OLHAR ECONÔMICO

Comércio eletrônico em direção ao apogeu

Autor

  • João Grandino Rodas

    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP da qual foi diretor mestre em Direito pela Harvard Law School mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

2 de julho de 2020, 9h40

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No mundo hodierno há vários ordenamentos jurídicos, que, embora autônomos e independentes, convivem e se relacionam de algum modo. Os ordenamentos mais antigos são os que os Estados, ainda ditos soberanos, ostentam; e que vigem, dentro de suas respectivas fronteiras, em princípio. Tais ordenamentos datam de vários séculos, quando do advento e da proliferação dos Estados dotados de soberania, que constituíram o sujeito, por excelência, do direito internacional público.

Há cerca de cem anos, viria a lume nova espécie de sujeito de direito internacional: as organizações internacionais intergovernamentais. Nos últimos setenta anos, eclodiria uma subespécie, a organização regional intergovernamental de integração econômica, dotada de ordenamento jurídico próprio,  basicamente vigente no interior de seus limites geográficos. A União Europeia (anteriormente comunidade econômica e mercado comum) e o Mercosul (a despeito do nome, continua sendo união aduaneira) são exemplos desse tipo de instituição.

Desde a Antiguidade até cerca de 1800, o comércio, marítimo ou terrestre, caracterizava-se pela internacionalidade; desimpedimento; regulação por meio de costumes, pela doutrina e pela lex mercatoria. O Estado moderno, entretanto, graças ao controle fronteiriço e à codificação mudou esse status quo e originou a bipartição do comércio em nacional e internacional[1] .

O comércio, marítimo ou terrestre, era internacional e livre desde a Antiguidade; tendo deixado de sê-lo por volta de 1800, com o advento do Estado moderno. Outro ponto de inflexação fundamental no cenário ocorreria com a chegada do comércio eletrônico, insuscetível de ser barrado por fronteiras estatais, cujo florescimento extraordinário nas duas últimas décadas propiciou enorme alteração, além de novos modelos de negócio. Indubitavelmente a presente pandemia contribuirá para realçar ainda mais as virtudes do comércio virtual, fazendo-o deslanchar mais rapidamente.

A venda tradicional da loja do fornecedor acabou por ser substituída pelos shoppings virtuais, que reúnem em um mesmo espaço virtual centenas de vendedores distintos (marketplace).  Despontaram primeiramente os sites de leilão (Ebay, Mercado Livre etc.), a seguir os sites de compras coletivas (Groupon, Peixe Urbano etc.) e os clubes de compra (Privália), finalmente as grandes plataformas de comércio eletrônico (Amazon e Americanas). Os serviços não ficaram alheios à essa tendência: hospedagem (Decolar, Submarino Viagens, Booking, AirBnB e delivery (IFood, Uber Eats, Rappi etc.).

A evolução do comércio eletrônico e a consequente figura constante e imprescindível dos intermediadores, tornaram necessário o estudo da responsabilidade civil relativa às essas novas realidades.

No Brasil, tal problemática não tem sido objeto de discussão aprofundada. Além dos dispositivos aplicáveis, ínsitos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, a única lex specialis é o Decreto das “Compras Coletivas” 7962/2013, exarado para regular o novel e singular tema.

As legislações pioneiras sobre temas novos tendem a ser estudadas e servir de modelo para as demais. Sobre o assunto, a União Europeia  emitiu três normas basilares: (i) o Regulamento 1150/2019[2], sobre as plataformas de intermediação de produtos e serviços (marketplaces); e (ii) as Diretivas 770/2019 e 771/2019, ambas sobre aquisição transfronteiriça de produtos e serviços no comércio eletrônico[3]. Essas diretivas são tidas como a principal inovação no direito contratual europeu dos últimos tempos.  

A citada União reconhece que a plataforma e os fornecedores delas dependentes não estão em pé de igualdade, urgindo o estabelecimento de regras contratuais mínimas entre eles:

“Os serviços de intermediação em linha podem ser cruciais para o sucesso comercial das empresas que utilizam estes serviços para chegar aos consumidores. Assim, a fim de tirar pleno partido das vantagens da economia de plataformas em linha, importa que as empresas possam confiar nos serviços de intermediação em linha com os quais estabelecem relações comerciais. Tal é importante essencialmente porque a intermediação crescente das transações por intermédio de serviços de intermediação em linha, fomentada por efeitos importantes de rede indiretos baseados em dados, conduz a um aumento da dependência por parte deste tipo de utilizadores profissionais, em especial as micro, as pequenas e as médias empresas ("PME"), relativamente a esse tipo de serviços, a fim de alcançarem os consumidores. Devido a essa dependência crescente, os prestadores desse tipo de serviços dispõem frequentemente de um poder de negociação superior, que lhes permite agir, de facto, de uma forma unilateral, que pode ser injusta e prejudicial para os interesses legítimos dos seus utilizadores profissionais e, indiretamente, para os consumidores da União. Por exemplo, os prestadores desse tipo de serviços podem impor unilateralmente aos utilizadores profissionais práticas que se desviam manifestamente da boa conduta comercial ou são contrárias à boa-fé e à lealdade contratual. O presente regulamento regula estes potenciais conflitos na economia das plataformas em linha.” (Considerando 2)

A Diretiva 770/2019, por seu turno, foi estabelecida com o intuito de estabelecer regramento jurídico harmônico vis-à-vis à tutela dos consumidores transfronteiriços de produtos e serviços no ambiente digital e das empresas atuantes no setor:

