Opinião

Presença obrigatória do defensor no pacote 'anticrime' é um retrocesso

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3 de julho de 2020, 6h03

Entre as muitas novidades trazidas pela Lei nº 13.964/2019, rotulada de pacote "anticrime", muito pouco se tem falado sobre a introdução do artigo 14-A ao Código de Processo Penal e do artigo 16-A ao Código de Processo Penal Militar, com redações praticamente idênticas.

Em linhas gerais, o caput [1] de tais dispositivos trata de garantir a possibilidade de "constituir defensor" a indivíduos, vinculados às instituições de segurança [2] ou às Forças Armadas [3], investigados por fatos relacionados ao "uso da força letal praticados no exercício profissional", incluindo as situações de (possível) incidência das causas excludentes de ilicitude.

Até este ponto, à parte eventual efeito meramente simbólico, não há nenhuma novidade, considerando que a legislação brasileira já confere tal direito à constituição de defensor a todos os investigados, independentemente do objeto da investigação e da qualidade do sujeito investigado [4].

Alteração relevante surge, porém, em seus parágrafos 1º e 2º. O primeiro estabelece o direito do investigado de ser "citado" da instauração do procedimento investigatório, com a possibilidade de constituição de defensor no prazo de até 48 horas [5]. O segundo determina que, esgotado esse prazo sem a constituição do defensor pelo investigado, deve a instituição a que estava vinculado o investigado à época dos fatos ser intimada para, no mesmo prazo de 48 horas, indicar um defensor para a representação do investigado [6].

Isso significa, em termos bem claros, o estabelecimento, de forma inédita no ordenamento jurídico brasileiro, da primeira e única hipótese em que a presença do defensor na investigação é verdadeiramente obrigatória, e não apenas facultativa [7].

Diante desse cenário, pergunta-se: o que justificaria esse tratamento diferenciado? Por qual motivo somente seria obrigatória a atuação da defesa técnica em favor do investigado nessa hipótese absolutamente restrita de "uso da força letal" por forças do Estado?

O que, em uma leitura apressada, poderia ser considerado um avanço em direção a uma persecução penal mais democrática, em consonância com o texto constitucional de 1988 e com a evolução legislativa nesta matéria, em realidade representa um verdadeiro retrocesso, com a retomada da vetusta e autoritária ideia do defensor como obstáculo à persecução penal e como mecanismo de impunidade [8].

Considerando a pública e notória estreita relação do atual presidente da República e de seus apoiadores com as instituições de segurança e com as Forças Armadas, e a sua declarada postura de defensor do amplo direito de matar em caso de conflitos armados com supostos "bandidos" ou "meliantes" [9], não há como deixar de compreender a alteração mencionada apenas como mais uma tentativa de garantir a impunidade aos agentes que praticam homicídio no exercício profissional, no contexto de banalização da violência policial [10].

Ante a ausência de qualquer justificativa racional e compatível com o modelo democrático de Estado, parece evidente a violação ao mandamento constitucional da isonomia (artigo 5º, caput), que só permite o tratamento diferenciado para situações realmente desiguais, na medida de sua desigualdade, sendo vedada a consagração de discriminações e privilégios [11].

Diante disso, ao invés de investir contra a constitucionalidade de tais dispositivos, talvez seja esta a grande oportunidade para se estender a obrigatoriedade da presença do defensor constituído ou nomeado a toda e qualquer investigação criminal (sobretudo nos atos de interrogatório, naqueles que demandem a participação direta do investigado [12] e, ainda, naqueles que envolvam ou possam envolver violação direta a direitos fundamentais do investigado [13]), com a tão necessária inclusão de norma expressa em tal sentido no Código de Processo Penal [14], de modo a restabelecer a necessária isonomia.

Passados mais de 30 anos desde a promulgação de Constituição Federal de 1988, é chegada a hora de, definitivamente, compreender o papel do defensor como, fundamentalmente, limitador do abuso do poder punitivo estatal, imprescindível em todas as fases de qualquer modelo democrático de persecução penal, afastando-se o resquício autoritário repristinado pelo pacote "anticrime".

 


[1] Artigo 14-A. Nos casos em que servidores vinculados às instituições dispostas no artigo 144 da Constituição Federal figurarem como investigados em inquéritos policiais, inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas no artigo 23 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o indiciado poderá constituir defensor.

