Opinião

A proposta de uniformização nacional de entendimentos pelo TCU

Autor

  • Odilon Cavallari

    é advogado assessor de ministro do TCU auditor federal de Controle Externo mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e doutor em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (Ceub).

29 de janeiro de 2020, 6h57

A PEC 188/2019, denominada PEC do Pacto Federativo, prevê acrescentar ao artigo 71 da Constituição Federal o inciso XII e os parágrafos 5º e 6º, de modo a outorgar ao Tribunal de Contas da União a competência para consolidar a interpretação das normas gerais de finanças públicas de tratam os artigos 163, 165, § 9°, e 169, da Constituição Federal, por meio de Orientações Normativas com efeito vinculante em relação aos demais Tribunais de Contas, cabendo reclamação ao TCU da decisão do Tribunal de Contas que contrariar referidas orientações normativas.

Conforme consta da justificação da referida PEC, busca-se com essa proposta “a uniformização da interpretação de conceitos constantes na legislação orçamentário-financeira, sobretudo a Lei de Responsabilidade Fiscal”, a fim de evitar as “divergências entre os Tribunais de Contas em relação às práticas contábeis”.

A preocupação com a uniformização da interpretação de normas gerais pelos tribunais de contas já havia motivado a apresentação da PEC 329/2013, com proposta semelhante à que ora se analisa, e da PEC 22/2017, que prevê a criação do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas e, em seu âmbito, a criação de uma Câmara de Uniformização de Jurisprudência, a ser composta pelos onze membros do referido Conselho, dos quais dois são ministros do TCU.

A fim de melhor identificar o objeto da PEC 188/2019, é importante destacar que a proposta não sustenta outorga ao TCU de competência revisional das decisões dos demais tribunais de contas sobre:

a) matéria de fato, ainda que se trate de fato regulado por norma geral de finanças públicas, pois a apreciação do fato e das suas consequências, inclusive no tocante a eventual reprovação de contas ou responsabilização do administrador público, continuará sendo da competência plena dos demais tribunais de contas;

b) interpretação de normas estaduais e municipais;

c) norma geral que não seja uma das previstas nos artigos 163, 165, § 9°, e 169 da Constituição Federal, relativas às finanças públicas.

Por outro lado, o que a PEC 188/2019 prevê é a outorga ao TCU de competência para interpretar, com efeito vinculante, as leis complementares sobre finanças públicas de que tratam os artigos 163, 165, § 9°, e 169, por meio de Orientações Normativas. Eis aí o seu objeto.

É de se ver que a ideia da uniformização da jurisprudência sobre normas gerais não surgiu sem razão. Ao contrário, foram as diferentes interpretações dadas à LRF pelos tribunais de contas, mas que não são adotadas pelo TCU nem pelo Tesouro Nacional, o principal motor a alimentar essa ideia, a exemplo das seguintes:

1. inclusão das despesas com inativos e pensionistas no cômputo das despesas com educação e saúde, para fins da verificação da aplicação do mínimo exigido pela legislação para essas áreas;

2. exclusão dos inativos e pensionistas do cômputo das despesas com pessoal, para fins de verificação do respeito ao limite máximo fixado pela LRF;

3. exclusão do imposto de renda retido na fonte (IRRF) da receita corrente líquida e da despesa total com pessoal, o que implica um aumento da margem de expansão dessa despesa da ordem de 40% em relação ao critério adotado pela União.

A dramaticidade dessas práticas atingiu um de seus pontos mais altos com a notícia de que o Governo de Minas Gerais fará dois orçamentos, a fim de que aquele Estado possa aderir ao Regime de Recuperação Fiscal e, com isso, receber socorro financeiro da União: um para atender à interpretação do TCE-MG, que defende a exclusão das despesas com aposentados e pensionistas do cálculo de despesas com pessoal, e outro para atender à interpretação da Secretaria do Tesouro Nacional, que não admite essa exclusão.[1]

Segundo a PEC 188/2019 e a PEC 329/2013, o TCU deve ser o órgão competente para uniformizar, nacionalmente, a jurisprudência sobre finanças públicas, o que tem ensejado uma discussão acerca da sua suposta inconstitucionalidade, por ofensa ao artigo 60, §4º, inciso I, da Constituição Federal, no sentido de que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, porquanto haveria uma inaceitável redução da autonomia dos Tribunais de Contas Estaduais.

É curioso observar que parece haver uma contradição nesse argumento, pois, conforme mencionado acima, a PEC 22/2017 prevê que o órgão competente para a uniformização da jurisprudência deveria ser uma Câmara de Uniformização de Jurisprudência, que funcionaria no âmbito do Conselho Nacional dos Tribunais de Contas (CNTC), cuja criação também está prevista na citada PEC 22/2017.

