Direto do Carf

Revogação tácita e revogação expressa à luz da jurisprudência do Carf

Autores

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

1 de julho de 2020, 13h52

Nas últimas semanas, o Carf divulgou os vídeos das sessões realizadas virtualmente, dentro do contexto atual de isolamento, e foi destaque a forma como o artigo 19-E, da Lei nº 10.522/02, foi "aplicado" pelos presidentes de turma, mormente em um julgamento realizado no âmbito da 1ª Seção. O vídeo está disponível aqui [1] e sua visualização é necessária para a compreensão da situação, tendo em vista que os fundamentos não constam em ata de julgamento nem em voto.

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Dois pontos chamam a atenção: I) o presidente da turma avoca para si a tomada de decisão monocrática acerca do alcance do referido artigo 19-E, fundamentando isto no artigo 58, §1º, do RICarf [2] e na prerrogativa de proclamação do resultado; e II) aduz que o artigo 25, §9º, do Decreto nº 70.235/72 [3] não teria sido revogado tacitamente, mas excepcionado, em razão da inexistência de cláusula expressa de revogação, conforme a Lei Complementar nº 95/98.

Quanto ao primeiro item, essa interpretação parece conflitar com o próprio "Manual do Presidente de Turma", editado pelo Carf, o qual diferencia duas etapas distintas: I) a apuração do resultado do julgamento, momento no qual se verifica, p.ex., a necessidade de desempate com a aplicação do novel artigo 19-E, a necessidade de apresentação de declaração de voto no caso da maioria acompanhar o relator "pelas conclusões" ou, ainda, a necessidade de votações sucessivas quando há mais de duas posições; e II) a proclamação do resultado do julgamento, que externa o resultado da apuração e tem efeito preclusivo sobre a prerrogativa dos conselheiros de alterar sua posição, encerrando o julgamento [4]. O artigo 58, §1º, do RICarf nada dispõe sobre a possibilidade de juízo monocrático do presidente na apuração do resultado do julgamento, até mesmo porque, nesse mister, cabe a ele apenas aplicar o rito vigente.

Entretanto, na coluna desta semana, o tema que pretendemos abordar é o outro, a respeito da (des)necessidade de explicitação da natureza revogatória de uma determinada norma, haja visto o teor do disposto no artigo 9º da Lei Complementar 95/98 [5] e a forma como o Carf tem tratado a figura da revogação tácita.

Spacca
Antes, todavia, de analisar o tratamento dado pela jurisprudência do Carf para tal dispositivo mister se faz, neste momento, dar um passo atrás na discussão e registrar que quando se trata de valência de normas jurídicas é possível falar-se em validade, vigência e eficácia. A revogação de uma norma jurídica, por sua vez, ataca a vigência da norma revogada, ou seja, a sua capacidade de continuar propagando efeitos para o futuro.

Pois bem. Feitas tais considerações, é possível agora se debruçar sobre o referido artigo 9º da Lei Complementar 95/98. Referida legislação tem por escopo regular o parágrafo único do artigo 59 da CF/88 e, com isso, disciplinar técnicas legislativas para redação, criação, alteração e revogação de textos normativos. Por sua vez, o seu citado artigo 9º prescreve: "A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas". Em outros termos, partiria de um pretenso pressuposto que as normas revogadoras devem ser explícitas, como externado no julgamento apresentado no início deste artigo, em contrariedade à disposição do artigo 2º, §1º, da LINDB, verbis:

"Artigo 2  Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

§1º. A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior".

Por mais bem intencionada que seja um minucioso controle das revogações por meio de cláusulas expressas, isso seria incompatível com a complexidade (e gigantismo) da produção normativa no cenário jurídico nacional. Essa circunstância, inclusive, foi detectada e debatida na elaboração a LC nº 95/98, quando o então deputado Roberto Magalhães, relator do parecer no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça, rejeitou expressamente uma emenda que tornaria obrigatória a revogação expressa, assim se manifestando:

"Indubitavelmente, a revogação expressa dos dispositivos contrários ao novo ato normativo que surge no ordenamento jurídico é medida conveniente e adequada.

A menção no próprio corpo da norma daqueles dispositivos a ela anteriores e contrários, facilita, sobremaneira, a aplicação da nova lei.

Entretanto, impossível ignorar o fato de que o ordenamento jurídico brasileiro é de tal forma complexo, que a revogação expressa, muitas vezes, restará falha. Neste país, não são poucos os casos de normas derrogadas, que sobrevivem com um ou dois dispositivos, mesmos após a revogação da maior parte de seu texto.

(…)".

Na sequência, inclusive, apresentou uma subemenda no sentido de que a revogação expressa deveria se dar "sempre que possível", mas no final a retirou, e votou contra a emenda por considerá-la ineficaz, visto que "a lei de introdução ao Código Civil já regulou suficientemente este assunto não havendo, pois, porque alterar sua sistemática". Em suma, manteve-se a redação da promulgação, por entender que não conflitava, inclusive, com a LINDB.