Artigo 16-A. Nos casos em que servidores das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares figurarem como investigados em inquéritos policiais militares e demais procedimentos extrajudiciais, cujo objeto for a investigação de fatos relacionados ao uso da força letal praticados no exercício profissional, de forma consumada ou tentada, incluindo as situações dispostas nos artigos 42 a 47 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), o indiciado poderá constituir defensor.

[2] Nos termos do artigo144 da CF: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e corpos de bombeiros militares; polícias penais federal, estaduais e distrital.

[3] Nos termos do artigo142 da CF: marinha, exército e aeronáutica. Por força do §6º do artigo14-A do CPP e do artigo16-A do CPP Militar, os dispositivos aplicam-se a estes servidores “desde que os fatos investigados digam respeito a missões para a Garantia da Lei e da Ordem”.

[4] Vide, p.ex., artigo7º, III, XIV e XXI, da Lei 8.906/1994. No mesmo sentido, cf. DEZEM, Guilherme Madeira. SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Pacote Anticrime: Lei nº 13.964/2019. São Paulo: RT, 2020. p.97.

[5] § 1º Para os casos previstos no caput deste artigo, o investigado deverá ser citado da instauração do procedimento investigatório, podendo constituir defensor no prazo de até 48 (quarenta e oito) horas a contar do recebimento da citação

[6] § 2º Esgotado o prazo disposto no § 1º deste artigo com ausência de nomeação de defensor pelo investigado, a autoridade responsável pela investigação deverá intimar a instituição a que estava vinculado o investigado à época da ocorrência dos fatos, para que essa, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, indique defensor para a representação do investigado.

[7] Ressalve-se, aqui, a existência de atos específicos da fase pré-processual que exigem a presença obrigatória do defensor, a exemplo da celebração de acordos de colaboração premiada e de não persecução penal. Destaque-se que, até para o interrogatório policial, mesmo do indivíduo preso em flagrante, considera-se apenas como facultativa a presença do advogado. Nesse sentido, p.ex.: STJ – HC 474.322/MG, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 12/02/2019, DJe 19/02/2019; STJ – RHC 94.584/RS, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 17/09/2019, DJe 01/10/2019; STJ – HC 452.353/RS, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 07/02/2019, DJe 14/02/2019; STJHC 139.412/SC, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 09/02/2010, DJe 22/03/2010.

[8] A este propósito, cf. MARINHO, Renato Silvestre. Presença do defensor na investigação preliminar: incrementando o caráter democrático da persecução penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra. (Org.). Temas Atuais da Investigação Preliminar no Processo Penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 429-444.

[10] Na linha, inclusive, da proposta – formulada pelo então Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro, em consonância com o Plano de Governo do Presidente da República – de alteração do texto do Código Penal para ampliar as hipóteses de excludentes de ilicitude (artigo2º do PL 882/2019). Quanto a este ponto, vale lembrar que o Congresso Nacional aprovou apenas a inclusão do parágrafo único ao artigo25 do Código Penal, com efeitos unicamente simbólicos. Sobre o tema, cf. DEZEM, Guilherme Madeira. SOUZA, Luciano Anderson. Comentários ao Pacote Anticrime: Lei nº 13.964/2019. São Paulo: RT, 2020. p.24-29.

[11] “É que a igualdade implica o tratamento desigual das situações de vida desiguais, na medida de sua desigualação. Aliás, trata-se de exigência contida no próprio princípio da Justiça. (…). A desigualdade tem de estar em relação direta com a diferença observada. Não se pode tratar diversamente em função de qualquer diferença observada. Do contrário, todos os tratamentos discriminatórios estariam, em última instância, legitimados, já que claro está que todos se diferenciam uns dos outros. Além disso, exige-se que essa relação de pertinência a ser assim estabelecida não viole algum preceito constitucional. Portanto, em outras palavras, pode-se afirmar que o princípio da isonomia proíbe a arbitrariedade”. (TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p.469-493)

[12] P.ex.: acareações, reconhecimentos, reconstituições, extração de sangue e de material genético e uso do etilômetro.

[13] P.ex.: direitos fundamentais à liberdade de locomoção, à intimidade e à propriedade. A obrigatoriedade da presença do defensor na audiência de custódia (vide artigo310 do CPP) é exemplo de concretização do modelo ora defendido.

[14] MARINHO, Renato Silvestre. Presença do defensor na investigação preliminar: incrementando o caráter democrático da persecução penal. In: SIDI, Ricardo; LOPES, Anderson Bezerra. (Org.). Temas Atuais da Investigação Preliminar no Processo Penal. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017, p. 429-444.

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