Ou seja, caso aprovada a PEC 22/2017, haveria, de igual modo, uma redução da autonomia dos Tribunais de Contas Estaduais. Portanto, segundo essa forma de ver a questão, as três PECs acima mencionadas reduzem a autonomia dos TCEs, pois o CNTC, se for criado, será um órgão da União, assim como é o TCU, cujas decisões terão de ser respeitadas pelos Tribunais de Contas.

Em outras palavras, ou se reconhece a constitucionalidade dessa redução da autonomia dos TCEs, no tocante à interpretação de normas gerais, em favor de um órgão da União, seja o TCU ou qualquer outro, ou, por coerência, deve-se considerar inconstitucionais as três PECs, o que inclui a PEC 22/2017.

Por outro lado, o modelo vigente compromete a máxima efetividade das normas gerais de finanças públicas, porquanto os entes subnacionais interpretam e aplicam essas normas de modo absolutamente dissociado da interpretação dada pela União. Trata-se de modelo que frustra a autonomia que a União deveria ter para fazer valer as normas gerais que edita. Pelo atual modelo é dar com uma mão, mas tirar com a outra.

O que a cláusula pétrea do §4º do artigo 60 da Constituição Federal veda é a proposta de emenda à Constituição tendente a abolir a forma federativa de Estado. Isso significa que não é proibido aumentar ou reduzir a centralização de competências na União, desde que esse aumento ou redução não comprometa a forma federativa de Estado. Nesse sentido tem decidido o STF, segundo o qual as cláusulas pétreas não são absolutamente intangíveis, mas apenas o seu núcleo essencial.[2]

O que ocorre, no atual modelo, é uma disfunção responsável pela baixa efetividade das normas gerais, nos termos idealizados no Brasil e no mundo, pois os Estados têm a competência plena para interpretar suas normas suplementares, mas, além disso, ainda interpretam, cada qual à sua maneira, as normas gerais editadas pela União, em prejuízo do equilíbrio da Federação.

É, pois, exatamente a relevância do equilíbrio da Federação para a higidez das contas públicas que explica a tendência do federalismo cooperativo contemporâneo noticiada por Raul Machado Horta no sentido de um maior controle, pela União, da autonomia financeira dos Estados, a exemplo do que, segundo o autor, se verifica na Constituição da Alemanha, a fim de evitar uma excessiva pressão fiscal sobre os contribuintes e garantir uniformidade das condições de vida no território federal.[3]

A Constituição brasileira segue os mesmos passos, ao dispor no artigo 52 sobre a competência do Senado Federal para, em relação não apenas à União, mas também aos Estados, Distrito Federal e Municípios, autorizar operações externas de natureza financeira (inciso V), fixar, por proposta do Presidente da República, os limites globais para o montante da dívida consolidada (inciso VI), dispor sobre os limites globais e condições para as operações de crédito externo e interno (inciso VII), e estabelecer limites globais e condições para o montante da dívida mobiliária (inciso IX). Horta conclui que o “propósito de evitar endividamento descontrolado das Unidades Federadas, com reflexos no crédito da União, explica limitações à autonomia financeira dos Estados-Membros”.[4]

No mesmo sentido é também o artigo 34 da Constituição Federal, ao prever a competência da União para promover a intervenção federal nos Estados, sempre na defesa da própria Federação brasileira, a exemplo das intervenções federais ocorridas no ano de 2018, nos Estados do Rio de Janeiro e Roraima, em face dos seus desequilíbrios fiscais.

Vê-se, assim, que a Constituição Federal outorgou à União, na qualidade de ente central da Federação, diversas competências que visam manter a própria Federação e promover o seu desenvolvimento equilibrado. Nessa tarefa as normas gerais assumem relevante função como um dos principais instrumentos da União para a consecução desses objetivos.

E é esse o motivo pelo qual não conferirá mais efetividade às normas gerais a proposta de criação de uma Câmara de Uniformização de Jurisprudência, na qual a União teria participação minoritária, pois, uma vez mais, haveria a frustração da competência da União que continuaria a ter competência para editar normas gerais, mas sem ter competência para garantir a aplicação dessas normas gerais, de modo uniforme em todo o território nacional, segundo a perspectiva da União.

