Opinião

As "infidelidades federativas" e a PEC dos fundos públicos

Autor

  • Arthur Porto Reis Guimarães

    é procurador da Fazenda Nacional coordenador do Núcleo de Acompanhamento Especial no Estado do Pará mestrando em Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará.

28 de janeiro de 2020, 7h19

A ideia de infidelidade provoca fortes reações, especialmente no âmbito das relações amorosas, conforme apontou os cunhados adúlteros Paolo e Francesca de Rímini, integrantes permanentes do segundo círculo do Inferno de Dante Alighieri em A Divina Comédia, surpreendidos e mortos pelo marido traído.

A infidelidade como temática no Direito Constitucional Financeiro é instigada na decisão liminar do ministro Dias Toffoli na Ação Cível Originária 3.329, proferida no recesso do Judiciário e véspera do final de 2019. Trata-se de ação promovida por todos os Estados membros e Distrito Federal (exceção do Estado da bandeira do NEGO[1]), cujo argumento central é a ilegalidade e inconstitucionalidade do contingenciamento dos recursos contidos no Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), prática de política financeira-orçamentária rotineira nas finanças públicas da União, porém, vedado expressamente na legislação do referido fundo (artigo 5º, §2º, da lei 13.756/18).

O ministro presidente, em regime de plantão, pois a relatora original é a ministra Rosa Weber, arguiu a existência de uma "infidelidade federativa" no comportamento da União ao promover o contingenciamento dos recursos do FNSP em desconformidade com o modelo constitucional de federalismo cooperativo e respeito às regras de repartição dos recursos entre os demais entes participantes.

A decisão se conforma com a noção que um fundo financeiro público é um instrumento jurídico com recursos especificados em lei, e vinculados a promoção de determinados objetivos (artigo 71, Lei 4.320/64), sendo ainda, essenciais para “sobrevivência do Estado Federal” através da divisão dos “recursos de regiões mais fortes para as mais fracas”, conforme explica Regis Fernandes de Oliveira[2].

A questão se tornou mais tormentosa, já que no início de novembro de 2019, foi anunciado um pacote de mudanças constitucionais, nominado de “Plano Mais Brasil”, uma tríade de propostas de emendas à Constituição, entre elas, destacamos a PEC 187 ou “PEC dos Fundos Públicos”. O ponto central da referida proposta é a extinção da totalidade dos fundos públicos infraconstitucionais de todos os entes federados.

A extinção funcionaria sob condição resolutória de que no biênio legislativo após aprovação da emenda, os respectivos entes federados responsáveis ratifiquem através de lei complementar específica a manutenção do fundo extinto pela PEC. A consequência da não aprovação tempestiva da LC específica significará a extinção de pleno direito do fundo público. Estariam excluídos da extinção os fundos públicos previstos nas Constituições e Leis Orgânicas de cada ente federativo, o que afastaria a incidência da emenda, por exemplo, em face dos Fundos de Participação dos Estados (FPE), dos Municípios (FPM) e do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Segundo o Poder Executivo Federal, apenas no âmbito da União a medida abarcará 248 fundos públicos, com saldo disponível de 220 bilhões de reais. A proposta do deslocamento de recursos de centenas de fundos para ingresso na livre disponibilidade orçamentária formata um ambiente tentador para ampliação da liberdade do legislador orçamentário em sintonia com a ideia do “sistema de vasos comunicantes”, desenvolvida por Fernando Facury Scaff[3].

Existe na PEC dos Fundos Públicos um esquecimento normativo que é a relação jurídica dos fundos a serem extintos com o modelo federativo cooperativo de transferência de recursos aos governos subnacionais para financiamento de políticas públicas vocacionadas a proteção de direitos fundamentais. Uma simples análise da relação dos fundos permite melhor entender a dimensão do problema. Citamos alguns exemplos de fundos ameaçados de extinção pela PEC 187: Fundo de Assistência a Maternidade (proteção à maternidade e à infância), Fundo de Investimento Social (direitos sociais), Fundo Especial de Alimentação Escolar (direito a educação e alimentação), Fundo Nacional de Assistência Social (direito a assistência social), Fundo Nacional do Idoso (proteção ao idoso), entre inúmeros outros.

