Opinião

É urgente separar alhos e bugalhos

Autor

  • Carlos Frederico Barbosa Bentivegna

    é mestre e doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (USP) presidente da Comissão de Direito Civil da OAB - Pinheiros e autor de "Liberdade de Expressão Honra Imagem e Privacidade" 2019 Ed. Manole.

1 de julho de 2020, 14h23

O dito português que alerta para a confusão entre alhos e bugalhos nunca foi tão útil e atual. Enquanto o alho, bulbo da planta Allium sativum, é muito usado e apreciado na gastronomia, o bugalho ou noz-de-galha é a protuberância que se forma em troncos de árvores comuns no continente europeu, como os carvalhos, muito útil para insetos mas não para nós. Assim, fica fácil perceber que tomá-los um pelo outro é confusão que em nada de bom resultaria, a exemplo de quando se "leva gato por lebre".

Pois bem, confundir a liberdade de expressão, insculpida entre os direitos e garantias individuais do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, com as ameaças, os crimes e os discursos de ódio que se têm visto e ouvido ultimamente por parte de alguns grupos políticos dá na mesma que confundir alhos com bugalhos. Trata-se de realidades diametralmente distintas, sendo uma delas conquista civilizatória que remonta ao longínquo ano de 1695, quando na Inglaterra refutou-se o Licensing Act que tencionava censurar previamente as produções do espírito; e a outra, o abuso ou a patologia no exercício da apriorística liberdade comunicativa, usando expressões do pensamento como armas para: I) o ataque aos direitos da personalidade alheios; II) a promoção e instigação do ódio contra algum grupo ou segmento da sociedade; III) o cometimento de crimes tipificados pela lei penal; ou IV) a tentativa de desmonte do sistema de democracia representativa com a tripartição de poderes que é também cláusula pétrea e fundante da nossa organização política.

Nos Estados Unidos da América, considerados a "Meca da liberdade de expressão", a proteção desta importantíssima liberdade pública deu-se a partir da Declaração de Direitos da Virgínia, de 1776 ("Artigo 12 a liberdade de imprensa é um dos grandes baluartes da liberdade e não pode ser restringida jamais, a não ser por governos despóticos"), seguida da Primeira Emenda à Constituição Norte-americana, de 1791, que proclamou que "o Congresso não legislará no sentido de estabelecer uma religião, ou proibindo o livre exercício dos cultos; ou cerceando a liberdade de palavra ou de imprensa, ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e dirigir ao Governo petições para a reparação de seus agravos". A doutrina idealizada por John Milton e, ao depois, revisitada e ampliada no século XIX por John Stuart Mill, tomou como ponto de partida o ideário liberal de John Locke, Montesquieu e outros pensadores que influenciaram o bill of rights. A ideia básica de Stuart Mill era a de que a falibilidade humana não autorizaria refutar de plano uma determinada ideia como sendo errada; daí a importância de não obstaculizar a circulação de toda e qualquer manifestação no "livre mercado das ideias", mesmo que se mostrassem inadequadas frente aos ideais e crenças majoritários. Mas mesmo nos EUA, em que pese a devoção quase religiosa a essa importante garantia civilizatória, a jurisprudência da Suprema Corte estabeleceu, desde há muito, os limites para o exercício da liberdade de expressão, dado não se tratar de um direito absoluto (como nenhum outro o é) e que, portanto, deve ser exercido dentro de balizas jurídicas que se prestam a salvaguardar os direitos alheios e até a própria ordem pública.

Quando em colisão com outros princípios constitucionais, como a proteção às honra, imagem e privacidade alheias, a liberdade de expressão (aí incluídas todas as liberdades comunicativas, como o direito à informação) deve submeter-se à ponderação, ou seja, ao exame conjunto dos princípios colidentes para se apurar qual deles, no caso concreto, deve ceder passo ao outro que seria preponderante naquela situação fática. No entanto, importantes juristas defendem entre eles, Virgílio Afonso da Silva e J.J. Gomes Canotilho que quando a liberdade de expressão é invocada para justificar discurso de ódio de seu titular, nem sequer seria necessária a ponderação entre os princípios, porquanto o discurso de ódio já é, de forma imanente, subtraído do alcance do conceito de liberdade de expressão. O próprio Supremo Tribunal Federal, julgando o Habeas Corpus do tristemente célebre "Caso Ellwanger", em que se julgava a licitude de textos filonazistas e racistas (HC 82.424-2/RS, julgado em 17/9/2003), declarou que o discurso de ódio não é de se considerar sequer abrangido pela liberdade de expressão, não tendo de se prestar à ponderação entre direitos, pois não existe direito a esta forma abusiva de comunicação. A jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, repita-se, muito mais tendente à proteção da liberdade de expressão do que, por exemplo, o Tribunal Constitucional Federal alemão, julgou casos emblemáticos em que negava a proteção dos discursos de ódio sob o pretexto de se camuflarem sob o manto da liberdade de expressão: Caso Beauharnais v. Illinois (343 U.S. 250 – 1952), Caso Brandenburg v. Ohio (395 U.S. 444, 446 – 1969), entre outros. De volta ao nosso STF, em 21 de junho de 2016 foi julgado pela 1ª Turma o recebimento de denúncia e de queixa-crime contra o então deputado Jair Messias Bolsonaro, que teria dito em relação a uma colega de legislatura deputada Federal Maria do Rosário que "não a estupraria porque ela não merece". O investigado em sua defesa alegou imunidade parlamentar de suas opiniões, palavras e votos, o que é uma forma qualificada da liberdade de expressão, mas o argumento não prosperou e a denúncia foi corretamente recebida pois uma incitação ou glorificação do cometimento de crime não pode se confundir com a liberdade de manifestação do pensamento ou de criações do intelecto. Mais recentemente se colheu notícia, através de julgamento no âmbito do chamado Inquérito das Fake News do STF, acerca de manifestações que se pretendem protegidas pela liberdade de expressão, mas que vazadas nos termos seguintes: "que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do Supremo" ou "quanto custa atirar a queima-roupa nas costas de cada ministro filho da puta do STF que queira acabar com a prisão em segunda instância"? Parece exangue de qualquer dúvida o fato de que isso não é o exercício da liberdade de expressão protegida pela Constituição de 1988.

Se não for desfeita a confusão entre liberdade de expressão e seu abuso consubstanciado no discurso de ódio, no comprometimento da cláusula democrática, nas ameaças e mesmo no cometimento de crime, teremos entre nós a odiosa consequência, à guisa de "efeitos colaterais", de um recrudescimento das interpretações dos fatos ao sabor das crenças pessoais dos julgadores e da transformação da liberdade de expressão num conceito fluido, vago e impreciso. Isso resultará em decisões teratológicas como as que reconheçam um crime como exercício da liberdade de expressão ou as que deixem de proteger esta última em casos absolutamente típicos de sua necessária proteção. Essa triste realidade já se vê, por exemplo, quando: I) o ministro da Justiça pretende enquadrar na Lei de Segurança Nacional a atividade artística de um cartunista que retrata criticamente o presidente da República logo após este último incitar a invasão de UTIs por falanges de tontons macoutes; ou II) um juiz de Espumoso (RS), que diante de reportagem televisiva acerca de concessões fraudulentas de abono emergencial, decide proibir a divulgação da notícia a pedido de pessoa envolvida na apuração, interditando o jornalismo investigativo em detrimento do interesse público pela informação socialmente relevante.

Ou separamos alhos e bugalhos de maneira urgente, ou entra em colapso o sistema democrático de garantia e limitação das liberdades comunicativas.

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