Opinião

Tribunal do júri: uso da videoconferência em alguns atos é justitifável

Autores

  • José Carlos Abissamra Filho

    é advogado criminal doutor e mestre pela PUC-SP ex-diretor do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e autor de Política Pública Criminal - Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais (Juruá Editora).

  • Guilherme Madi Rezende

    é advogado criminalista e autor do livro Índio: tratamento jurídico-penal.

1 de julho de 2020, 9h13

Está em discussão no CNJ a proposta do conselheiro Mario Guerreiro autorizando o uso de videoconferência em sessões de julgamento no tribunal do júri.

O tema tem suscitado críticas de advogados, professores e entidades preocupadas com a violação dos direitos das pessoas. E não é para menos, com efeito, ao contrário do que se acreditava no início da quarentena, atos virtuais não substituirão atos presenciais e, no caso do tribunal do júri, além de a sessão ser pública e, no geral, longa, o resultado final do julgamento pode levar ao cumprimento de penas altas, o que recomenda cautela ao se adotar procedimentos novos ainda desconhecidos — sem se olvidar de que processo penal somente se altera mediante lei federal e não por resolução administrativa, ainda que bem intencionada.

No entanto, superado tudo isso, é forçoso reconhecer que vivemos tempos de pandemia e que réus presos não podem esperar indefinidamente por um julgamento justo.

O presente artigo pretende refletir sobre um possível meio do caminho, excepcionalíssimo, somente para tempos de pandemia, a respeito desse dilema: solenidade do tribunal do júri versus réus presos aguardando julgamento. Pois bem.

O país hoje tem um enorme percentual de presos provisórios. As cadeias estão lotadas e há alto contágio da Covid-19 entre os presos — inclusive entre aqueles identificados pelo próprio CNJ como grupo de risco; infelizmente, não se tem encontrado a sensibilidade desejada.

Contam-se a conta-gotas as pessoas que, no enorme contingente carcerário, estão sendo soltas, a despeito do longo tempo de duração de seus processos.

Pessoas presas, proibidas de receber visitas, amedrontadas e com a saúde e a vida expostas aos perigos decorrentes da contaminação pela Covid-19 e de outras doenças. Pessoas presas sem nenhuma perspectiva de julgamento. A situação é alarmante.

Nesse cenário, levando-se em conta, por um lado, que as sessões de julgamento do tribunal do júri nos moldes previstos em lei envolvem uma grande quantidade de pessoas e que, neste momento excepcional decorrente da pandemia da Covid-19, isso fica inviabilizado; considerando, por outro, que os acusados de crimes contra a vida — marcadamente aqueles que respondem presos ao processo — não podem continuar sem perspectiva de julgamento, há de se compreender a importância da iniciativa do CNJ de autorizar, durante este período, o auxilio de videoconferência para a prática de alguns atos que não atinjam o coração do julgamento.

O tribunal do júri tem assento constitucional no capítulo das garantias individuais. O artigo 5º, inciso XXXVIII, reconhece a instituição do júri, assegurando a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Toda e qualquer medida que venha a impactar o procedimento do júri, mesmo diante da necessidade de realização de sessões de julgamentos durante este período de pandemia, deve, necessariamente, respeitar os quatro pilares acima referidos.

Além disso, essas medidas excepcionais se afastam do ideal, mas podem ter lugar exclusivamente em casos de réus presos (diante da óbvia urgência do julgamento) e durante o período em que durar o estado de pandemia — se o preso assim concordar, afinal, é ele quem será julgado.

Nesse contexto, o auxílio de videoconferência no tribunal do júri, nos termos da proposta do conselheiro Mário Guerreiro, não chega a ferir nenhum desses pilares.

A proposta prevê a realização da sessão nas salas de julgamento do tribunal do júri, com a presença física dos sete jurados sorteados, sendo que apenas o sorteio destes sete entre os 25 inicialmente selecionados é que será por videoconferência — é preciso aferir a viabilidade disso na prática ainda, mas a intenção de se enfrentar esse dilema é bem-vinda, insistindo-se, somente para o momento mais agudo da pandemia.

A suspensão da sessão de julgamento para que os sete jurados escolhidos possam ir até a sala de julgamento, sem qualquer fiscalização ou controle, não fere a incomunicabilidade. A razão de ser da incomunicabilidade é impedir que os jurados conversem entre si —ou com outras pessoas — sobre o processo que está sob seu julgamento. Ora, logo após o sorteio, os jurados ainda não têm qualquer informação nova sobre o processo. Vale dizer, as informações que os sete jurados sorteados terão sobre o processo são as mesmas que, na forma convencional, os 25 selecionados também costumam ter quando recebem a convocação. Sem informações especiais obtidas em razão da função exercida, não se há falar em quebra da incomunicabilidade. Até esse ponto, sequer terá havido, ainda, o juramento.

Por outro lado, a partir deste momento — composição física do conselho de sentença na sala de julgamento — está garantida também a possibilidade de presença física do juiz, representante do ministério público e do defensor. A presença física do defensor durante a instrução e os debates é fundamental para que se possa falar em plenitude de defesa.

Evidente que a presença física do réu durante toda a sessão de julgamento é importante para o exercício da sua autodefesa, sem a qual não pode haver plenitude de defesa. E, nesse ponto particular, a sua condução para a sala de julgamento poderia ser feita sem grandes transtornos, com a adoção de todos os cuidados exigíveis para evitar contaminações. De todo modo, caso seja impossível a presença física do acusado, a sua participação por meio virtual (exclusivamente durante este período) pode não caracterizar violação ao seu direito de defesa, desde que garantidos o seu contato reservado e constante com o seu defensor e o seu direito de assistir e de interferir durante todo o julgamento, inclusive durante a produção da prova — lembrando que, a nosso ver, o réu tem que concordar expressamente em não se fazer presente fisicamente no seu julgamento.

Do mesmo modo, seria desejável que as testemunhas pudessem comparecer fisicamente à sala de julgamentos. A impossibilidade, todavia, embora possa afetar a fidelidade da produção da prova — algo que preocupa e que deve ser verificado com muito cuidado —, não chega a ferir de morte a plenitude de defesa.

A previsão de acompanhamento de todo o julgamento pelo público em geral, também por meio de videoconferência, confere a publicidade possível. Já o sistema de votação presencial dos jurados, em sala secreta, garante o sigilo das votações.

Não se trata de júri virtual, mas, sim, com auxílio de videoconferência para a realização de alguns atos; garantindo-se, por outro lado, a possibilidade de presença física das partes e dos jurados de forma segura na realização dos atos essenciais: instrução, debates e julgamento.

Nesse cenário, fazendo um balanço entre os valores que estão em jogo, justifica-se excepcionalmente a flexibilização da exigência de realização de todos os atos presenciais, desde que exclusivamente em casos de réus presos e durante o tempo em que durar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia do novo coronavírus.

A ideia principal, o que motiva a presente reflexão é: os acusados não podem ficar, indefinidamente, presos aguardando o julgamento. Precisamos pensar em soluções.

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