Opinião

Os 20 anos do IDDD: por um futuro com Justiça e democracia

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4 de julho de 2020, 15h14

Há exatos 20 anos, Márcio Thomaz Bastos (1935-2014), ao fundar o IDDD, afirmou que o instituto havia sido criado para que pudéssemos advogar no futuro. Num artigo publicado na Folha de S.Paulo em abril de 2000, escreveu sobre a missão daquela nova organização e da sua urgência numa época em que o direito de defesa, na sua avaliação, jamais fora tão desrespeitado, com exceção da ditadura.

Se a Constituição era generosa na enunciação de direitos — argumentava —, na realidade advogados eram impedidos de falar, de exercer a defesa e chegavam a ser ameaçados de prisão, enquanto pessoas sem condenação tinham suas reputações assassinadas. Em 2000, com apenas uma década e meia de regime democrático e às portas do novo século, estava na ordem do dia lutar contra a destruição das garantias recém-conquistadas e a favor da possibilidade de um Direito Penal mais civilizado. O paralelo histórico mostra que a interpretação, além de precisa, continua servindo para nosso tempo.

Pela atualidade do que tinham em mente Márcio e outros ícones fundadores do IDDD, a instituição não apenas manteve-se em pé como se tornou uma espécie de farol para a advocacia criminal brasileira.

E eu não poderia deixar de mencionar a importância de José Carlos Dias, o grande responsável por me trazer ao IDDD e legítimo cultor do pleno exercício do direito de defesa, da vitalidade do Estado democrático de Direito e das liberdades, valores perseguidos por todos nós ao longo desses 20 anos.

Inicialmente, nosso objetivo era triplo: defender gratuitamente aqueles que não podiam pagar; elaborar estudos de casos paradigmáticos a fim de aperfeiçoar, pelo exemplo, o sistema de Justiça e a defesa criminal; e, por fim, intervir com contundência no debate público quando o direito de defesa estivesse sob ameaça.

Desses desafios surgem iniciativas como o projeto Direito de Defesa no Tribunal do Júri, em que associados/as do IDDD atuavam — como ainda hoje o fazem — proporcionando defesa de excelência, independentemente da trajetória ou classe social do/a réu/ré. Também passamos a fazer mutirões em delegacias e prisões, buscando minorar a realidade calamitosa de nossos cárceres.

Embora a advocacia criminal esteja desde sempre no nosso DNA, como organização percebemos que comunicar o direito de defesa num país com vasta tradição autoritária era tarefa inadiável. Assim, demos viabilidade a projetos para, de um lado, debater a importância do direito de defesa em redações de grandes jornais e universidades e, de outro, informar às pessoas presas sobre seus direitos, visando romper uma enorme barreira no acesso à Justiça. Daí nascem iniciativas como Olhar Crítico e Educação para Cidadania no Cárcere (ECid), que propõem democratizar o saber jurídico nas prisões e fora delas.

Contudo, a constatação continuava sendo a de que, apesar de termos um regime democrático em vias de amadurecimento, a ideia do direito de defesa permanecia distante da naturalização no imaginário social. Uma acusação criminal seguia bastando para que alguém fosse instantaneamente destituído de sua humanidade. Ainda hoje é como se a suspeita de ter praticado um crime suspendesse qualquer denominador comum entre o suposto autor e o conjunto da sociedade. E este continua sendo um problema do presente que se projeta para o futuro na medida em que a Justiça — que para nós significa refazimento — é inflacionada com ressentimento e desejo de vingança, sentimentos supervalorizados, como se a Justiça não fosse capaz de restaurar o equilíbrio social e a reparação se encontrasse apenas na completa ruptura.

Em duas décadas esse punitivismo transformou nosso país na terceira potência carcerária do mundo, sem que, contudo, fosse derrubado o mito de que a impunidade reina por aqui. Temos clareza de que o cárcere, para onde tanto de nossos esforços foram direcionados, é, na verdade, resultado de uma soma de injustiças. Por isso, nos últimos anos, os caminhos da advocacia criminal combativa que caracteriza o IDDD passaram a cruzar cada vez mais com os dos defensores dos direitos humanos em sentido amplo e sua multiplicidade de causas, como a luta pelo redução da desigualdade social, de gênero, o fim do racismo, entre outras. Essa confluência pode ser sentida em iniciativas recentes do IDDD como o Projeto Mães Livres, que enfrenta violações de direitos produzidas pelo encontro entre o poder punitivo do Estado e a visão patriarcal que marca o sistema de Justiça.

Por mais que a caminhada tenha nos transformado, o que continua a nos mover é a mesma vontade de pavimentar um futuro com Justiça e democracia. Ele, no entanto, não existirá sem o seu fiel escudeiro, o direito de defesa, pelo qual temos lutado nessas duas décadas. Continua na ordem do dia desvincular a ideia de Justiça do ato de punir como única resposta à acusação. Ao contrário disso, Justiça é alcançar a paridade de armas, o respeito a cada uma das etapas do processo penal. Esse é desafio para uma vida. E deve ser enfrentado para que o jovem IDDD, hoje com 20 anos, possa continuar existindo no futuro.

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