Opinião

O impacto da MP 984/2020 nos contratos de direitos de transmissão

Autores

  • Abelardo Sampaio

    é mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) professor de Direito Empresarial e sócio do Escritório SHMM & Glicério Advogados.

  • Pedro Henriques

    é sócio do escritório SHMM e Glicério Advogados especialista em Direito Civil e do Consumidor executivo do esporte e melhor CEO de clubes de futebol do Brasil em 2019.

2 de julho de 2020, 6h35

Na última quinta-feira (25/6), fomos todos surpreendidos por uma edição extraordinária do Diário Oficial da União que trouxe consigo uma medida provisória destinada a alterar o regime jurídico dos direitos de transmissão das entidades de prática desportiva. A MP 984/2020 basicamente alterou a redação do artigo 42 da Lei Pelé (Lei 9.615).

Apesar da redação anterior não ser específica neste sentido, pacificou-se o entendimento de que para que fosse possível a transmissão do espetáculo esportivo era necessária a anuência de duas entidades participantes do evento, já que, mesmo se considerássemos que a lei deu a cada uma o direito de autorizar a transmissão, deu também o direito de proibir, ou seja, caso uma negociasse a transmissão e outra não, bastaria que essa segunda exercesse o seu direito de proibição para que o espetáculo não fosse transmitido.

Foi com base neste arcabouço jurídico, dos chamados "direitos compartilhados", que foram firmados os contratos de cessão de direitos de transmissão referentes aos jogos de futebol no Brasil através das mais diversas plataformas também chamadas de "janelas de transmissão" —, sendo as mais tradicionais a TV aberta, a TV fechada e o pay-per-view.

Inicialmente, como existia uma negociação coletiva dos direitos de transmissão pertencentes aos clubes por meio do Clube dos 13 , não havia qualquer dificuldade para execução dos acordos feitos, e, posteriormente, mesmo com a substituição da negociação coletiva por acordos individuais, todos os clubes mantiveram, inicialmente, acordos com a mesma emissora, a Rede Globo, mantendo o status quo, o que fazia com que 100% dos jogos do campeonato brasileiro fossem exibidos em todas as "janelas de transmissão".

A situação ganhou contornos mais relevantes quando, em 2016, alguns clubes do futebol brasileiro optaram por ceder seus direitos de transmissão para a TV fechada referentes aos Campeonatos Brasileiros de 2019 a 2024 [1] a uma emissora diversa – Esporte Interativo, adquirido pelo gigantesco grupo Turner, gerando a situação em que clubes participantes de um mesmo jogo poderiam ter contratos de transmissão com emissoras diferentes.

Diante desse cenário, o que acontecia era o seguinte: ao assinar um contrato de cessão de direito de transmissão, somente eram cedidos os direitos dos jogos que fossem realizados contra os demais times que houvessem negociado com o mesmo grupo de mídia. Tanto era assim que negociações foram feitas tomando por base um valor hipotético em que todos os jogos pudessem ser transmitidos e o valor realmente devido dependia de quantos signatários estivessem participando do campeonato em cada ano, que era o que determinava o número de jogos que poderiam ser exibidos.

Dessa forma, falando especificamente dos times que disputam a Série A do Campeonato Brasileiro em 2020, temos um cenário em que Athletico-PR, Bahia, Ceará, Coritiba, Fortaleza, Internacional, Palmeiras e Santos cederam à Turner os direitos relativos a 14 dos 38 jogos que farão durante o Campeonato Brasileiro de 2020.

Por outro lado, outros 11 clubes [2] cederam ao Grupo Globo para transmissão no canal Sportv os direitos relativos a 20 jogos dos 38 que farão durante o Campeonato Brasileiro de 2020.

Portanto, dos 380 jogos do Campeonato Brasileiro, 110 poderão ser transmitidos pela Globo, 56 pela Turner e, guardem esse próximo número, 214 jogos não poderão ser transmitidos por nenhuma das duas, ou não poderiam… Veremos.