Mais grave, ainda, seria o fato de a União ter de se submeter aos entendimentos firmados pela Câmara de Uniformização de Jurisprudência que decidiria segundo a perspectiva majoritária dos demais membros da Federação e não da União, o que poderia comprometer, direta ou indiretamente, não apenas a condução da política fiscal, mas também as políticas monetária e cambial, de competência exclusiva da União.

Além disso, esse modelo poderia agravar o desequilíbrio da Federação, pois referida Câmara não teria a participação de todos os membros da Federação, mas apenas de alguns que poderiam formar maioria pela fixação de entendimentos que lhes parecessem mais adequados, segundo as suas realidades locais, mas que poderiam ser altamente desfavoráveis a outros membros da Federação que não conseguissem assento naquele órgão Colegiado.

Ou, pior ainda, na busca do consenso a Câmara de Uniformização poderia fixar interpretação que contemplasse todas as múltiplas e flexíveis interpretações da LRF, o que criaria o risco de Estados que hoje têm problemas menores com os limites da LRF passarem a afrouxar na disciplina fiscal.

Importante observar que é inadequado comparar a Câmara de Uniformização de Jurisprudência com o Superior Tribunal de Justiça. A diferença aqui é grande. Os ministros do STJ ocupantes de vagas que, nos termos do artigo 104, incisos I e II, da Constituição Federal, devem ser preenchidas por desembargadores de Tribunais de Justiça ou por membros de Ministérios Públicos Estaduais, não atuam como representantes dos Estados de origem, mas sim como agentes públicos da União, na perspectiva da União. Trata-se, desse modo, de situação muito diferente da proposta relativa à Câmara de Uniformização, na qual seus membros são representantes de seus Estados de origem e atuariam, simultaneamente, tanto no Tribunal de Contas Estadual quanto na citada Câmara.

Por outro lado, caso a Câmara de Uniformização de Jurisprudência fosse composta, majoritariamente, por representantes da União, ainda assim não se justificaria, pois não haveria razão plausível para criar mais um órgão público e, portanto, impor ao Erário mais despesa pública, se esse novo órgão teria uma maioria da União, que decidiria na perspectiva da União. Para tanto já existe o TCU. O argumento de que assim se garantiria a participação dos Estados na deliberação também não justifica o aumento de despesas, pois essa participação pode se dar no próprio processo de uniformização de jurisprudência dentro do TCU, por meio do diálogo processual, com contraditório e audiências públicas.

Como ocorre com qualquer proposta legislativa, é certo que as atuais propostas de uniformização da jurisprudência pelo TCU comportam aprimoramentos, mas eventuais oportunidades de melhoria não reduzem a importância dessas propostas para a higidez das contas públicas e para a segurança jurídica.

No que diz respeito à posição, aparentemente minoritária, de quem defende que tudo deve ficar como está, a fim de se preservar a autonomia dos Tribunais de Contas Estaduais, cabem duas indagações, por ora:

Primeira: qual a contribuição que essa autonomia tem dado para o fortalecimento da Federação, a higidez das contas públicas, a efetividade das normas gerais, o desenvolvimento equilibrado da Federação e a segurança jurídica?

Segunda: o que ganharia a Federação com o atual modelo que, para se obter a uniformização de entendimentos sobre a LRF, válida e vinculante em todo o território nacional, tem de se aguardar a judicialização da matéria e sua tardia chegada ao STJ, que, por sua vez, aí sim, pode proferir decisão com força vinculante?

Pelo o que se afirmou até aqui, a resposta a essas duas indagações indica a necessidade de mudanças, dada a fragilidade do atual modelo para a Federação. Aludida assertiva não sugere qualquer demérito para os Tribunais de Contas Estaduais. Trata-se, a rigor, apenas de se buscar solução que fortaleça a Federação e não apenas os seus membros isoladamente.

A conclusão, portanto, é no sentido de que a uniformização da jurisprudência nacional pelo TCU não ofende o Pacto Federativo, mas sim o fortalece, pois permitirá que as normas gerais de finanças públicas sejam mais efetivas, ao serem aplicadas de modo uniforme em todo o território nacional e segundo a visão de quem as editou, o que contribuirá para o desenvolvimento equilibrado da Federação, em rigorosa sintonia com os incisos II e III do artigo 3º da Constituição Federal que preveem como objetivos fundamentais da Federação brasileira o desenvolvimento nacional e a redução das desigualdades sociais e regionais.


[2] STF. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.024-2. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Julgada em 03.05.2007. DJ de 22.06.2007. Ementa: (…) 1. A "forma federativa de Estado" – elevado a princípio intangível por todas as Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição; de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o artigo 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege.

[3] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 486-487.

[4] HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 4. ed. rev. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 487.

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