Diário de Classe

Lições de Ludwig Wittgenstein a uma democracia tíbia

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4 de julho de 2020, 8h01

Resumo: Em 2016, durante os primeiros passos de meu doutoramento e os seminários de Hermenêutica, Linguagem e Interpretação do Direito, coordenado pelo professor Lenio Streck na Universidade do Vale do Rio dos Sinos [2], deparei-me com uma combinação de sentidos que sustentaria boa parte de meus interesses acadêmicos dali em diante. Tratava-se de Wittgenstein. Mais que um filósofo da linguagem, o austríaco Ludwig Joseph Johann Wittgenstein, nascido no mesmo ano de nossa República (1889), passou a ser, para mim, um significativo teórico do poder nas democracias — embora efetivamente ele nunca tenha disso se ocupado. Em leitura que, em determinados pontos, distancia-se da de Chantal Mouffe, seguramente a mais conhecida àqueles inclinados nesse mesmo sentido, penso que sua obra póstuma, bem sintetizada nas Investigações Filosóficas, permite desvelar a seguinte relação: assim como é impossível comunicar a partir de linguagens privadas [2], também não é possível sustentar a democracia a partir de babelizadas e particularíssimas interpretações de seu ethos. É sobre essa possível aproximação que trata este Diário de Classe, buscando recordar um pouco do pensamento wittgensteiniano, em especial a partir de seu retorno a Cambridge, em 1929, após uma lacuna de cerca de década e meia afastado da Filosofia.

Uma wittgensteiniana reviravolta…
No contexto do chamado Segundo Wittgenstein, há uma espécie de átrio para as Investigações Filosóficas. Esse lugar, que em tese cataloga o (re)pensar wittgensteiniano, é composto pelas Observações Filosóficas (Philosophische Bemerkungen) — com aproximadamente 250 páginas produzidas a partir dos cursos de 1929 e 1930, publicadas em 1964 na Alemanha (Frankfurt) e na Inglaterra (Oxford) —, pelas aulas assistidas por Moore — de 1930 a 1933, cujas anotações deram origem ao Wittgenstein’s Lectures in 1930-33, contendo questões voltadas à linguagem, à Matemática e à Filosofia —, e pelas séries de anotações feitas por seus alunos, nos anos seguintes, conhecidas pela cor da encadernação — Caderno Azul (Blue Book) e Caderno Marrom (Brown Book). O primeiro, com lições de 1933 a 1934, e o segundo, contendo apontamentos de 1934 e 1935, são considerados a base da filosofia do Segundo Wittgenstein, e "marcam uma total transição a um novo modo de filosofar, que culmina na obra principal e contém quase todas as ideias desta (…). Esta obra são as Investigações Filosóficas (Philosophiche Untersuchungen)" 
[3].

Escritas em forma de anotações em breves parágrafos — como destaca o próprio autor no prefácio [4], as Investigações Filosóficas contêm 693 parágrafos na primeira parte, e 14 capítulos na segunda, voltados a questões referentes "ao conceito de significação, de compreensão, de proposição, de lógica, aos fundamentos da matemática, aos estados de consciência e outros". Ainda nessa parte do livro, o autor adverte que a obra deve ser lida como extensão do Tractatus, ou seja, que os novos pensamentos só "poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição ao meu (seu) velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo" [5].

Tal advertência, de fato, faz sentido, e se relaciona à perspectiva aqui adotada — de que, mais que ruptura, as Investigações mantêm o cerne da discussão wittgensteiniana, ao tratar também das questões da linguagem —, passando da ideia de um mundo passível de figuração através de uma linguagem ideal — uma essência de linguagem —, para uma teoria da linguagem que associa o significado ao uso [6].

Assim, se na teoria da figuração do Tractatus havia uma representação do mundo através da linguagem, caminho pelo qual se poderia conhecer a totalidade dos fatos, tal conclusão é justamente o que combate, nas Investigações, Wittgenstein. Afinal, "aprender a linguagem não pode consistir, portanto, em nomear objetos (…). Se aprende o significado de um termo tomando nota de seu uso no jogo linguístico" [7].

Para chegar a essa espécie de linguagem comum a partir do uso, Wittgenstein, que havia concluído, no Tractatus, ter resolvido todos os problemas filosóficos, procura corrigir pontos considerados por ele mesmo falhos em sua grande obra anterior. Isso é bastante claro também no prefácio das Investigações, quando Wittgenstein reconhece os — segundo ele — equívocos do Tractatus [8]. De maneira sucinta, a mudança em sua filosofia — a partir do reconhecimento de graves erros — resume-se aos papéis da lógica e da linguagem: se no Tractatus a lógica seria o instrumento que permitiria revelar a essência — como teria percebido nas Confissões de Santo Agostinho [9] —, nas Investigações será uma espécie de gramática da própria linguagem o instrumento para a compreensão dos problemas da Filosofia. De outro modo, se, no Tractatus, havia uma essência a ser desvelada, nas Investigações já não há mais [10]

Ou seja, questiona Wittgenstein se raciocinar como no Tractatus não corresponde, por seu turno, a retirar o próprio conceito de seu uso ordinário — em que de fato podem — tais conceitos — serem dotados de significado. Para o autor das Investigações Filosóficas, portanto, tanto o uso quanto o significado das palavras dependem dos contextos em que elas são empregadas. O significado não se dá — não mais — por uma essência [11].