A grande questão está em determinar quais serão os efeitos que decorrerão da edição da medida provisória para os contratos de cessão de direito de transmissão, e iremos analisar tais efeitos a partir do exemplo acima do Campeonato Brasileiro, que entendemos ser o mais impactado pela mudança.

Da leitura da redação dada ao artigo 42 da Lei Pelé pela MP 984, verificamos que, a partir da sua publicação, e a MP é expressa em afirmar que entra em vigor a partir da data de sua publicação, os direitos de transmissão de eventos esportivos passaram a ser exclusivamente da entidade desportiva mandante, deixando de existir a necessidade de anuência de ambos os clubes para a transmissão, exceto nos casos de jogos sem mando de campo, como por exemplo uma final em jogo único de um campeonato em formato de copa.

O problema que se segue é o seguinte: I) os contratos firmados sob a norma anterior continuam vigentes ou terão de ser firmados novos contratos?; II) Como ficam aqueles 214 jogos do Campeonato Brasileiro que não poderiam ser transmitidos por nenhuma das duas emissoras, agora que o mandante é detentor exclusivo do direito de transmissão?; III) Os jogos em questão passarão a integrar os contratos anteriormente firmados?; ou IV) Esses jogos poderão ser livremente comercializados pelos clubes?

Não nos restam dúvidas de que os contratos firmados sob a égide da norma anterior continuam vigentes, eles se enquadram no conceito de ato jurídico perfeito e não podem ter sua validade questionada em razão de edição de lei ou medida provisória posterior. Esse, inclusive, foi o argumento utilizado na nota oficial emitida pela Globo especificamente em relação à possibilidade de transmissão do jogo Bangu x Flamengo, pelo Campeonato Estadual do Rio.

Apesar de concordarmos integralmente com o fundamento, discordamos veementemente da conclusão a que chegou a Globo, em clara construção direcionada a defender seus próprios interesses, porém dissociada da melhor técnica jurídica, ao afirmar que a medida provisória não afeta os direitos já cedidos, seja para temporadas atuais, seja para futuras.

Neste ponto temos de fazer uma análise da aplicação da teoria do ato jurídico perfeito por sobre as chamadas obrigações de trato sucessivo.

Dentro da teoria das obrigações, podemos classifica-las levando em consideração o momento em que as mesmas devem ser cumpridas, podendo ser: I) de execução imediata, aquela cujo cumprimento ocorre de logo, em um único momento (o sujeito compra uma caneta, entrega o dinheiro e recebe a caneta); II) diferida, aquela que será cumprida no futuro (encomenda de obra de arte cujo pagamento será realizado integralmente quando de sua entrega no momento futuro); ou III) periódica, também chamada de obrigação de trato sucessivo, que se caracteriza pelo cumprimento por meio de atos reiterados que se prologam no tempo (como um contrato de aluguel no qual o proprietário do imóvel mantém a obrigação de ceder a posse do espaço ao passo que o inquilino precisa realizar pagamentos periódicos).

Não há como questionar que os contratos de cessão de direitos de transmissão são contratos de trato sucessivo, vez que sua execução se prolonga no tempo, durante todo o tempo de duração do contrato.

Em razão do prolongamento dos efeitos do contrato no tempo, é necessário um maior cuidado na aplicação da teoria do ato jurídico perfeito sobre esse caso, pois existe um princípio de direito intertemporal que deve também ser levado em conta: o efeito imediato da nova lei.

Diante disso, a teoria do ato jurídico perfeito atua para impedir a retroatividade da lei impossibilitando que seus efeitos "voltem no tempo" para atingir atos já concluídos anteriormente —, protegendo, assim, os fatos idôneos, ocorridos sob a égide de lei anterior, cujos efeitos já foram incorporados ao patrimônio jurídico das partes.

