Opinião

Efeitos da lei "anticrime" nas medidas cautelares

Autor

  • Tiago Bunning

    é mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) especialista em Direito Penal Econômico (IBCCrim e Coimbra) conselheiro seccional da OAB-MS (2022-2024) advogado e professor.

31 de janeiro de 2020, 6h48

Desde a reforma promovida nas medidas cautelares pela Lei 12.403/2011, o artigo 282 passou a ser o dispositivo nuclear e fundante aplicado a todas as medidas cautelares pessoais, o que foi aprimorado com a Lei 13.964/2019 (lei "anticrime").

Desde logo afirmamos que por se tratar de dispositivo que traz fundamentos alicerces para aplicação das medidas cautelares em geral, sua aplicação não se resume a prisão preventiva e medidas cautelares diversas da prisão previstas no Código de Processo Penal, mas se estende a toda forma de privação da liberdade em caráter cautelar, como é o caso da prisão temporária (Lei 7.960/89)[1] e outras.

Isso porque, o CPP é responsável por toda estruturação de base aplicada aos demais procedimentos, inclusive especiais, por exemplo na Lei Maria da Penha não estão previstos os recursos, aplicando-se as previsões do artigo 574 e seguintes do CPP. Do mesmo modo ocorre com nas cautelares pessoais, que não possuem uma orientação principiológica nas leis especiais, devendo se observar o que se encontra previsto no artigo 282 e seguintes do CPP.[2]

A primeira modificação consta no parágrafo 2º do artigo 282, pois finalmente no Brasil o Juiz precisará ser provocado para decretação de qualquer medida cautelar pessoal, não podendo mais decretá-las de ofício, o que está intimamente relacionado ao sistema acusatório adotado pelo artigo 3º-A, com a finalidade de garantir a estética de afastamento e imparcialidade do juiz[3]

Ainda que esta previsão seja uma decorrência lógica do sistema acusatório previsto no artigo 3º-A, cuja aplicação foi suspensa liminarmente pelo ministro Luiz Fux em 22/1/2020 no julgamento da ADIs 6.299 e 6.305, ele não foi afetado pela decisão do STF, de modo que o magistrado permanece impedido de decretar medidas cautelares de ofício em face da previsão expressa do artigo 282, parágrafo 2º, bem como por que todas as novas disposições relativas as medidas cautelares buscam uma aproximação do modelo acusatório de processo.

Essa pretensa adoção de um sistema acusatório afastou qualquer interferência de ofício do juiz no ambiente das medidas cautelares, sendo assim mesmo em caso de descumprimento das medidas cautelares diversas da prisão (artigo 319 do CPP) não será permitida a decretação da prisão preventiva ou mesmo a cumulação de outras cautelares diversas pelo próprio magistrado sem requerimento das partes, prova disso foi a exclusão da palavra “de ofício” do parágrafo 4º do artigo 282.

Consequentemente, havendo a decretação de qualquer medida cautelar pessoal de ofício pelo juiz restará configurada a ilegalidade da medida sendo necessário seu imediato relaxamento, nos termos do artigo 5º, LXV da Constituição Federal.

Em contrapartida, o juiz poderá de ofício ou a requerimento das partes revogar medida cautelar ou substituí-las, pois foi acrescida a palavra “de ofício” ao parágrafo 5º do artigo 282, ratificando assim o caráter de provisoriedade das medidas cautelares, que sempre foi alertado como princípio fundamental pela doutrina[4], tornando-se realidade com a Lei 13.964/2019 ao determinar o prazo de 90 dias para o reexame da necessidade das cautelares (parágrafo único do artigo 316).

 Por sua vez o parágrafo 3º do artigo 282 potencializou o contraditório nas medidas cautelares que já possuía previsão neste mesmo dispositivo, mas que não passava de letra morta de lei em nosso ordenamento. Desde a Lei 12.403/2011 a intimação da parte contrária era regra geral na decretação das medidas cautelares exceto nos “casos de urgência ou perigo de ineficácia da medida”.

A doutrina já advertia há muito tempo a necessidade do “estabelecimento do contraditório” com a criação de um procedimento para qualquer medida cautelar de privação da liberdade.[5] Entretanto, nas raras oportunidades em que o STJ se manifestou sobre o tema, mesmo quando reconheceu a necessidade de contraditório, o fez invertendo a lógica, ou seja, como se a regra fosse a não intimação da parte contrária e apenas em casos excepcionais seria promovido a intimação e abertura do contraditório.[6]

Contudo, acreditamos que a nova redação trazida pela Lei 13.964/2019 deseja não mais permitir essa inversão (i)lógica, potencializando o contraditório no juízo de decretação das medidas cautelares na medida em que acrescenta ao parágrafo 3º o prazo para manifestação da parte contrária de 5 dias — ou seja, criou-se um procedimento — e ressalta que “os casos de urgência ou de perigo” que excepcionalmente permitirão que não seja intimada a parte contrária “deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional.”

Aliás, a leitura deste dispositivo precisa ser feita acompanhada do parágrafo 2º do artigo 315 e artigo 564, inciso V que permitem reconhecer a nulidade da decisão que decreta a prisão preventiva sem contraditório e que não fundamente concretamente o porquê de não ter intimado a parte adversa, tornando ilegal a prisão e novamente necessário a impetração seu imediato relaxamento (artigo 5º, LXV da CF combinado com artigo 648, VI do CPP).

O parágrafo 6º do artigo 282 completa a adequação das medidas cautelares ao sistema acusatório ao potencializar outro axioma inerente as medidas cautelares e, sobretudo, as prisões preventiva e temporária, falamos do princípio da excepcionalidade (ultima ratio) que já existia neste dispositivo desde a Lei 12.403/2011, mas que na prática sofria uma burla nas decisões judicias a partir da costumeira alegação de que “as medidas cautelares não se mostravam suficientes ao caso” de forma genérica e abstrata sem qualquer motivação fundamentada no caso em concreto.

