Consultor tributário

A reforma tributária mais urgente é infraconstitucional

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

1 de julho de 2020, 8h13

Tenho insistido que o Brasil não pode mais adiar o início de uma reforma tributária, que poderá ser feita por leis ordinárias ou complementares, sem precisar de intervenções constitucionais, fundada sobre os pilares da simplificação, da previsibilidade, da justiça tributária e da segurança jurídica. Só isso já será suficiente para grandes avanços nas relações entre Fisco e contribuintes, na melhoria do ambiente de negócios e no aumento da arrecadação dos entes federativos. Não temos mais licença para o erro ou experimentos.

Antes da pandemia do novo Covid-19, o que animava o debate da reforma tributária era uma pretensa tentativa de redução da carga tributária, diminuição do Estado e unificação dos “tributos indiretos”. Estas reformas viriam por meio de mudanças constitucionais, daí todas as atenções estarem concentradas na marcha da Comissão mista de deputados e senadores que analisava as minutas de PEC (a de nº 45/2019, em tramitação na Câmara dos Deputados; e a de nº 110/2019, do Senado Federal).

Diante da calamidade pública, porém, afora a tristeza de assistir a morte de milhares de pessoas, vieram também os óbitos de empresas e de empregos e a inesperada perda de arrecadação de tributos por parte dos entes federativos. Por isso, agora, o propósito da reforma tributária deve ser a recuperação da economia, o custeio do aumento do gasto público e a melhoria da capacidade de atração de investimentos.

Spacca
Não obstante esta evidência de obviedade meridiana, alguns ainda insistem na reforma constitucional, e com especial entusiasmo pela aprovação do novo IBS. Não há mais tempo nem oportunidade, como bem destacou o Professor Fernando Facury Scaff em excelente artigo recentemente publicado.1 Ora, urge avançar numa reforma tributária infraconstitucional, do PIS/COFINS, IPI, ITR, IRPJ, IRPF, ITCMD ICMS, ISS, etc., com redução dos tributos sobre folha de salários, equalização da carga tributária, simplificação, segurança jurídica e estímulos aos investimentos.

Logicamente, defender que a reforma deva se limitar a mudanças infraconstitucionais, com alteração das leis existentes, não desmerece em nada o reconhecimento pelo notável trabalho desempenhado por aqueles que laboraram nas PEC nº 45 e 110. Devemos gratidão a todos os que mantiveram aceso o propósito reformador do nosso sistema tributário.

A realidade se impôs pela sua pior forma e descortinou o quão difícil e complexo seria a recuperação econômica com dois sistemas tributários funcionando em paralelo, o “novo” e o atual (sem reformas), com proibição à concessão de incentivos fiscais, com diferenciações de alíquotas entre incidências do ICMS (serviços de comunicação e mercadorias, por exemplo) ou a tributação dos serviços com alíquotas superiores a 30%.

No pós-pandemia, exigir-se-ão mudanças estruturantes da tributação nacional, para melhor segurança financeira do Estado e maior simplificação e previsibilidade para o contribuinte, para a recuperação econômica de médio e longo prazos.

No ICMS, por exemplo, urge que os incentivos fiscais recebam um regime rigoroso de controles temporal, funcional e finalístico, para evitar “guerra fiscal” ou perda de receitas pelos estados. Reclama-se a limitação e redução da substituição tributária a poucos setores. Ademais, a aplicação do regime de créditos financeiros, para tudo o que seja adquirido pela empresa, bem como a imediata devolução dos créditos, por meio de faturas eletrônicas e uma conta corrente bancária. Esta pode ser a grande tarefa da Comissão de Reforma Tributária, a elaboração de uma nova lei-quadro do ICMS que substitua as leis complementares nº 87/1996 e a de n. 24/1975. E todos os fundamentos utilizados para orientar o IBS podem ser empregados nesta tarefa.

Devido às eleições municipais que se avizinham, é sobremodo importante evoluir nos debates parlamentares. Lamentavelmente, o Poder Executivo não parece estar interessado em ser o protagonista da reforma. Quando muito, apresentará uma tímida reforma do PIS e da COFINS. Contudo, isso será trará uma inequívoca frustração geral. Será inconcebível uma reforma que não traga alterações substanciais na burocracia (obrigações acessórias), nas multas tributárias, no processo administrativo e nos demais impostos, como o IPI, o ITR, o IRPJ e o IRPF e o IOF.

Seja como for, pelo princípio da anterioridade, a maioria destas mudanças, ainda que aprovada neste ano, somente podem entrar em vigor a partir de 1º de janeiro, em virtude do princípio da anterioridade do art. 150, III da Constituição.

Estas mudanças podem convergir para aproximação dos princípios e técnicas de tributação dos impostos existentes, em tal harmonização que, em prazo a ser estipulado, possamos atingir uma possível unificação de todos os tributos indiretos em futuro próximo, o que se pode fazer em 5 ou 10 anos.

Reforma tributária é um pacto de gerações e exige capacidade de formação de consensos, negociações sob o amparo de uma mentalidade reformista de duração continuada, pelas sucessivas leis e regulamentações exigidas. Entretanto, parece impossível atingir-se alguma reforma tributária com as relações federativas levadas à tensão máxima ou mesmo a relação entre poderes prejudicada por devaneios megalomaníacos de concentração de poder ou de tentativas de implantar regimes autoritários. Sem respeito à democracia, nenhuma reforma poderá avançar.

Conclui-se, assim, que a melhor e mais eficiente reforma tributária, sem dúvidas, será aquela que se possa operar mediante leis complementares e ordinárias ou mesmo com adoção de atos infralegais, que não tolham direitos dos contribuintes e garanta a continuidade das competências tributárias dos estados e municípios, ao mesmo tempo que contribua para a superação da crise, estimule a volta dos investimentos e garanta melhores horizontes fiscais para as finanças dos entes federativos.


1 https://www.conjur.com.br/2020-jun-29/justica-tributaria-precisamos-reforma-tributaria-qual-delas-quando

Autores

  • Brave

    é advogado, professor titular de Direito Financeiro e livre-docente de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!