Opinião

Se não há o dever de renegociar contratos administrativos, o que se pode fazer?

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

4 de julho de 2020, 9h20

Aqui na ConJur expusemos nossa compreensão de que o Estado não possui o dever de negociar os contratos administrativos. Referimos, contudo, que isso não impede que se assim o faça. É dizer: advogamos que essa vinculatividade/dever não existe, ainda que muitos assim defendam. Nesse meio-tempo, recebemos muitos feedbacks, especialmente questionando: "O que fazer, então, diante da situação caótica causada pela pandemia oriunda da Covid-19 e que impactou fortemente os contratos administrativos?". Hoje viemos aqui responder pragmaticamente a essa pergunta.

Vamos voltar no tempo. A origem do debate acerca do reequilíbrio econômico-financeiro remonta o caso da companhia que abastecia a iluminação pública de Bourdeaux (Cie. génerale d'éclairage de Bourdeaux), decidido em 30 março 1916, pelo Conselho de Estado francês, o conhecido "caso do gás de Bourdeaux", que é a referência mundial ao tema. Naquela época, também não havia o dever de negociar o contrato. Mas por que assim foi feito? Pura e simplesmente para manter a continuidade do serviço público. E esse foi o fundamento central e histórico, revisitado até hoje na França, para permitir a revisão do pacto administrativo.

Note bem que não é a primeira vez que o Estado contratante e o particular contratado se veem diante de uma realidade extrema, e, inexoravelmente, a pergunta inicial também foi feita: "O que fazer com os contratos administrativos diante de uma situação como essa?".

Primeiro, é inegável que pode ser bastante vantajoso e necessário que o contrato administrativo seja mantido, especialmente em se tratando de concessões de serviço público. Para tanto, a primeira coisa que se deve fazer é determinar: 1) qual a legislação que rege o meu contrato administrativo (v.g. se Lei nº 8.666/93; se Lei nº 8.987/95 etc.), porque o racional jurídico de cada qual é bastante diferente; e 2) por conseguinte, deve ser avaliado o que o contrato administrativo diz sobre situações tais.

Todos os contratos dividem risco entre as partes, o que é natural de qualquer negócio jurídico, o que pode se dar de modo implícito ou explícito. As partes podem negociar antecipadamente e deixar o evento futuro incerto a cargo de um dos contratantes, ou deixar isso para debater no futuro, ou seja, tal questão fica em aberto. Mas dificilmente o contrato administrativo deve ter tratado de situações ainda que análogas à pandemia atualmente vivenciada, nem mesmo em documentos como a matriz de risco. Aliás, a própria matriz está sendo desafiada nos dias de hoje. E o direito precisará conversar com a economia, para que se possa colaborar com a segurança jurídica de qualquer setor.

A matriz de risco implica uma responsabilidade objetiva independentemente de culpa, trazendo os custos de transação para o momento presente. E quando o risco surgir no futuro, não se discute a responsabilidade. Por isso que não vale a pena alocar o risco ambiental ao parceiro privado, pelo alto grau de iliquidez, o que gera uma onerosidade indevida à cláusula de preço.

A lógica econômica da matriz de risco que foi transposta às contratações públicas está experimentando um "teste de força" nos dias atuais, por conta da onerosidade causada pela força maior oriunda da Covid-19. Tal evento ultrapassa a vontade dos contratantes, acontecendo depois de firmado o contrato.

Mas aqui temos evidenciado o primeiro ponto: importa dizer que a pandemia não é força maior a todos os contratos, a depender do impacto que ela gerou em cada negócio. Aliás, há um que outro setor que aumentou sua produtividade, como os portos. Por isso que a Covid-19 não é sinônimo de desoneração ou de comportamentos oportunistas de devedores. A depender do contrato e da causa que deu origem ao ônus, podemos estar diante de fato do príncipe ou da Administração etc [1].

Outro fator é nodal: a pandemia ataca ambas as partes do contrato. Então, estamos diante de uma força maior sui generis, difícil de categorizar nos modelos dogmáticos existentes. É como transportar o ônus de um contratante com iliquidez a outro que também está amargando a mesma iliquidez.

Diante desse contexto, haverá a necessidade de se fazerem opções, especialmente por parte do Estado. Uma delas foi estabelecer uma política pública de auxílio ao setor das distribuidoras do setor elétrico, onerando somente uma das "partes contratantes": o usuário/consumidor do serviço, o que, na nossa ótica, parece bastante desproporcional e isso daria uma fala única em outra oportunidade. Como dito, não parece ser a alternativa acertada.

Então, caso o Estado julgue oportuna a renegociação, especialmente diante da necessidade de manter a continuidade do serviço público e da preservação do interesse público, pode-se estabelecer alguns parâmetros:

1) A revisão deve ser privativa das partes contratantes não podendo ser imposta por órgãos de controle;

2) Deve-se demonstrar nexo de causalidade entre o fato e a revisão;

3) O reequilíbrio deve ser transparente e claro, para daí permitir eventual controle;

4) A proposta de renegociação deverá estar lastreada em um aditivo provisório, para se manter os contratos "vivos". Por isso deverá ser revisitada a revisão, ou seja, quando as coisas voltarem ao normal ou ao "novo normal", deve ser repensada a matriz de riscos;

5) O contrato não pode ter uma composição meramente distributiva; e

6) Câmaras de compensação ou implementação de dispute boards podem ser uma solução viável.

De modo que determinados contratos administrativos podem merecer um regime de transição, para que as partes possam transpor a dura conjuntura, o que sequer pode fazer sentido a contratos simples, em que as partes conhecem a priori os riscos e como os solucionar. O regime de transição deve servir para contratos mais complexos, longos e coligados com grandes investimentos, caso o Estado julgue oportuno, como dito.

Por fim, vai um alerta que não é meu, mas de vários juristas: urge modificar as vigentes leis de licitação e contratos administrativos. Essa é uma agenda que deveria imediatamente voltar à tona do cenário político nacional, repensando como se contrata e como se executa o contrato público.

 


[1] Tratamos de cada qual no nosso livro: HEINEN, Juliano. Curso de Direito Administrativo. Sçavador: Juspodivm, 2020, p. 1.059 e ss.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!