Paradoxo da Corte

Definição da prescrição intercorrente no Superior Tribunal de Justiça

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

28 de janeiro de 2020, 8h00

A questão relativa aos pressupostos exigidos para o acolhimento da prescrição intercorrente sempre foi fonte de incertezas, implicativa de insegurança no meio jurídico, tanto para os advogados quanto para os aplicadores das normas legais que regem a matéria. Lembre-se que o fenômeno da prescrição intercorrente se verifica quando um credor não mais se manifesta geralmente após a citação do devedor ou o arquivamento dos autos da execução, deixando transcorrer, com manifesta inércia, um lapso temporal maior do que o da prescrição do direito que está postulando.

Em muitas decisões de um passado não tão remoto, prevalecia o critério, criticável sob todos os aspectos, de que o início do prazo prescricional somente se dava após o credor-exequente ser pessoalmente intimado. Com esse entendimento, à toda evidência, dificilmente era possível se constatar a ocorrência da prescrição intercorrente.

Com a entrada em vigor do Código de Processo Civil, em março de 2016, esse tema passou a merecer maior atenção, uma vez que o artigo 10 do novel diploma processual dispõe que: “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”, incluído aí, por certo, o reconhecimento da prescrição intercorrente.

Diante desse texto legal, é de ter-se presente duas necessárias premissas para que se evite confusão, quais sejam: a) o prazo prescricional flui em decorrência da inércia do credor; e b) a imprescindibilidade da intimação do credor para que ele se manifeste, ainda que já tenha fluído o lapso prescricional.

Esta segunda premissa, visando a afastar decisão lastreada em “fundamento-surpresa”, decorre da exigência do contraditório.

Assim, dada a ausência de uma definição segura sobre tal questão, e, portanto, reconhecendo-se tratar de “relevante questão de direito”, na dicção do caput do artigo 927 do Código de Processo Civil, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, no Incidente de Assunção de Competência n. 1, instaurado no julgamento do Recurso Especial n. 1.604.412/SC, da relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, teve oportunidade de assentar, por maioria de votos, as seguintes diretrizes:

“1. As teses a serem firmadas, para efeito do artigo 947 do Código de Processo Civil de 2015, são as seguintes:

1.1. Incide a prescrição intercorrente, nas causas regidas pelo Código de Processo Civil de 1973, quando o exequente permanece inerte por prazo superior ao de prescrição do direito material vindicado, conforme interpretação extraída do artigo 202, parágrafo único, do Código Civil de 2002.

1.2. O termo inicial do prazo prescricional, na vigência do Código de Processo Civil de 1973, conta-se do fim do prazo judicial de suspensão do processo ou, inexistindo prazo fixado, do transcurso de um ano (aplicação analógica do artigo 40, parágrafo 2º, da Lei n. 6.830/1980).

1.3. O termo inicial do artigo 1.056 do Código de Processo Civil de 2015 tem incidência apenas nas hipóteses em que o processo se encontrava suspenso na data da entrada em vigor da novel lei processual, uma vez que não se pode extrair interpretação que viabilize o reinício ou a reabertura de prazo prescricional ocorridos na vigência do revogado Código de Processo Civil de 1973 (aplicação irretroativa da norma processual).

1.4. O contraditório é princípio que deve ser respeitado em todas as manifestações do Poder Judiciário, que deve zelar pela sua observância, inclusive nas hipóteses de declaração de ofício da prescrição intercorrente, devendo o credor ser previamente intimado para opor algum fato impeditivo à incidência da prescrição”.

Cumpre enfatizar que esse importante julgado, pondo fim a qualquer discussão acerca da extinção do processo, por provocação do executado ou mesmo de ofício, com fundamento na prescrição intercorrente, passou então a ser precedente com eficácia vinculante, a teor do parágrafo 3º do já apontado artigo 947, textual: “O acórdão proferido em assunção de competência vinculará todos os juízes e órgãos fracionários, exceto se houver revisão da tese”.

