Opinião

A segurança jurídica em tempos de crise

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2 de julho de 2020, 20h04

Crise, conforme conceituamos em texto anteriormente publicado [1], é no Direito Privado contratual e obrigacional a perturbação extrema e suprema dos equilíbrios obrigacionais e contratuais em determinado período de tempo, em razão de uma desarticulação global da economia nacional, que causa assimetria e holdup entre os parceiros contratuais, com elevação de custos obrigacionais imprevisíveis e a impossibilidade de se cumprir o que fora tratado em tempos de normalidade, com a consequente alteração da ambiência negocial e quebra da base do negócio jurídico, pondo em risco a sobrevivência financeira de um dos contratantes. Tais fatores justificam medidas legislativas supremas, genéricas e objetivas para salvar o contratante mais fraco e evitar as incertezas e altos custos de uma demanda judicial.

Como é de sabença comum, a segurança jurídica legislativa é temporal; para o passado se tem a garantia de que nunca será objeto da deliberação de proposta de emenda tendente a abolir: o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Para o presente, tem-se a garantia da eficácia normativa das regras jurídicas positivadas (legislação) que são publicadas para o conhecimento de todos (efeitos erga omnes), e para o futuro temos a garantia da irretroatividade e da anterioridade da lei, sendo que esta última é a possibilidade de se conhecer com antecedência o conteúdo da nova regra.

Contudo, segurança jurídica pretoriana é a previsibilidade das decisões judiciais, de forma que os operadores do direito saibam, com antecedência, o possível resultado de uma demanda no judiciário, e isso se dá por meio da análise dos precedentes, ou seja, das súmulas e enunciados dos tribunais estaduais e regionais, da súmulas vinculantes e dos recursos repetitivos dos tribunais superiores.

Não obstante, essas são as formas de segurança jurídica construída em tempos de normalidade. Para atrair o investidor estrangeiro e encorajar o empreendedor nacional é preciso mais que isso, é preciso que o Direito Constitucional e o Direito Privado infraconstitucional preveja a possibilidade de conformação [2] da norma com a dinâmica factual em tempos de grave crise para que se garanta a manutenção das regras negociais e o equilíbrio das relações.

Sem uma conformação da norma positivada com as condições dinâmicas dos fatos em tempos de crise, a judicialização das pretensões é inevitável, pois o credor buscará seu crédito e devedores tentarão se protegerem dos ataques dos credores ao seu patrimônio e, quanto ao consensualismo, este pode estar ameaçado pelos parceiros contratuais oportunistas que estão em uma condição legal e negocial preponderante, vez que a rebus sic stantibus, o ceteris paribus e o mutatis mutantis dependem, exclusivamente, de uma interpretação subjetiva da lei e do fato.

Na verdade, os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e até a coisa julgada adquiridos em tempos de normalidade podem ser, temporariamente, suspensos ou mitigados por lei temporária excepcional. Pensar diferente é acreditar que o Estado pode se sobrepor ao Direito ou ao Estado de Direito [3], o que acarretaria no fechamento de indústrias, do comércio, na falta de prestação de serviço e de desemprego em massa.

Muito embora se defenda que não há norma aplicável ao caos e que qualquer norma que tente se antecipar aos casos de excepcionalidade está fadada ao descarte [4], quando chegar o momento da crise, é preciso se especificar na lei quem terá o poder de determinar o que será feito na emergência [5], cabendo aos órgãos de controle, instar o Judiciário a verificar, apenas, se esse poder concedido pela norma constitucional está sendo utilizado com excessos. Assim, esse poder constitucional excepcional e temporário estaria sob o controle jurisdicional, visto que dentro de um cenário jurídico.

Não está se sustentando a troca do estado de direito por um estado de não direito em tempos de crise, mas sim de uma conformação normativa com a realidade econômica da crise, até porque, esta autorização de suspensão temporária de direitos adquiridos é uma forma de segurança jurídica excepcional para os tempos de crise que estaria autorizada no texto constitucional.

Essa relação entre normatividade e realidade factual, para André Ramos Tavares [6], é a abertura das normas constitucionais que possibilita a abertura do texto constitucional, o acompanhamento do desenvolvimento da realidade, permitindo sua permanência, superando-se, assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico, como um sistema (cognitivamente) fechado, conforme vigorou no positivismo formalista.

Para Andréa Magalhães [7], nessa hipótese não se cogita de submissão da normatividade pela realidade, mas apenas de aproximação dos dois pólos. A distinção é essencial. A norma passa a adequar-se à facticidade, sem qualquer sobreposição ou subjugo, em vez de apenas prever abstrações cunhadas em um contexto que se tornou anacrônico. Para a doutrinadora, em outros termos, a norma prescreve um novo dever ser, idealizado, pretendido, mas já bem mais factível porque adaptado e atualizado.

A Economia e o Direito sofrem influência um do outro, pois a Economia influencia o comportamento do judiciário na interpretação das leis, assim como a jurisprudência influencia na Economia [8], isso quando o juiz julga com a ética de responsabilidade weberiana [9], ou seja, com análise dos efeitos de seu julgamento na Economia e nos demais jurisdicionados não participantes do processo em julgamento. Hodiernamente, após desenvolvimento na doutrina anglo-saxônica, podemos chamar também de análise econômica do direito.

