Opinião

Impactos da reforma da Previdência na complementação de aposentadorias

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2 de julho de 2020, 13h39

O regime jurídico único do funcionalismo público, de natureza estatutária, nem sempre foi a realidade do país. Até o advento da Constituição de 1988, era absolutamente comum que servidores regidos por sistemas distintos desempenhassem as mesmas funções, lado a lado, em sua sala de trabalho. O Estado de São Paulo, por exemplo, possuía ao menos três regimes superpostos de pessoal: seu estatuto, a Consolidação das Leis Trabalhistas e a figura mista das funções-atividade. Nesse cenário, não raro chegavam ao campo político e aos tribunais pleitos de tratamento isonômico.

Ora os grupos de interesse obtinham vitórias expressivas na aproximação dos diferentes regimes, ora os Poderes Legislativo e Judiciário aprofundavam suas particularidades, o que tornava a questão ainda mais complexa. O resultado desse processo era a persistência de uma organização administrativa pouco transparente e com controle inefetivo das despesas públicas em matéria de pessoal. A Constituição de 1988 pretendeu alterar a realidade até então existente a partir da instituição, em seu artigo 39, caput, de um regime jurídico único, com planos de carreira em todas as administrações públicas do país.

Esse, contudo, está longe de ser o final dessa história. Muitas disposições legislativas anteriores à Constituição de 1988, que tratavam da matéria, reminiscências da disputa política por isonomia entre os diferentes regimes jurídicos de pessoal, continuaram a produzir efeitos regulares. Este é justamente o caso do objeto do presente estudo, a complementação de aposentadorias e de pensões. Trata-se de benefício de natureza administrativa que assegura a algumas categorias profissionais, após a passagem à inatividade, o direito de perceber idênticos proventos àquele paradigma em exercício, a despeito das limitações impostas pelo regime oficial de previdência.

Como sabido, servidores ocupantes de cargo efetivo, disciplinados pelo estatuto, até o advento da Emenda Constitucional nº 41/03, gozavam do direito à paridade e à integralidade de seus benefícios previdenciários. Em outras palavras, o regime estatutário assegurava que seus servidores, ao passar à inatividade, continuariam a perceber o último salário em exercício, com os reajustes subsequentes obtidos por seus pares no plano de carreira. Esta era uma das garantias exclusivas dos funcionários ocupantes de cargo efetivo que, como visto acima, gerava críticas em virtude de seu descompasso com os demais servidores por ela não alcançadas.

Assim, a complementação de aposentadoria e de pensão foi uma resposta do Estado a categorias profissionais mais organizadas, que tiveram êxito no processo político de extensão da vantagem funcional da paridade. No Estado de São Paulo, especificamente, a Lei Estadual nº 1.386/1951 foi responsável por introduzir o benefício na Administração Pública direta, ao passo que a Lei Estadual nº 4.819/1958 expandiu sua aplicação também a servidores celetistas que integravam as autarquias e empresas estatais estaduais. Desse modo, o Poder Legislativo atuou no sentido da diminuição da assimetria entre os regimes de contratação de pessoal do Estado.

Nesse ponto, é importante destacar que, embora produzam resultados semelhantes, a complementação e a paridade são institutos bastante distintos. O primeiro, como visto, possui natureza administrativa, tendo sido criado pela legislação infraconstitucional. O segundo, por seu turno, era uma característica dos benefícios previdenciários do Regime Próprio de Previdência Social até o advento da Emenda Constitucional nº 41/03. É dizer, portanto, que, buscando aproximar dois regimes funcionais diferentes, o legislador estadual criou mais um dispendioso e questionável benefício administrativo.

Diante disso, foi observado o grave desequilíbrio econômico-financeiro do sistema, arcado exclusivamente com recursos do erário. Não por outra razão, a Lei Estadual nº 200/1974 teve por escopo extinguir o benefício administrativo instituído pela legislação estadual acima referenciada. A rigor, segundo consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, sequer seria necessário garantir qualquer direito adquirido ao regime jurídico [1]. Porém, ainda assim, o legislador estabeleceu generosa regra de transição, atendendo a pressões de categorias profissionais interessadas.

A bem da verdade, o parágrafo único do artigo 1º da Lei Estadual nº 200/74 assegurou que "os atuais beneficiários e os empregados admitidos até a data da vigência desta lei, ficam com seus direitos ressalvados, continuando a fazer jus aos benefícios decorrentes da legislação ora revogada". Em outras palavras, foi garantido o direito adquirido dos beneficiários do regime, bem como foi estendido regime de proteção a todos aqueles empregados admitidos até sua revogação, em 13 de maio de 1974 [2]. Desse modo, atualmente, uma vez que obtenham benefício de aposentadoria ou de pensão por morte junto ao INSS, estes servidores passam a gozar de complementação pelo Estado de São Paulo, para que percebam os valores pagos a seus paradigmas em atividade.