Os proponentes da emenda poderiam argumentar que há disponibilidade de prazo para ratificar a continuidade do fundo. Não precisamos debater com profundidade se a questão bienal outorgada para o Legislativo manter ou não o fundo é nitidamente insuficiente dentro da contumaz mora legislativa.

Se na ACO 3.329 os Estados membros se preocupavam com o debate político orçamentário envolvendo um único fundo (Fundo Nacional de Segurança Pública) e a “infidelidade federativa” promovida pela União, imagina-se o problema da PEC 187 e as “infidelidades” abarcadas pela ameaça de extinção de diversas fontes financeiras aptas a distribuição de recursos entre os membros da federação para dentro das escolhas vinculadas às suas respectivas autonomias para financiar políticas públicas.

Importante consignar que, ante à dúvida da ratificação dos fundos no biênio legislativo, caso aprovada a PEC conforme proposta, há uma certeza nela insculpida: assegurar-se-á o uso do superávit financeiro dos fundos para amortizar a dívida pública (artigo 5º da PEC 187). Mais uma vez, a fidelidade com os interesses vinculados à dívida pública remanesce em tempos de conjecturas sobre “infidelidades federativas”.

Em um momento de notória crise nas finanças públicas dos Estados membros, o Congresso terá uma oportunidade na PEC 187 para promover um debate público acerca do melhor emprego de recursos contingenciados em numerosos fundos da União e aprimoramento do sistema de transferências intergovernamentais, e não simplesmente, adotar a solução simplista de seu aniquilamento.

Existem sugestões para aperfeiçoamento da PEC dos Fundos Públicos. Primeiro, uma ampliação do prazo para ratificação dos fundos, diante da diminuta possibilidade do Poder Legislativo em curto prazo bienal de proceder a discussão e aprovação da LC para manutenção de cada fundo. Uma segunda sugestão seria excluir da incidência da PEC 187 os fundos cujos objetos se vinculem ao financiamento de gastos públicos vocacionados à efetivação de direito fundamentais, como os referidos no parágrafo anterior. Por fim, propiciar a participação dos Estados membros e municípios na repartição dos recursos provenientes dos fundos da União extintos pela PEC, através de regras de divisão compatíveis com o objetivo da República Federativa do Brasil de redução das desigualdades regionais (artigo 3º, IV, da CRFB).

A “PEC dos Fundos Públicos” demonstra que as relações federativas duradoras demandam fidelidade, e em uma relação que ultrapassou três décadas, há a imperiosa necessidade de atenção e observância das regras básicas de convivência para dar continuidade ao projeto constitucional de federalismo cooperativo e afastar os riscos de novas infidelidades.


1 Para uma explicação histórica sobre a bandeira do Estado da Paraíba, ver GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes https://www.conjur.com.br/2017-abr-23/embargos-culturais-joao-pessoa-explicacao-inscricao-nego-bandeira-paraiba.

2 OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Curso de Direito Financeiro. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2019, p. 505.

3 “Os limites à liberdade do legislador orçamentário são de fundamental importância no estudo do orçamento republicano, em razão de o mesmo se caracterizar como um sistema de vasos comunicantes, isto é, qualquer movimentação em uma rubrica de receita ou de despesa acarretará necessariamente um rearranjo no sistema orçamentário.” SCAFF, Fernando Facury. Orçamento Republicano e Liberdade Igual. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 294.

Autores

  • é procurador da Fazenda Nacional com atuação no Núcleo de Acompanhamento Especial, mestrando em Direito Financeiro e Tributário no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Pará.

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