Feitas essas considerações preambulares, vejamos como a jurisprudência do Carf tem analisado o disposto no artigo 9º da LC nº 95/98. Para tanto, pinçamos algumas decisões que, exemplarmente, retratam a jurisprudência do tribunal para a questão.

Nesse sentido, a primeira decisão a ser analisada está veiculada no acórdão Carf nº 3101-000.256 [6]. Nesse caso, o contribuinte alegava a nulidade do lançamento perpetrado ao fundamento de erro na sua motivação. Segundo o contribuinte, o lançamento da multa de 50% pelo não retorno ao exterior de mercadoria submetida ao regime de admissão temporária deveria ter sido capitulado no artigo 106, inciso II, "b", do Decreto-Lei nº 37/66, e não no disposto no artigo 72, inciso I, da Lei 10.833/03, uma vez que esse último prescritivo legal não teria expressamente revogado o primeiro, o que conflitaria com o artigo 9º da citada Lei Complementar 95/98. Ao analisar a questão, o relator do caso, acompanhado por unanimidade, aduziu que o artigo 9º da LC n° 95/98, aboliu a chamada revogação genérica, traduzida pela expressão "revogam-se as disposições em contrário", mas que, todavia, não desapareceu do sistema jurídico a revogação tácita, porquanto é impossível ao legislador ter presente, o tempo todo, a perfeita compreensão dos efeitos que as normas jurídicas contidas no texto legal terão sobre as demais normas já constantes do sistema jurídico.

Em outro caso recém-analisado, pelo acórdão Carf nº 3402-007.326 [7], referente a uma exigência de PIS/Cofins, na hipótese de operação de industrialização por encomenda, entendeu o colegiado, por unanimidade de votos, que "o ADE SRF nº 7, de 22 de abril de 2003, não socorre(ria) a recorrente, vez que, na parte que é incompatível, foi revogado tacitamente pela nova redação do §2º do artigo 10 da Lei nº 11.051/2004, dada pela Lei nº 11.196/2005" [8], o que afastaria a alegação do contribuinte de que tal operação estaria sujeita à alíquota zero para PIS/Cofins. Em idêntico sentido foi o teor da decisão da mesma turma julgadora no Acórdão Carf 3402-006.589.

Na mesma linha, o acórdão CSRF nº 9303-006.987 [9] reconheceu a revogação tácita do artigo 486, II, "a", do RIPI/2002, pelo artigo 100, II, do CTN, para fins de manutenção de penalidade aplicada contra o contribuinte. O mesmo colegiado, em outras oportunidades: I) acórdão CSRF nº 9303-003.270 [10] reconheceu a revogação tácita da isenção de Cofins para as cooperativas de crédito, concedida pela LC nº 70/91; e II) acórdão CSRF nº 9303-008.133 [11] reconheceu a revogação tácita do artigo 12 da Lei nº 8.212/91 pelo artigo 57 da MP nº 2.158-35/01.

Esse entendimento não discrepa no âmbito da 2ª Seção, a exemplo do acórdão Carf nº 2301-004.152 (acompanhado de diversas decisões no mesmo sentido), que reconheceu a revogação tácita do artigo 28, §9º, "q" da Lei 8.212/91, pela Lei nº 10.243/2001.

Merece destaque, entretanto, a decisão proferida no acórdão CSRF nº 9202-005.144 [12], que tratava do artigo 77, II, da Lei nº 8.981/95, que estabelecia isenção do IR sobre rendimentos de operações de mútuo com controladas, coligadas ou interligadas, e a ocorrência de sua revogação tácita ou não pelo artigo 5º da Lei nº 9.779/99. Nesse caso, a decisão, minuciosa, demonstra a inocorrência da revogação tácita naquele caso concreto mas sem rejeitar a possibilidade em abstrato de sua ocorrência.

O tema em questão é relevante, visto que o único acórdão que localizamos que afastou a possibilidade em abstrato da revogação tácita (acórdão Carf nº 1401-004.069[13]) tratava exatamente desta questão, e o relator apresenta a posição de que a LC nº 95/98 exige "que  a  cláusula  de  revogação  das  leis  expressamente disponham sobre os dispositivos incompatíveis com a nova regulamentação da matéria", afirmando ser esse o entendimento do STJ e do Carf.

Parece haver uma confusão aqui: o entendimento do Carf e do STJ é, de fato, no sentido de não ter ocorrido a revogação tácita do artigo 77, II, da Lei nº 8.981/95, pelo artigo 5º da Lei nº 9.779/99, e não no sentido de rejeitar a revogação tácita enquanto instituto, o que são coisas distintas. A jurisprudência do Carf, como demonstrado acima, nunca adotou essa linha, ao passo que a Primeira Seção do STJ, no julgamento de embargos de divergência no REsp nº 1.050.430 [14], pacificou a inocorrência de revogação tácita nesse caso, mas pontou em seu voto que "Há revogação tácita quando, de forma implícita, há incompatibilidade entre o texto anterior e o posterior. Segundo a melhor doutrina, essa incompatibilidade deve ser absoluta. Não pode partir de meras presunções", rejeitando expressamente a exigência de revogação expressa.

