Inadmissão a posteriori

Ministros fazem ressalvas a julgamento encerrado e criam insegurança jurídica

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4 de julho de 2020, 9h45

Uma alteração no Regimento Interno do STF feita na última quarta-feira (1º/7) passou a prever que a falta de voto de ministro em julgamento pelo Plenário virtual não deve mais ser computada como concordância tácita com o voto do relator.

Carlos Moura/SCO/STF
Marco Aurélio é a favor de HC contra ato individual de ministro
Carlos Moura/STF

Se a alteração já valesse há dois meses, quando o STF apreciou, via Plenário virtual, o HC 130.620, uma série dúvidas sobre o que foi decidido teria sido evitada. Isso porque dois ministros não apresentaram votos — o que significa que concordaram tacitamente com o relator —, mas apresentaram ressalvas após encerrado o julgamento.

No caso concreto, o HC se insurgia contra decisão da ministra Cármen Lúcia — ato monocrático, portanto. Ocorre que, naquele momento, o entendimento mais recente da Corte era pela não admissão de HC que questiona ato de ministro.

No entanto, o relator do caso — ministro Marco Aurélio —, em seu voto, admitiu o HC. "O Habeas Corpus é cabível contra decisão formalizada por integrante do Supremo, valendo notar que o verbete nº 606 da Súmula alcança ato de Colegiado, e não individual", disse. No mérito, contudo, a ordem foi indeferida. 

No Plenário virtual
O julgamento do HC se encerrou em 30 de abril. Depois dessa data, o site do STF, no espaço reservado aos julgamentos virtuais, informava que o voto do relator foi seguido sem ressalvas por mais quatro ministros: Alexandre de Moraes, Celso de Mello, Luiz Fux e Ricardo Lewansdowski. Cinco votos, portanto, favoráveis à admissão do HC.

Os ministros Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso acompanharam o relator, mas com ressalvas — também segundo o site do STF. E dois divergiram: Luiz Edson Fachin e Rosa Weber. Cármen não votou, pois estava impedida.

Portanto, independentemente do mérito do caso, o HC foi admitido. O que significaria uma mudança de entendimento da Corte em relação à admissão de HC contra ato individual de ministro.

Reviravolta
O problema é que, dias depois — quando a interface do site do STF referente ao Plenário virtual não estava mais disponível — o sistema da Corte passou a indicar que cinco ministros — e não três — acompanharam com ressalvas o relator: os ministros Alexandre e Fux somaram-se a Barroso, Toffoli e Gilmar.

Assim, teria sido formada maioria pela não admissão do HC. Mas a página do STF na internet informa que, em 4 de maio de 2020, foi "denegada a ordem", o que gera a paradoxal situação: inadmissão com julgamento de mérito.

"Nessa hipótese, ainda que no Plenário virtual, o colegiado aceitou conhecer do Habeas Corpus", afirma Gustavo Henrique Badaró — do Badaró Advogados e professor de Processo Penal da USP —, ao se referir a casos em que o mérito é julgado. O entendimento da Corte, então, teria sido alterado.

Semanas depois, em julgamento de outros HCs, também contra decisões monocráticas de ministros, o STF voltou a tratar do tema. No entanto, acabou, por maioria, por não admiti-los. Em seu voto, o ministro Celso de Mello fez menção ao controvertido HC 130.620, registrando que esse julgamento não alterou o entendimento do STF sobre a matéria, pois houve maioria por sua não admissão.

Segundo Celso, Alexandre e Fux "fizeram consignar , nos votos que proferiram naquele julgamento ( HC 130.620/RR), expressa ressalva quanto ao entendimento por eles perfilhado no sentido da inadmissibilidade da utilização do 'Habeas Corpus' contra atos proferidos por Ministros do Supremo Tribunal Federal".

Reportagem da ConJur já havia noticiado que, para os dois ministros que em tese votaram pela admissão do HC 130.620 (Alexandre e Fux), a jurisprudência do STF não havia sido alterada. 

Ocorre que os dois apresentaram seus votos — dos quais constam as ressalvas referentes à inadmissibilidade de HCs contra decisões de ministros — após 30 de abril, data de encerramento do julgamento pelo Plenário virtual.

Para Marta Saad, do Veirano Advogados e professora de Processo Penal da USP, pode ter havido erro do STF, por uma ineficiência de adaptação ao sistema de julgamentos virtuais. Mas, como se trata de um julgamento que dá uma guinada jurisprudencial importante, ela diz acreditar que, caso tal erro seja constatado, o STF deveria publicar uma ata de retificação.

Uma outra alteração no regime do Plenário virtual diz respeito à publicação dos votos enquanto ocorrem os julgamentos — o que ainda não havia sido implementado quando da apreciação do HC 130.620.

A ConJur entrou em contato com o STF para que o caso pudesse ser comentado e para perguntar em que data os votos de Alexandre e Fux foram oferecidos. Mas, até o fechamento desta reportagem, não obteve retorno. 

Histórico
A controvérsia a respeito de HC contra decisão monocrática é um dos assuntos que historicamente dividem o STF.

Originalmente, os relatores não tinham poder para apreciar o mérito, o que caberia apenas a órgão colegiado. Segundo Badaró, uma alteração regimental, no entanto, passou a admitir a decisão monocrática. Essa alteração foi feita em 2009, que deu nova redação ao artigo 192 do Regimento Interno da Corte.

O pano de fundo da discussão, portanto, é se uma decisão individual tem ou não o mesmo peso que uma colegiada. O Supremo é um só ou pode ser desmembrado em 11 ministros?

"Se se permite que o relator pode decidir sozinho, deve existir algum mecanismo para provocar a manifestação da turma", opina Badaró.

A Súmula 606, usada para inadmitir HCs, em tese já teria esgotado o assunto:

"Não cabe habeas corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de Turma, ou do Plenário, proferida em habeas corpus ou no respectivo recurso."

Mas ela, que é de 1984, não menciona decisões monocráticas — apenas prevê o não cabimento de writ contra decisão de Turma ou do próprio Plenário.

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