Essa falta de previsibilidade da norma em tempos de crise e da possibilidade de judicialização dos conflitos de interesses criados em razão do descumprimento forçado das obrigações anteriormente assumidas em tempos de normalidade em razão de força maior impede o empresário de conduzir e planejar suas relações jurídicas, pois os riscos empresariais assumidos estão alicerçados na previsibilidade e calculabilidade dos efeitos jurídicos dos direitos e obrigações assumidas em tempo de normalidade. Ainda que se tenha a imprevisibilidade das situações excepcionais, é preciso que o investidor e o empreendedor tenham também a segurança jurídica de que, em tempos de crise, a normatividade se alia a factualidade com o objetivo de preservar o bem do todo, de forma a preservar as empresas, os empregos, a manutenção e o equilíbrio nas relações negociais sem que, para tanto, tenham que caminhar pela via crucis de um processo judicial longo, caro, desgastante e imprevisível.

Assumir riscos empresariais não significa mergulhar em um abismo de incertezas e rumo ao completo desconhecido. Ao contrário, significa assumir riscos ordinários, comuns, previsíveis, oriundos de relações jurídicas que os empresários farão no comando da sua empresa, pois eles antes de abrirem seu fundo de comércio irão fazer as análises da legislação, civil, comercial, trabalhista, tributária, ambiental etc. da sua área de atuação. Na crise, o Estado de Direito deve ser ágil, eficiente e eficaz em preservar a função social da empresa e dos contratos. As consequências financeiras de uma crise imprevisível devem ser acalentadas por uma legislação da crise temporária elaborada por um poder autorizado por norma constitucional anterior à crise, para evitar a bancarrota em razão do descumprimento de obrigações em tempo de normalidade assumidas, pois a imprevisibilidade da crise não pode gerar insegurança jurídica nos investidores estrangeiros e empreendedores brasileiros, pois assumir os riscos da atividade empresarial, não é assumir riscos extraordinários, ocultos, obscuros, imprevisíveis e incalculáveis repita-se à exaustão , pois a confiança legítima nas instituições, nos poderes da República e no Estado democrático de Direito é tanto para os momentos de normalidade como para os de exceção (crise).

Por fim, resta claro que Economia e Direito dialogam e interferem mutuamente um no outro, tornando necessário em nosso texto constitucional uma reforma para incluir a possibilidade de, em momentos de grave crise, um poder da República, de preferência aquele com a atividade legiferandi e cujo resultado de sua produção vincula os demais poderes, o poder de determinar o que será feito na emergência da crise, como forma de segurança jurídica em tempos de excepcionalidade.

Isso não significa dizer que a ausência desse dispositivo constitucional, como ocorre no momento atual, inviabilize o legislador da crise, seja ele o Poder Executivo ou o Legislativo, de produzirem legislação temporárias excepcionais, mas, sem que um poder da República tenha essa responsabilidade autorizada no texto constitucional, sem premissas formais e materiais a serem observadas, infelizmente o Poder Judiciário será afogado em ações, seja pelos oportunistas contratuais, pelos devedores desesperados, ou por oportunistas políticos, e pensar que o consensualismo é uma das formas de evitar o litígio num país com a maior taxa mundial de judicialização é, no mínimo, ingenuidade e, com ausência de segurança jurídica em tempos de crise, os investidores estrangeiros preferem levar seu capital para países nos quais essas condições já estejam acomodadas. Que essa seja uma das lições deixadas pela crise da Covid-19 no Brasil.

 


[2] Para Andréa Magalhães a conformação da norma a realidade factual atende ao chamado dinamismo de Smend, já que o texto constitucional deveria ser razoavelmente aberto para permitir ao interprete conformá-lo a realidade Histórica e atual. MAGALHÃES, Andréa. Jurisprudência da Crise: Uma Perspectiva Pragmática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.p.174.

[3] Andréa Magalhães entende que esse pensamento de que o Estado se sobrepõe ao Direito ou ao Estado de Direito é um pensamento da ala dos que respondem com ares totalitários que: salus populi suprema lex est. MAGALHÃES. Andréa. Op. Cit. P. 156.[4] Segundo Carl Schmitt, enquanto uma exceção pressupõe uma ordem constitucional que forneça diretrizes sobre como enfrentar a crise para uma estabilidade, o estado de emergência não precisa ter uma ordem existente como ponto de referência porque necessitas non habet legem. SCHMITT, Carl. Political Theology: Four Charpter on the Concept of Sovereignty. Chicago: University of Chicago Press, 2006.p.13, apud MAGALHÃES. Andréa. Op.Cit. p.161

[5] SCHMITT, Carl. Op. Cit.p12. Apud. MAGALHÃES. Andréa. Op.Cit. p.162.

[6]TAVARES, André Ramos. A constituição Aberta. Revista Latino Americana de Estudos Constitucionais, nº 8, p.326-343, 2008, p.333. Apud. MAGALHÃES. Andréa. Op.Cit. p.173.

[7] MAGALHÃES, Andréa. Op.Cit. p.175.

[8] KITCH, Edmund W.the Fire of Truth: A rememberence of law end Economics at Chicago, 1932-1970. Jornal of Law and Economics, v.26, nº1, p.175-176, 1983. Apud. MAGALHÃES, Andréa. Op.Cit. p.189.

[9] Ética da responsabilidade sob a ótica weberiana é a que avalia os meios mais apropriados para se atingir os fins almejados, analisando suas possibilidades de êxito. As ações têm consciência de sua responsabilidade para com a coletividade, assim como das implicações que os objetivos desejados podem acarretar. Sua máxima consiste em afirmar: somos responsáveis por aquilo que fazemos.

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