Porém, em razão da eficácia imediata da nova lei, todos os efeitos dos contratos firmados anteriormente que vierem a ser produzidos depois da edição da medida provisória ficarão subordinados a esta.

Trocando em miúdos: não se pode usar os termos da MP para questionar o que já foi executado anteriormente transmissões e respectivos pagamentos do campeonato de 2019, por exemplo —, mas o novo regramento impacta nos efeitos que ainda serão produzidos de 2020 a 2024.

Isso, inclusive, está determinado pelo próprio Código Civil de 2002 em seu artigo 2.035, ao regular os efeitos das disposições do novo código sobre os negócios jurídicos firmados sob o anterior.

A mesma lógica deve ser aplicada em relação aos contratos de cessão de direitos de transmissão.

Os contratos são válidos, não há o que se questionar sobre os efeitos produzidos até a edição da MP 984, porém, a partir desse ponto, tais contratos devem obediência à MP, somente podendo abranger os direitos relativos ao mandante do espetáculo esportivo, visto que os direitos como visitantes não mais existem.

Dito isso, responde-se ao primeiro questionamento levantado, mantendo-se vigentes os contratos atualmente existentes, sem necessidade de ser firmado um novo contrato, o que não significa dizer que as emissoras poderão transmitir todos os jogos dos clubes que têm sob contrato, porque neste caso não estaríamos mais falando de validade ou vigência dos contratos de transmissão, mas, sim, da extensão dos direitos contratados.

Então, para entender se todos os jogos dos mandantes passarão a integrar os contratos vigentes ou se os clubes poderão livremente negociar o direito de transmissão dos jogos que não poderiam ser exibidos nos termos da lei anterior, nós temos de recorrer aos requisitos de validade de um negócio jurídico, mais especificamente no que tange ao seu objeto.

Com relação aos contratos de cessão dos direitos de transmissão, em razão de, sob a lei anterior, ser necessária a anuência do clube mandante e do visitante, o objeto do contrato era determinável, pois dependia da quantidade de times que estivessem sob contrato com o mesmo grupo de mídia detentor dos direitos a cada edição do Campeonato Brasileiro. Tanto é assim que, como dito anteriormente, a remuneração do contrato variava de acordo com a quantidade de times que preenchessem esse requisito.

Por mais que esse objeto não fosse fixo, ele flutuava dentro de uma "moldura determinada", qual seja, a existência de mandante e visitante sob contrato do grupo de mídia detentor dos direitos, jamais poderia variar para além destes limites.

Diante disso, podemos afirmar que o objeto dos contratos de cessão dos direitos de transmissão firmado sob a égide da lei anterior limitava-se àqueles direitos relativos aos jogos em que mandante e visitante tivessem um mesmo contratante, pois somente estes poderiam ser objeto de cessão, já que a lei impunha a anuência dos dois clubes participantes.

Ocorre que, a partir da edição da MP 984/2020, os clubes que haviam firmado esse contrato anteriormente passaram a ser detentores dos direitos de transmissão de todos os jogos em que sejam mandantes ocorridos após a publicação da medida provisória, porém nem todos esses jogos se enquadram na moldura indicada acima que limitava o objeto dos contratos de cessão até então firmados.

A edição da medida provisória em si não impacta nos jogos que as emissoras já poderiam transmitir, pois se elas antes, para tanto, precisavam ter sob contrato os dois times, por óbvio elas possuem o mandante daqueles jogos, que será o atual detentor do direito.

Entretanto, é preciso que as partes adequem o contrato à nova realidade legal, visto que com mudança legislativa diversos outros jogos poderão ser transmitidos com base no mesmo contrato, já que houve uma extensão desse objeto para todos os jogos em que o clube for mandante.

A título de exemplo, se com base no regime anterior a Globo poderia transmitir 110 jogos do Brasileirão 2020, a partir da MP ela passará a poder transmitir 209 jogos, quase o dobro! Naturalmente isso pede uma revisão no valor de contraprestação.