No acórdão Carf nº 1301-002.974 [15], reconheceu-se a possibilidade expressa de revogação tácita, com base no artigo 2º, §1º, da LINDB, mas rejeitou-se sua ocorrência no caso concreto, em relação a uma pleiteada revogação do artigo 42 da Lei nº 9.430/96 pelo artigo 5º, §4º, da LC nº 105/2001.

Esse tema também merece destaque, pois foi julgado nos acórdãos Carf nº 1402-003.269 [16] e 1402-002.957[17], no qual o relator pontuou que, para a ocorrência da revogação tácita pleiteada pelo contribuinte, seria necessária a "coincidência na jurisdicização de fatos e hipóteses nas normas em que se afirma existir antinomia", adotando o critério do artigo 2º, §1º, da LINDB, mas apontando que tal antinomia não existia no caso concreto.

O que salta aos olhos é que os últimos acórdãos mencionados acima foram julgados de forma unânime, na mesma turma do julgamento indicado no início deste artigo, na qual o presidente afirmou que a LC nº 95/98 teria acabado com a revogação tácita, para rejeitar a aplicação do artigo 19-E ao caso concreto. Ora, parece ter havido uma alteração de entendimento, caso contrário teria acompanhado o voto proferido nos acórdãos 1402-003.269 e 1402-002.957 pelas conclusões, e não integralmente.

Em outra oportunidade, na nossa coluna, já nos manifestamos no sentido que tal dispositivo promoveu uma inequívoca revogação tácita do artigo 25, §9º, do Decreto nº 70.235/72 [18]. Todavia, o que se tem visto no âmbito das sessões virtuais realizadas pelo Carf não é apenas a tomada de decisão monocrática quanto a extensão da aplicação do artigo 19-E da Lei nº 10.522/02, mas uma contraposição à consagrada jurisprudência do órgão, que admite a possibilidade de revogação tácita no ordenamento jurídico nacional. No específico caso apontado no início deste texto, há uma alteração do entendimento do próprio julgador em relação aos fundamentos adotados de forma unânime pelo colegiado.

Acontece que, se de fato há uma mudança deste entendimento por parte do tribunal, é fundamental que se entenda o porquê.

Em outras palavras, mister se faz que tal guinada seja analiticamente justificada, haja vista o maior ônus argumentativo que se exige em situações de overruling [19], e não apenas imposta monocraticamente. Do mesmo modo, é fundamental que este novel posicionamento, se adotado sistematicamente pelo tribunal, aplique-se naquelas situações em que refutar a possibilidade de revogação tácita venha a trazer prejuízos aos interesses arrecadatórios [20], de modo a se promover uma unidade judicativa de índole material, e não um malsinado voluntarismo jurídico.

 


[2] "Artigo 58  (…) § 1º Encerrado o debate o presidente tomará, sucessivamente, os votos dos demais conselheiros, na ordem dos que tiveram vista dos autos e dos demais, a partir do 1º (primeiro) conselheiro sentado a sua esquerda, e votará por último, proclamando, em seguida, o resultado do julgamento, independentemente de ter tido vista dos autos".

[4] CONSELHO ADMINISTRATIVO DE RECURSOS FISCAIS. Manual do Presidente de Turma, Versão 2.0, atualizada em novembro de 2018. Brasília, 2016, p. 50.

[5] "Artigo 9º — A cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas".

[6] Relator Cons. Corintho Machado, julgado em 19/11/2009.

[7] Relatora Cons. Maria Aparecida Martins, julgado em 18/02/2020.

[8] Acréscimo não constante no original.

[9] Relator Cons. Rodrigo Pôssas, julgado em 14/6/2018.

[10] Relator Cons. Henrique Torres, julgado em 04/2/2015.

[11] Relatora Cons. Tatiana Migiyama, julgado em 21/2/2019.

[12] Relatora Cons. Maria Helena Cotta Cardozo, julgado em 24/01/2017.

[13] Relator Cons. Nelso Kichel, julgado em 11/12/2019.

[14] EREsp 1050430/DF, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, julgado em 13/03/2013.

[15] Relator Cons. Roberto Silva, julgado em 11/4/2018.

[16] Relator Cons. Caio Quintela, julgado em 24/7/2018.

[17] Relator Cons. Caio Quintela, julgado em 13/3/2018.

[19] Já me manifestei mais detidamente acerca do tema no seguinte artigo técnico: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In: Processo tributário analítico. CONRADO, Paulo César (org.). Vol. III. São Paulo: Noeses, 2016.

[20] Como nos casos exemplarmente tratados nesta coluna.

Autores

  • é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

  • é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.

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