Opinião

Novo PL de resolução bancária e a volta do Cavalo de Troia do Direito Administrativo

Autor

  • Felipe Herdem Lima

    é mestre em Direito da Regulação pós-graduado em Direito Empresarial autor dos livros: Liquidação Extrajudicial e seu devido processo administrativo Direito Bancário: Conceitos básicos Sistema Financeiro Nacional Contemporâneo: regulação e desafios; Resolução Bancária: Aspectos controversos e Novas Tendências do Sistema Financeiro Nacional; e sócio do escritório Herdem & Latini Advogados.

2 de julho de 2020, 6h05

Sem qualquer forma de participação popular, o Banco Central do Brasil (Bacen) submeteu, em 23 de dezembro de 2019, ao Congresso Nacional o projeto de lei complementar que dispõe sobre os regimes de resolução das instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, pela Superintendência de Seguros Privados e pela Comissão de Valores Mobiliários.

Hoje a resolução de instituições submetidas à fiscalização do Bacen é disciplinada pela Lei n° 6.024, de 13 de março de 1974, que possui como característica uma forte noção de liquidação coativa, abraçando em partes a legislação italiana de 1936, esquecendo-se, por vezes, dos direitos constitucionais dos envolvidos no processo. Como exemplo deste lapso constitucional, é possível elucidar três premissas: I) desequilíbrio processual, por ausência de um processo administrativo prévio a decretação dos regimes; II) contraditório limitado, por só ser possibilitado aos envolvidos o direito à ampla defesa após a decretação do regime; e III) parcialidades de autoridades julgadoras, com poderes consolidados, posto que é o próprio Bacen que classifica e julga os créditos, podendo por vezes ocorrer em situações de imparcialidade, por exemplo, na possibilidade de a autarquia julgar o valor e a natureza do seu crédito.

Regressando ao novo projeto de lei [1], este artigo se destina a promover questionamentos sobre as consequências de uma eventual aprovação da lei e seus possíveis impactos. Nessa linha, se buscará analisar algumas medidas discricionárias que de acordo com o PLP poderão ser adotadas pelos órgãos de resolução, principalmente no que diz respeito a medidas preventivas para evitar crises de insolvência e possíveis crises sistêmicas, como, por exemplo, a exigência de planos de recuperação, planos de saída organizada, criação de fundos garantidores. Tais iniciativas estão inseridas no conjunto de compromissos externos que o Brasil assumiu no âmbito do G-20, em função dos reflexos da crise financeira iniciada em 2008, que expôs importantes fraquezas dos sistemas financeiros modernos, incluindo a ameaça à estabilidade financeira.

Assim, como ponto de partida, é preciso deixar claro que não se pretende desvalorizar a importância de medidas preventivas, que de alguma forma asseguram ainda mais o Sistema Financeiro Nacional (SFN), o que está sendo objeto de reflexão são algumas externalidades negativas do ponto de vista jurídico e econômico, caso tais medidas sejam aprovadas em sua íntegra. Pretende-se, portanto, realizar reflexões de modo a contribuir ainda mais para a melhoria do projeto e consequentemente o fortalecimento do SFN.

No tocante ao aspecto jurídico, a primeira preocupação é a discricionariedade presente na adoção destes mecanismos, não existe qualquer critério objetivo para a adoção destes, deixando um buraco negro de subjetivismo para escolha pela autoridade de resolução, fato que merece atenção. Destarte, como preceitua a lei, são utilizadas expressões do tipo: a autoridade de resolução "poderá, a seu critério"; "poderá exigir", entre outras.

Sobre o tema, Eros Graus [2], influenciado pela obra de Hans Huber, classificou a discricionariedade como um autêntico Cavalo de Troia do Direito Público, já que constrói uma falsa legalidade. Todavia, apesar da posição brilhante do jurista, é razoável afirmar que a discricionariedade encontre hoje sua justificativa na impossibilidade da lei prever todas as situações que o administrador enfrentará para atender às complexas e crescentes necessidades da coletividade. Nessa mesma toada, como observa Gustavo Binenbojm [3], a constitucionalização do Direito ensejou uma incidência direta dos princípios constitucionais sobre os atos administrativos não diretamente vinculados pela lei, chegando à conclusão de que não há espaço decisório da Administração que seja externo ao Direito, nem tampouco margem decisória totalmente imune à incidência dos princípios constitucionais. Diante desse cenário, é possível concluir que apesar da ausência de critérios objetivos e a margem de discricionariedade, a Administração não está livre para agir de forma leviana.

Tal premissa encontra respaldo no Estado pós-moderno, em que a atuação da Administração Pública é permeada por novos princípios e valores, inclusive sobre o prisma da eficiência e da busca de melhores resultados, de tal forma que a autoridade de resolução deve se pautar em escolhas motivadas, explicitando os fatos que levaram a adoção de determinado regime, de modo que haja um controle do ato administrativo, permitindo eventuais questionamentos perante a esfera administrativa ou judicial.

Já entrando no ponto de vista de melhores resultados, é preciso destacar que a adoção das medidas preventivas pode levar a consequências negativas, tais como: I) exclusão de instituições do setor, pelo aumento do custo regulatório; e II) aumento da concentração de mercado, principalmente no SFN. O aumento do peso regulatório poderá levar a um problema econômico-financeiro, sendo mais um motivo para o regulador avaliar a necessidade e adequação da medida. Por sua vez, a evolução do setor bancário na segunda metade do século XX demonstra uma concentração econômica crescente. Segundo relatório do Grupo dos Dez [4], ao longo da década de 1990 o número anual de operações de fusões e aquisições no sistema financeiro mais do que triplicou. É de se destacar ainda que a quantidade de operações cresceu não apenas em valores absolutos, mas também em valores médios, passando de US$ 227,6 milhões em 1990 para US$ 826,6 milhões em 1999.

Diante do relatório mencionado, é possível chegar aos seguintes desfechos: o primeiro deles é no sentido de uma diminuição no número de bancos em cada país e um aumento na concentração do setor bancário, se considerarmos a porcentagem dos ativos detidos pelos dez maiores bancos relativamente ao restante da economia. A título de exemplo, nos Estados Unidos, país que representou mais de 30 megafusões na década de 1990, as dez maiores instituições detinham 26% do total de ativos bancários em 1989 e no final da década de 1990 passaram a deter 49%. Se considerarmos as 50 maiores instituições na economia, nota-se um aumento de 55% para 74% no mesmo período.

Isso posto e já concluindo, apesar das medidas preventivas serem muito bem-vindas, elas deverão passar pelo raio-X da ordem constitucional vigente, em outras palavras, o Cavalo de Troia deverá se sujeitar a um scanner.

 


[1] PL 281/19.

[2] GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2002. P. 195.

[3] BINENBOMJM. Gustavo. Uma teoria do Direito Administrativo: Direitos fundamentais, Democracia e Constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar:2008, p. 240.

[4] O Grupo dos Dez é uma organização internacional que reúne representantes de onze economias desenvolvidas e subdesenvolvidas. O G-10 foi fundado em 1962 por representantes dos bancos centrais do Alemanha, Bélgica, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Países Baixos, Reino Unido e Suécia. Em 1964, a Suíça foi incorporada ao grupo, que manteve a denominação G-10. Posteriormente, em Dezembro de 2011, juntaram-se a este grupo a Espanha e a Austrália.

Autores

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    é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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