Mesmo não sendo a posição majoritária, em alguns casos isolados o STF já havia manifestado a necessidade indispensável de que a decisão apresente argumentos concretos relacionados ao fato para justificar a medida excepcional da prisão cautelar em detrimento de outras medidas cautelares mais amenas e diversas da prisão.[7]

Atualmente, com a nova redação dada pela Lei 13.964/2019 não existe mais espaço para burlas, pois segundo o parágrafo 6º do artigo 282 “o não cabimento da substituição por outra medida cautelar deverá ser justificado de forma fundamentada nos elementos presentes do caso concreto, de forma individualizada.”

Novamente defendemos a leitura deste dispositivo acompanhado do parágrafo 2º do artigo 315 e artigo 564, inciso V, sob pena de ilegalidade da prisão e mais um vez tornando necessário o seu imediato relaxamento (artigo 5º, LXV da CF combinado com artigo 648, VI do CPP).

Por fim, importante reparar que mais uma vez não restou previsto no artigo 282 ou em qualquer outro dispositivo relativo as medidas cautelares uma abertura de possibilidade para um poder geral de cautela em matéria penal, aliás isso não se encontra presente em nenhum dispositivo da Lei 13.964/2019.

Lembrando da advertência de Alexandre Morais da Rosa de que “O poder geral de cautelar é incompatível com o processo penal democrático, porque medidas cautelares somente as expressamente previstas em lei. Se a liberdade é o pressuposto, restringe-se nos limites legais.”[8], acrescida das lições de Aury Lopes Jr. ao explicar que “No processo penal não existem medidas cautelares inominada e tampouco possui o juiz criminal um poder geral de cautela. No processo penal forma é garantia. Logo, não há espaços para ‘poderes gerais’, pois todo poder é estritamente vinculado a limites e à forma legal.”, ou seja, no processo penal não existe poder geral de cautela.


[1] “sublinhamos a importância do artigo 282, que se aplica a qualquer medida cautelar, inclusive para a prisão temporária, embora prevista em lei apartada.” (LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 676).

[2] Mesmo aqueles que discordam dessa posição, acabam reconhecendo, ainda que por via tangente e não a partir do artigo 282, a aplicação dos axiomas trazidos no CPP as medidas cautelares previstas em outras leis. Como é o caso de Norberto Avena ao admitir a aplicação do princípio da excepcionalidade à prisão temporária: “Portanto, é lógico que, sendo possível evitar a decretação da prisão temporária e, no seu lugar, impor uma das medidas restritivas do artigo 319, se assim deve proceder o Juiz. Não, porém, por força da regra do artigo 282, § 6º, do CPP, que reputamos não aplicável à prisão temporária, pelos motivos já examinados, e sim por que esta forma de custódia, efetivamente, apenas deve ser decretada nas situações de imprescindibilidade para as investigações, ou seja, quando se afigurar viável outra solução que não implique privação da liberdade.” (AVENA, Norberto, Processo Penal. Esquematizado. 7ª Ed. São Paulo: Método, 2015, p. 938.)

[3] LOPES, Aury Jr. Prisões Cautelares. 5a Ed. São Paulo: Saraiva, p. 2017, p. 93.

[4] BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 3a Ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 940. LOPES, Aury Jr. Prisões Cautelares. 5a Ed. São Paulo: Saraiva, p. 2017, p. 37. CRUZ, Rogério Schietti. Prisão Cautelar. Dramas, princípios e alternativas. 4a Ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 112.

[5] MINAGÉ, Thiago M. Prisões e Medidas Cautelares à Luz da Constituição. O contraditório como significante estruturante do processo penal. 4a Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 337.

[6] PRISÃO PREVENTIVA DECRETADA EM AUDIÊNCIA. PEDIDO DE PRONUNCIAMENTO DA DEFESA INDEFERIDO. AUSÊNCIA DE URGÊNCIA E DE PREJUÍZO AO PROCESSO, A DESAUTORIZAREM A PARTICIPAÇÃO DEFENSIVA. EXIGÊNCIA DO CONTRADITÓRIO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. artigo 283, § 3o DO CPP. RECURSO PROVIDO.  1. A reforma do Código de Processo Penal ocorrida em 2011, por meio da Lei no 12. 403/11, deu nova redação ao artigo 282, § 3o, do Código, o qual passou a prever que, "ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, o juiz, ao receber o pedido de medida cautelar, determinará a intimação da parte contrária, acompanhada de cópia do requerimento e das peças necessárias, permanecendo os autos em juízo."  2. A providência se mostra salutar em situações excepcionais (…) (STJ, RHC 75.716/MG, SEXTA TURMA, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 10/05/2017)

[7] “(…) 2. Ademais, essa medida cautelar somente se legitima em situações em que ela for o único meio eficiente para preservar os valores jurídicos que a lei penal visa a proteger, segundo o artigo 312 do Código de Processo Penal. Ou seja, é indispensável ficar demonstrado que nenhuma das medidas alternativas indicadas no artigo 319 da lei processual penal tem aptidão para, no caso concreto, atender eficazmente aos mesmos fins, nos termos do artigo 282, § 6°, do Código de Processo Penal.” (STF, HC 127.186/PR, SEGUNDA TURMA, Rel. Min. Toeri Zavascki, j. 28/04/2015).

[8] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 5a Ed. Floranópolis: EMais, 2019, p. 421.

Autores

  • Brave

    é mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS (Bolsista Capes). Especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Advogado e Professor.

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