Essa reviravolta no pensamento wittgensteiniano é, antes, uma crítica à teoria da figuração — presente no Tractatus , em que a cada palavra haveria uma correspondência refletida no mundo. Nas Investigações, ao contrário, o significado se dá através de seu uso em uma espécie de jogo linguístico. Buscando delimitar tal conceito, diz Wittgenstein que "todo o processo do uso das palavras é um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem sua língua materna. Chamarei esses jogos de jogos de linguagem" [12].


O conceito desses jogos, como se vê, esfacela o que Urdanoz Audaz chama de pureza do cristal, metáfora para a linguagem idealizada, capaz de captar a essência de um mundo e espelhá-lo, observada no Tractatus. Consequentemente, há um deslocamento da linguagem — pura e abstrata na obra anterior, estritamente ligada ao neopositivismo do início do século XX —, observada agora como necessariamente um fenômeno histórico, relacionado a contextos sociais e culturais.

Isso significa que, assim como Wittgenstein precisa ser compreendido como um homem do seu tempo, sujeito a uma série de influxos culturais, econômicos, políticos etc. — como, de resto, qualquer pensador —, a linguagem — agora livre das amarras de uma pretensa essência — também. Por isso a linguagem é, diria Wittgenstein nas Investigações, não apenas uma "forma de vida" [13], mas uma prática relacionada a um contexto que também se submete a uma série de influxos — tal qual o caráter histórico dos projetos políticos que sustentam as democracias. Daí a importância da defesa da autonomia do Direito nesses mesmos regimes. Afinal, assim como diria o pensador austríaco sobre a linguagem, podemos pensar que, sem essa necessária defesa — que, no mais, vela por uma espécie de ethos democrático —, esses regimes de poder horizontalizado também podem nascer, envelhecer e morrer [14].

Sem adiantar essas relações possíveis, e voltando mais estritamente às questões da linguagem a partir de Wittgenstein, isso ocorre porque formas de vida têm sentido somente a partir de contextos compartilhados — e nunca isolados, a menos que se admita — repete-se — uma linguagem que não comunique. Por isso, nessa determinação do contexto como condição para o sentido, há critérios ou, de outra forma, regras de uso [15], semelhantes às regras de um jogo (como seria a Constituição frente ao jogo democrático), de forma a evitar — em uma espécie de esfera privada —, uma interpretação atrás da outra, indefinidamente. Afinal, seguir uma regra significa observar, sempre, a mesma regra. Por todos.

Exatamente por isso é possível dizer, na esfera dos contextos como produtores de sentido, que "seguir uma regra, comunicar ou dar uma ordem, implica costumes, usos, instituições" [16]. Daí a ruptura — talvez agora de forma mais clara — com o Tractatus: não é possível seguir uma regra sozinho. Ou seja, tal se dá, necessariamente, em um contexto socioprático. Talvez por isso, nesse mesmo sentido, diz Wittgenstein que, "na práxis do uso da linguagem, um parceiro enuncia as palavras, o outro age de acordo com elas" [17] — "que na linguagem os homens estão de acordo" [18] —, ou, ainda, que "representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida" [19].

O que mostram essas passagens das Investigações, portanto, é que os limites da linguagem não denotam mais os limites do mundo, como projetava o Wittgenstein do Tractatus [20], e nem que é possível sustentá-lo como vontade e representação. Agora, "a consequência imediata é que não pode haver, logicamente, regras privadas. As regras são públicas" [21]. Não há, portanto, uma linguagem autista, fechada em si e, ainda assim, capaz de sentido. Afinal, a linguagem não é fruto do acaso, mas do reconhecimento — entre os membros de uma dada comunidade — de regras comuns. De outro modo, é possível dizer que "as regras supõem um uso comum, implantado por uma convenção geral (que não é arbitrária). Se o costume é removido, as regras embutidas no costume também desaparecem" [22].

Assim, se o Primeiro Wittgenstein — o do Tractatus Logico-Philosophicus — é condição para uma Filosofia assentada na análise lógica da própria linguagem — e relacionado de forma estreita ao Círculo de Viena —, o Segundo Wittgenstein — ou seja, o das Investigações Filosóficas — inaugura um novo caminho, relacionado à análise da linguagem a partir do contexto, do uso comum aos membros de uma determinada comunidade. De outro modo, se antes, no Tractatus, havia uma linguagem ideal, cristalizada, que se desnudava como espelho dos fatos do mundo, há, nas Investigações, um significado a partir do contexto compartilhado pelo uso. Esse uso comum, por sua vez, não apenas parece pôr a nu, mas, acima disso, evidenciar uma necessária intersubjetividade para, enfim, permitir o sentido que se propõe com a linguagem, evidentemente pública.