Observe-se que esse novo mecanismo processual – incidente de assunção de competência – tem como precípua finalidade, além de racionalizar a prestação jurisdicional, uniformizar a interpretação e aplicação do direito em todos os tribunais brasileiros.

Daí, porque se faz de todo imprescindível que os juízes de um modo geral, revelando respeito à hierarquia funcional, embora possam ressalvar o próprio entendimento, tenham a humildade de acompanhar a orientação assentada nas cortes superiores. É exatamente esse comportamento que os jurisdicionados esperam dos magistrados!

Pois bem, ciente desse impostergável dever institucional, mais recentemente, em 10 de dezembro de 2019, a 4ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, ao apreciar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, instaurado, com arrimo no artigo 977 do Código de Processo Civil, nos autos da Apelação n. 0378785-97.2017.8.21.7000, acompanhou, por unanimidade de votos, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça. Nesse caso, o processo do recurso de apelação é denominado de “processo piloto”, exatamente porque o IRDR foi suscitado no âmbito de seu respectivo julgamento.

Eis, em substância, os termos do notável acórdão:

“INCIDENTE DE RESOLUÇÃO DE DEMANDAS REPETITIVAS. IRDR. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. TERMO INICIAL DO PRAZO DO SEU CÔMPUTO E NECESSIDADE DE INTIMAÇÃO PRÉVIA DO CREDOR PARA DAR IMPULSO À EXECUÇÃO, ANTES DO RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE. ADOÇÃO DA ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL EMANADA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, NO JULGAMENTO DO IAC N. 01/STJ. APESAR DE ESSA POSIÇÃO JUDICIAL NÃO VINCULAR AS DECISÕES DE OUTROS JUÍZES OU TRIBUNAIS, CONVÉM SEJA SEGUIDA, EM ATENDIMENTO AOS PRINCÍPIOS DA CELERIDADE E RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO.

1. Teses jurídicas fixadas:

1.1. A prescrição intercorrente resta configurada quando o credor permanecer inerte por período superior ao da prescrição do direito material objeto da pretensão executiva, tendo como termo inicial de seu cômputo o encerramento do prazo de suspensão deferido pelo Juízo, ou, não fixado esse, o transcurso de um ano da suspensão, apresentando-se desnecessário, para o seu reconhecimento, a prévia intimação pessoal do exequente para dar andamento ao feito executivo.

1.2. É exigível que seja possibilitado à parte exequente, em atendimento aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, bem como aos princípios processuais da cooperação e da boa-fé, antes da extinção do processo pelo reconhecimento da prescrição intercorrente, de ofício ou a requerimento da parte executada, prévia manifestação para que, se for o caso, oponha fato impeditivo ao seu reconhecimento.

1.3. A regra do artigo 1.056 do Código de Processo Civil vigente se aplica apenas aos processos em que, na data do início de vigência da Lei n. 13.105/2015, se encontravam com prazo de suspensão (fixado em decisão judicial) em curso, não se aplicando, consequentemente, naqueles em que a prescrição intercorrente já havia se consumado (tendo como termo inicial o cômputo de um ano de suspensão, quando não estipulado este prazo por decisão judicial).

2. Julgamento do processo piloto. Hipótese em que o processo permaneceu sem movimentação efetiva (embora não tenha havido decisão judicial determinando a sua suspensão) por prazo superior ao da prescrição aplicável ao caso, ensejando, já que oportunizada ao credor prévia manifestação, a sua extinção com lastro no inciso V do artigo 924 do Código de Processo Civil.

Fixada a tese jurídica é negado provimento ao recurso no julgamento do processo piloto”.

Conclui-se, portanto, que o entendimento pretoriano sedimentado quanto ao reconhecimento da prescrição intercorrente se baseia, em apertada síntese, naquelas duas premissas acima delineadas, justificando-se a intimação do exequente para que tenha ele a oportunidade de se manifestar acerca de eventual fato atinente à interrupção do prazo prescricional.

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