Apenas para que se tenha ideia do alcance da referida regra de transição, ela atende, hoje, ao número aproximado de 12 mil aposentados, sem considerar os beneficiários das pensões. O impacto financeiro anual aos cofres públicos gira em torno de meio bilhão de reais, observando que mensalmente são dispendidos cerca de 40 milhões de reais com a folha de pagamento da complementação de aposentadorias, excluídas as pensões [3].

Pois bem. Como sabido, a Emenda Constitucional nº 103/2019 promoveu substancial alteração no sistema de Previdência Social, exigindo sacrifícios de toda sociedade civil. Nesse contexto, insere-se a reforma nas regras de aposentadoria e de pensão do Regime Próprio de Previdência Social, aproximando-o, de forma definitiva, do Regime Geral de Previdência Social [4]. Aliás, até mesmo os regimes de transição inseridos por reformas constitucionais anteriores foram revogados e substituídos por outros que tornam ainda mais exíguas as garantias da integralidade e da paridade aos servidores públicos estatutários [5].

Na atual quadra histórica, portanto, a razão de existência da complementação não mais persiste. De fato, a eliminação quase completa, no âmbito do Regime Próprio de Previdência Social, da paridade e da integralidade, mesmo nas regras de transição, reflete a inexistência de qualquer fundamento atual de isonomia a justificar referido direito. A manutenção do benefício representaria, isso sim, violação ao seu propósito inicial e questionável de igualdade remuneratória na inatividade.

Atento a isso, o poder constituinte derivado acrescentou o §15 ao artigo 37 da Constituição Federal, que assim dispõe: "É vedada a complementação de aposentadorias de servidores públicos e de pensões por morte a seus dependentes que não seja decorrente do disposto nos §§14 a 16 do artigo 40 ou que não seja prevista em lei que extinga regime próprio de previdência social". O artigo 7º da Emenda Constitucional nº 103/19 encarregou-se, por sua vez, de disciplinar regime de transição: "O disposto no §15 do artigo 37 da Constituição Federal não se aplica a complementações de aposentadorias e pensões concedidas até a data de entrada em vigor desta Emenda Constitucional".

A nova regra constitucional possui o claro propósito de eliminar benefícios de natureza administrativa que fazem as vezes da paridade e da integralidade na Administração Pública, pois não mais se compatibilizam com o sistema constitucional de Previdência Social existente. A rigor, como explicitado no texto constitucional, as únicas formas válidas de complementação, com recurso público, seriam a Previdência Complementar e o excepcional regime indenizatório previsto para os casos de extinção de Regime Próprio de Previdência Social.

Nesse contexto, a legítima opção política consubstanciada na regra do artigo 37, §15, da Constituição Federal preserva a isonomia, salvaguarda recursos públicos e possui impacto imediato sobre os regimes de complementação de aposentadorias e de pensões ainda existentes nos diversos entes federativos, como é o caso do Estado de São Paulo. Em que pese a clareza do mandamento constitucional, permanece questão sensível acerca dos limites à preservação do direito adquirido, corolário da segurança jurídica, e cláusula pétrea em nosso sistema.

A rigor, por se tratar de benefício de natureza administrativa, o Supremo Tribunal Federal sempre compreendeu que inexistiria direito adquirido a regime jurídico. Não por outra razão, o artigo 7º da Emenda Constitucional nº 103/19 apenas preserva os efeitos das complementações já concedidas, o que parece legítimo e de acordo com a cláusula protetiva do direito adquirido. De todo modo, uma possível leitura mais consentânea com a doutrina e com a jurisprudência pátrias, seria aquela de que estariam preservados os direitos de todos possíveis beneficiários que já preencheram os requisitos para sua concessão. A maior viabilidade desta interpretação constitucional decorre de duas razões, a seguir explicitadas.

De um lado, reflete sensibilidade com a realidade das administrações públicas do país, que não atendem a contento aos parâmetros de eficiência exigidos pela sociedade civil. No caso específico das complementações, o cenário é agravado pela dependência de demonstração da regularidade da situação previdenciária junto ao INSS, que passa hoje por grave crise de atraso no atendimento aos pedidos de benefício pendentes [6]. Assim, não parece crível agravar a situação jurídica dos cidadãos em virtude de deficiências da Administração Pública. Essa é perspectiva, aliás, mais afinada com a recente reforma da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que, em seu artigo 23, assegura regime de transição justo.