“Convirá harmonizar certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais, tendo como base um nível elevado de proteção do consumidor, a fim de alcançar um verdadeiro mercado único digital, reforçar a segurança jurídica e reduzir os custos de transação, designadamente para as pequenas e médias empresas (PME)”. (Considerando 3)

O escopo é criar regras jurídicas uniformes para produtos e serviços virtuais, tais como “programas informáticos, aplicações, ficheiros de vídeo, de áudio e de música, jogos digitais, livros eletrónicos e outras publicações eletrónicas, bem como serviços digitais que permitem a criação, o tratamento ou o armazenamento de dados em formato digital ou o acesso aos mesmos, nomeadamente o software enquanto serviço, de que são exemplos a partilha de ficheiros de vídeo e áudio e outro tipo de alojamento de ficheiros, o processamento de texto ou jogos disponibilizados no ambiente de computação em nuvem, bem como as redes sociais.” (Considerando 19).

Por fim, a Diretiva 771/2019, na linha da Diretiva 770/2019, vem regular a compra e venda de produtos/serviços transfronteiriços no comércio eletrônico. Como pontua o Considerando 4: “o comércio eletrónico é um motor essencial de crescimento no mercado interno. No entanto, o seu potencial de crescimento está longe de ser plenamente explorado. A fim de reforçar a competitividade da União e impulsionar o crescimento, a União deve agir rapidamente e incentivar os intervenientes económicos a libertarem todas as possibilidades oferecidas pelo mercado interno. O potencial máximo do mercado interno só pode ser libertado se todos os participantes no mercado beneficiarem de um fácil acesso às vendas transfronteiriças de bens, nomeadamente as transações de comércio eletrónico. As regras em matéria de direito dos contratos com base nas quais os participantes no mercado realizam transações encontram-se entre os principais fatores que moldam as decisões das empresas quanto à oferta de bens além-fronteiras. Essas regras influenciam também a predisposição dos consumidores para aceitar e confiar neste tipo de compra.”

Obviamente, as regras da União Europeia não são aplicáveis no Brasil. No entanto, importam por duas razões: (i) possibilidade de o regramento europeu servir quer de fundamento de projetos legislativos; quer, até mesmo, de embasamento de decisões judiciais (caso frequente com relação às decisões de tribunais administrativos e judiciais, no âmbito do direito da concorrência). O fato de o direito brasileiro, historicamente, pertencer à mesma cepa do direito europeu – família românico-germânica -, facilita enormemente.

Tendo em vista a impossibilidade de experimentação na esfera  das ciências humanas, a utilização criteriosa de legislação alienígena, seguindo o método e os preceitos do direito comparado[4], pode diminuir o erro e aumentar os acertos de eventual legislação brasileira que venha a lume sobre o tema.

O fato de a economia atual basear-se em dados e na digitalização[5] de produtos e serviços permite antever o crescimento contínuo do comércio eletrônico em todo mundo. Essas profundas mudanças devem ser analisadas do prisma jurídico; sendo o entendimento europeu um bom guia. A doutrina brasileira, que já começa a se preocupar com o assunto[6], precisa aprofundar-se nos aspectos jurídicos do markerplace, na análise do sucedido na União Europeia e na realidade brasileira.


[1] Rodas, João Grandino, “Os Estados controlam cada vez menos o comércio em suas fronteiras”, Revista Eletrônica CONJUR, 26 de novembro de 2015.

[2] O Regulamento 1150/2019, de 20 de junho de 2019, entrou em vigor em 31 do mesmo mês e ano, data de sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia.

[3] As Diretivas datadas de 20 de maio de 2019 foram publicadas no Jornal Oficial da União Europeia em 22 do mesmo mês e ano. Elas são complementares e devem ser transpostas aos direitos nacionais dos Estados- membros até 1º de julho de 2021; sendo a respectiva data de vigência 1º de janeiro de 2022.

[4] “O método comparativo procura, de maneira sistemática, por intermédio do cotejo, determinar correlações entre fatos, indivíduos, classes ou fenômenos, que possibilitarão a indicação de semelhanças ou diferenças, com o intuito de se chegar a um objetivo. Tal método, no campo jurídico, tornará possível confrontar, quer dois ou mais ordenamentos jurídicos, considerados em sua totalidade – macro comparação -; quer entre institutos afins de dois ou mais sistemas jurídicos diversos – micro comparação -, com objetivo finalístico, isto é colaborar para o fortalecimento da cultura jurídica.”  Cezaretti, Eric R., “Estudo Jurídico Comparativo sobre Controle de Concentração de Empresas: Brasil, França e México”, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da USP, 2017, p. 11.

[5] Sobre digitalização ver: Rodas, João Grandino, “Direito precisa compreender a mudança trazida pela agricultura digital” e “Universo jurídico também está passando pela transformação digital”, Revista Eletrônica CONJUR,  respectivamente, 11 de maio e 26 de outubro de 2017.

[6] Chiavassa, Marcelo e Andrade, Vitor Morais de, “Manual de Direito Digital”, São Paulo, Tirant lo Blanch Brasil, 2020.

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    é presidente e coordenador da Comissão de Pós Graduação Stricto Sensu do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes) e Sócio do Grandino Rodas Advogados. Desembargador Federal aposentado do TRF-3 e ex-reitor da USP. Professor Titular da Faculdade de Direito da USP, da qual foi diretor, mestre em Direito pela Harvard Law School, mestre em Diplomacia pela The Fletcher School e Mestre em Ciências Político-Econômicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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