Opinião

Emendatio libelli e a desclassificação da forma dolosa para a culposa

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3 de julho de 2020, 12h14

Não há consenso doutrinário e jurisprudencial sobre a viabilidade da ementadio libelli (CPP, artigo 383) para desclassificar conduta dolosa para culposa. Os detratores argumentam ser necessária a mutatio libelli (CPP, artigo 384), já que a denúncia de crime culposo não descreveria imprudência, negligência ou imperícia. Por conseguinte, obstaculizar-se-ia o exercício da ampla defesa. Outrossim, eventual condenação pelo tipo culposo configuraria julgamento extra petita.

Em que pesem os respeitáveis entendimentos nesse sentido, a aplicação da emendatio libelli em tais casos está em consonância com a sistemática processual adotada no Brasil e não gera prejuízo à ampla defesa, nem julgamento extra petita.

Ao narrar a ação ou a omissão na peça acusatória, o Ministério Público expõe todas as circunstâncias do fato delituoso e classifica a conduta em determinado tipo penal, nos termos do artigo 41 do Código de Processo Penal. Tal classificação não impede que a defesa saiba exatamente quais são os fatos imputados. O juiz, por sua vez, não fica vinculado à interpretação dada pelas partes aos fatos.

Calha trazer à baila um exemplo que elucida a questão:

O promotor de Justiça descreve na denúncia que o agente conduziu veículo automotor embriagado na contramão de direção em determinada via pública e atropelou um pedestre, causando-lhe a perda de membro. Após narrar tais fatos, imputou-lhe a prática do crime de lesão corporal gravíssima com dolo eventual.

No exemplo, nada impede que o juiz, na sentença, desclassifique a conduta para lesão corporal culposa de trânsito por entender que os fatos narrados não representam assunção de risco (CP, artigo 18, inciso I), e sim imprudência (CP, artigo 18, inciso II).

Não é necessário o aditamento da denúncia, que o Ministério Público pode nem ter a intenção de fazer, por entender configurado o dolo eventual. Os fatos estão narrados e todos os sujeitos processuais têm ciência. Não há novos elementos ou circunstâncias senão aqueles já contidos na exordial, o que afasta a aplicação do artigo 384 do Código de Processo Penal.

Os elementos do tipo culposo estão elencados na denúncia: dirigir embriagado na contramão de direção. O fato de o promotor de Justiça não ter constado na denúncia que essas circunstâncias representam imprudência não tem o condão de impedir a condenação pelo crime culposo. A definição da conduta como dolo eventual ou culpa consciente representa a interpretação dos fatos, não a modificação deles.

Além da questão de ordem processual, há ainda uma questão pragmática. O Ministério Público pode insistir na tese do dolo eventual, o que é plenamente legítimo em virtude de sua autonomia institucional e da independência funcional de seus membros. Se isso ocorrer, e é natural que ocorra, o processo pode tramitar por anos, inclusive com recursos para as instâncias extraordinárias.

Se for exigida a mutatio libelli para a condenação pelo crime culposo, não terá havido condenação enquanto esses recursos tramitarem. Por conseguinte, o prazo prescricional não terá sido interrompido (CP, artigo 117, inciso IV). Surge, assim, o risco de prescrição, independentemente do resultado dos recursos interpostos pelo Ministério Público. No final, não haverá relevância na prevalência da tese do dolo eventual ou da culpa consciente, em ambas as hipóteses a pretensão punitiva estatal terá sido fulminada pela prescrição.

Portanto, a desclassificação da forma dolosa para a culposa por meio da emendatio libelli não viola os cânones do Direito Processual, notadamente o princípio da ampla defesa e a regra da adstrição, além de prestigiar a razoável duração do processo e a efetividade da tutela jurisdicional.

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