De outro lado, segundo a orientação consolidada dos tribunais superiores, o alcance do conteúdo de direito adquirido em matéria previdenciária sempre envolveu o critério do preenchimento dos requisitos para sua obtenção. O parâmetro está cristalizado, no caso das aposentadorias, no enunciado de súmula nº 359, do STF [7]; e no caso das pensões, no enunciado de súmula nº 340, do STJ [8]. Ora, sendo a complementação benefício administrativo de natureza acessória, parece legítima a aplicação do mesmo parâmetro adotado pelos tribunais superiores.

Nesses termos, à luz do contexto administrativo e da jurisprudência dos tribunais superiores, defende-se que a regra de transição prevista no artigo 7º da Emenda Constitucional nº 103/19 deve ser interpretada de modo a assegurar direito adquirido apenas àqueles que já preencheram os requisitos para obtenção de aposentadoria ou de pensão por morte no Regime Geral de Previdência Social. Assim, será possível preservar a justiça intergeracional, com o respeito efetivo ao direito adquirido, sem descuidar do maior fôlego às contas públicas.

 


[1] Apenas para demonstrar a antiguidade do posicionamento jurisprudencial nessa matéria, exemplifica-se com precedente contemporâneo aos fatos narrados: STF. Plenário. MS 15.148/DF, relator Ministro Cândido Motta, DOU de 23.08.1967.

[2] Anote-se que, embora o marco temporal pareça distante, se está diante de benefícios administrativos de longa duração, os quais por essência possuem efeitos protraídos no tempo. Não por outra razão, existe, ainda hoje, significativa parcela de beneficiários de complementação de aposentadoria e de pensão no Estado de São Paulo.

[3] Os dados foram obtidos por meio do Núcleo de Pesquisas Empíricas e Litigância Estratégica da Procuradoria-Geral do Estado, com base na folha de pagamento referente ao ano de 2019, versando apenas sobre a complementação de aposentadoria, excluída a complementação de pensão.

[4] Não custa lembrar que a aproximação dos Regimes de Previdência hoje existentes era um dos objetivos do Governo Federal. Veja-se trecho do comunicado encaminhado pelo Ministério da Economia: "No caso dos servidores públicos vinculados a RPPS, a regra permanente permite aposentadoria aos 60 anos para homens e 55 anos para mulheres. Contudo, em função de regras de transição e grande relevância de aposentadorias especiais, na prática, as idades de aposentadoria acabam, muitas vezes, sendo inferior a esses parâmetros. Ademais, para muito servidores, o teto do valor dos benefícios é muito superior ao teto do RGPS, em que pese as diferentes regras de contribuição. Deste modo, parece desejável uma maior convergência entre RGPS e os RPPS".

[5] A bem de ver, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu a constitucionalidade da prática de alteração dos regimes de transição, desde que não prejudique aqueles que já gozam de direito adquirido. No ponto, merecem transcrição as ponderações do então ministro Menezes Direito: "(…) nós estaríamos de fato a reconhecer que o regime de transição é, ele próprio, um direito adquirido. Isso, a meu sentir, seria, no plano de fundo, uma verdadeira contradição, porque o direito adquirido está vinculado diretamente ao preenchimento do suporte fático que autoriza o evento da aposentadoria. Estamos diante de uma transição que (…) está subordinada ao critério da expectativa de direito, e esta expectativa de direito não gera, ela própria, um direito adquirido". (STF. Plenário. ADI nº 3.104/DF, Relatora Ministra Cármen Lúcia, DJE 09.11.2017).

[6] Em nota técnica da Secretaria de Previdência, encaminhada à Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional, há informação de que em 1º/1/2019, havia 1,9 milhão de pedidos acumulados. Após, segundo o mesmo documento, os avanços da Reforma da Previdência e da digitalização do sistema de requerimento administrativo, levaram a um pico de mais de 2,5 milhões de pedidos em julho de 2019. Em janeiro de 2020, a informação é de que ainda existiriam 1,3 milhão de pedidos considerados atrasados pela autarquia federal (Fonte: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/01/18/inss-pedidos-atrasados-aposentadoria-beneficios-medidas-governo.htm)

[7] Enunciado de súmula nº 359, do STF: "Ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou o servidor civil, reuniu os requisitos necessários".

[8] Enunciado de súmula nº 340, do STJ: "A lei aplicável à concessão de pensão previdenciária por morte é aquela vigente na data do óbito do segurado".

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