Mas, afinal, que lições o nosso filósofo da linguagem pode emprestar a uma teoria democrática?
Intuo que é a percepção de que a linguagem que funda um projeto (político) de Estado de Direito é necessariamente pública. É ela a condição de possibilidade para esse mesmo edifício que, de outro lado, também mantém — através de sua efetivação — o contexto necessário à significação compartilhada dessa mesma linguagem. Há uma relação circular. Afinal, como observado anteriormente, se o costume é removido, as regras embutidas no costume também desaparecem. É por isso que democracias, assim como jogos de linguagem, podem envelhecer e morrer. A historicidade presente nas nossas relações não faz supor um indelével porvir democrático. Somente a defesa da autonomia do Direito pode sustentar esses mínimos alicerces republicanos.

Atentemos a uma espécie de via de mão-dupla: se a linguagem pública é a condição de possibilidade para a horizontalidade política dentro de uma possibilidade real, possível, é o contexto efetivamente compartilhado dessa mesma horizontalidade a condição de possibilidade para manutenção de nossos projetos políticos. De maneira distinta, isso significa que — recordando Claude Lefort —, a sociedade molda o Estado — ao acordar sobre um modo de vida a ser compartilhado —, mas também é moldada por ele — na medida em que depende da efetivação desse mesmo projeto para o estabelecimento de um contexto de sentido comum [23]. Daí, mais uma vez, a necessária e intransigente defesa da autonomia do Direito — e da impossibilidade de a política predá-lo moralmente: a política, isto está claro para mim, depende da linguagem pública do Direito. Não há política sem Direito.

Esse é o ponto — e é por isso que se pode assinalar: se o espaço público não admite o seguir uma regra privatium, sob o risco de ser diluído não mais pela conflituosidade inerente à democracia, mas por uma espécie de autismo que babeliza nossas relações sociais e jurídicas — típico de uma espécie de tentação homogeneizante —, o sentido de nossos projetos políticos depende — inexoravelmente — de um (jurídico) contexto compartilhado.

Diferente disso é, afinal, o que se vê: com formas de vida — no sentido wittgensteiniano — diluídas em Estado(s) de Direito(s) coexistindo paralelamente — cujo paradoxo do plural indica o absurdo da falta de unidade ao que deveria ser um projeto comum nas democracias —, o que se tem é a conclusão de que horizontalidade política não se faz com linguagem privada, a partir do meu mundo, do meu Estado e, portanto, do meu Direito, mas é facultada por uma linguagem pública que, num duplo movimento, permite e cobra um contexto de vida compartilhado. Por isso, repete-se: sem linguagem pública, sem Direito (público), não há democracia.

 



[1] Aproveito, aqui, para um justo e público reconhecimento: esses seminários promoveram, em mim, um verdadeiro academic turn. Obrigado, professor Lenio.

[2] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999., § 202, p. 93.

[3] URDANOZ ALDAZ, Teofilo. Historia de la Filosofía. Madrid: Biblioteca de autores cristianos, 1984, p. 204.

[4] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., p. 25.

[5] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit. p. 25.

[6] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit. p. 26..

[7] Livre tradução de URDANOZ ALDAZ, Teofilo. Historia de la Filosofía. op. cit., p. 209-210.

[8] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., p. 26.

[9] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., p. 27.

[10] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 116, p. 66.

[11] OLIVEIRA, Manfredo de. Reviravolta linguístico-pragmática. São Paulo: Edições Loyola, 2015, p. 129.

[12] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 7, p. 30 — grifo do autor.

[13] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 19, p. 32.

[14] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 23, p. 35.

[15] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 81 e segs., assim como entre o § 143 e o § 185.

[16] Livre tradução de URDANOZ ALDAZ, Teofilo. Historia de la Filosofía. op. cit., p. 215 — grifo do autor.

[17] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 7, p. 29.

[18] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 241, p. 98.

[19] WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 19, p. 32.

[20] WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1968, prop. 5.6, p. 110: “Os limites de minha linguagem denotam os limites de meu mundo”.

[21] Livre tradução de URDANOZ ALDAZ, Teofilo. História de la Filosofía. op. cit., p. 215.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações filosóficas. op. cit., § 202, p. 93.

[22] URDANOZ ALDAZ, Teofilo. Historia de la Filosofía. op. cit., p. 215.

[23] Como, grosso modo, procurei sustentar em minha tese de doutorado. COPELLI, Giancarlo Montagner. Construções entre filosofia da linguagem e Teoria do Estado: o Estado Social como Estado de Direito e seus desafios no Brasil. 2018.

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