O certo é que não há como incluir automaticamente esses novos jogos sob o manto dos contratos existentes sem que se aumente proporcionalmente os valores pagos aos clubes, uma vez que o número de jogos transmissíveis aumentou e muito.

Porém, temos de ter em mente também que as emissoras não podem ser simplesmente obrigadas a pagar o valor proporcional pelos demais jogos, visto que, quando o contrato foi firmado, eles não faziam parte do seu objeto.

Entendemos, então, que cabe aos clubes que cederam seus direitos de transmissão notificar as emissoras para que estas manifestem se desejam, ou não, incluir no escopo do contrato esses novos jogos, e, obviamente, pagar o valor proporcional a estes.

É inquestionável, contudo, que, caso as emissoras optem por não incluir esses novos jogos, os clubes mandantes poderão livremente comercializar os direitos de transmissão relativos a esses novos produtos com quem bem entenderem.

Não se pode alegar também eventual violação a cláusula de exclusividade inserida em tais contratos, pois tal restrição também está adstrita ao objeto contratual, somente sendo exclusivos os direitos de transmissão referentes aos jogos que integrem o contrato, e que expressamente as emissoras teriam optado por não estender aos novos jogos.

Assim, os clubes devem, primeiro, buscar a preservação do negócio jurídico firmado com a detentora dos seus direitos de transmissão com o devido reajuste por conta da alteração do objeto contratual por força de lei (MP no caso). Não havendo acordo, naturalmente não poderia a emissora impor uma cláusula de exclusividade sobre o objeto que não aceitou incluir no acordo pré-existente. Isso, na verdade, consistiria em comportamento contraditório, o que é vedado pelo direito (nemo potest venire contra factum proprium).

Em se tratando de Campeonato Brasileiro 2020, estaríamos falando de mais 214 jogos (lembram que pedimos para guardar esse número?), que ou as emissoras aceitam pagar o proporcional pela transmissão das partidas, ou estas poderiam ser livremente comercializadas pelos clubes mandantes.

É uma quantidade de jogos maior do que a Globo e a Turner juntas poderiam transmitir em TV fechada até então. Ou seja, estamos falando em um mercado que poderia, em tese, até mesmo dobrar os valores a serem recebidos por conta dessa "janela de transmissão" do campeonato.

Em caso de litígio, podemos afirmar com segurança que qualquer alteração não consensual no objeto nos contratos firmados confere às partes o direito de revisar judicialmente os valores de contraprestação tanto para evitar uma possível vantagem excessiva gerada, seja esta, por exemplo, um incremento no número de jogos transmitidos, quanto para impedir um flagrante prejuízo aos clubes, que poderiam, por exemplo, ter retirados de sua disponibilidade jurídica jogos que anteriormente não faziam parte do negócio firmado entre as partes.

Por fim, é imperativo destacar que a perpetuação desses efeitos dependerá da conversão em lei da MP 984/2020 dentro do prazo legal, mas, enquanto este prazo não se encerrar, a medida provisória produzirá todos os efeitos elencados acima.

 

[1] Necessário ressaltar que nem todos os clubes assinaram pelo mesmo período. O Internacional cedeu os direitos apenas para os anos de 2019 e 2020.

[2] O Red Bull Bragantino ainda não firmou contrato de cessão dos seus direitos de transmissão. O Coritiba ainda não negociou todas as plataformas. Há impactos relevantes para esses dois clubes, que serão objeto de estudo em artigo futuro.

Autores

  • é sócio do escritório SHMM e Glicério Advogados, professor, mestre em Direito pela UFBA e conselheiro do E. C. Bahia.

  • é sócio do escritório SHMM e Glicério Advogados, especialista em Direito Civil e do Consumidor, executivo do esporte e melhor CEO de clubes de futebol do Brasil em 2019.

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