendimento sustentado pelo relator:

Primeira: a Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa) é de reserva judicial.

Segunda: o artigo 16, inciso III, alínea a, da Lei 8.443/1992 (Lei Orgânica do TCU) já prevê que as contas do gestor serão julgadas irregulares por omissão".

A maioria, portanto, seguiu o entendimento do ministro Walton, ou seja, de que o TCU exerce, sim, um juízo quanto à probidade das condutas de gestores públicos à luz da Lei 8.429/92. Pode-se depreender, também embora não esteja tão claro , que esse juízo seria exercido somente em casos de omissão flagrante do dever de prestação de contas, como o que é narrado no processo. A argumentação do ministro sugere que a omissão seria tão escancarada que dispensaria um exame mais acurado quanto ao dolo do agente responsável. Haja controvérsia!

Mais do que isso, conforme a decisão, não haveria efeitos do decurso do tempo sobre as pretensões punitiva e ressarcitória do próprio TCU. A decisão estaria amparada pelo Tema de Repercussão Geral nº 897, do STF, que, no entanto, define como imprescritível apenas a ação (judicial, claro) de ressarcimento ao erário fundada na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. O entendimento do STF não abrange a pretensão punitiva (como a aplicação de multa) exercida com base na Lei nº 8.429/92 e, menos ainda, na Lei 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU).

Resumidamente: em meio à conflagração geral de Brasília ou estaríamos no cessar-fogo? , o TCU assimilou como uma ampliação de poderes aquilo que o STF definiu como um limite de atuação. Não é um conflito tão pronunciado, mas deve render novos e interessantes capítulos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!