Opinião

Possibilidades de política cultural para um governo conservador no Brasil de 2020

Autor

  • Marcello Miller

    é advogado ex-procurador da República ex-promotor de Justiça do Distrito Federal ex-diplomata Bacharel em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

26 de janeiro de 2020, 6h14

No Brasil, de tédio não se morre – mas é possível morrer de susto. Uma das surpresas destes tempos foi o vídeo em que o então Secretário Especial de Cultura Roberto Alvim tira do armário inclinações nazistas e adota linguagem e ambiência alusivas ao III Reich para anunciar o Prêmio Nacional de Cultura. Mas o País voltou a mostrar vigor institucional: a reação do Estado e sociedade foi firme e rápida, e Roberto Alvim foi exonerado.

O episódio contempla dois planos de análise jurídica. O primeiro discute por que exatamente a fala de Alvim é incompatível com com o Estado Democrático de Direito. O segundo indaga como como pode ser, no Brasil de hoje, a política cultural de um governo de agenda conservadora .

Incompatibilidade com o Estado Democrático de Direito
A fala de Alvim pretende estabelecer balizas para a produção cultural brasileira. Parte dessas balizas é de conteúdo e parte diz respeito à função social da arte.

Quanto ao conteúdo, ao dizer que “a arte brasileira da próxima década será heroica e será nacional”, Alvim vincula a produção cultural a conteúdos voltados para a exaltação e a glorificação de feitos e personagens da história do Brasil. O contexto da fala não permite, com efeito, entender que o heroismo e a nacionalidade nela referidos sejam interpretados como atributos inerentes a qualquer produto cultural, isto é, como se toda arte, pelo simples fato de ser arte, já fosse heroica; e, pelo simples fato de ser realizada no Brasil, já fosse nacional. O heroismo inerente contrastaria com a visão conservadora do ex-secretário, que abertamente repudia manifestações culturais como o rock'n'roll; e a nacionalidade inerente seria tautológica.

Quanto à função, ao falar na capacidade de envolvimento emocional e na imperatividade da arte, Alvim confere à produção cultural função doutrinadora. A interpretação mais plausível da referência ao envolvimento emocional é de que, para o ex-secretário, a arte deve despertar sentimentos de empatia com seus temas, e não, por exemplo, fomentar reflexão crítica. Por sua vez, a menção à imperatividade – provável paráfrase dos adjetivos verpflichtend (obrigatória) e bindend (vinculante) utilizados por Goebbels – só pode denotar a compreensão da arte como prescritiva, e não descritiva, menos ainda contestadora.

É condição mínima para haver Estado Democrático de Direito que não seja dado aos Poderes constituídos programar conteúdos vinculantes, ainda que por balizas largas, para a produção cultural. Quando proferiu sua fala, ainda que não tenha usado ostensivamente o modo imperativo, Goebbels estava ditando – como é próprio dos regimes totalitários – como teria de ser a arte alemã da década seguinte. No Brasil, contudo, o Secretário Nacional de Cultura não podia ditar coisa alguma a respeito do conteúdo da arte.

O dado mais absurdo da fala de Alvim – e mais impressionante na de Goebbels – é a ideia de imperatividade da arte. Com esse atributo, a arte perde toda e qualquer função social compatível com o Estado Democrático de Direito, pois passa a constituir instrumento estatal de doutrinação da sociedade, tanto no nível da produção (verpflichtend – obrigatória) quanto no da contemplação (bindend – vinculante). Não há, com efeito, como dar à produção cultural feitio mais ajustado ao totalitarismo do que tornando-a imperativa. Trata-se, de resto, de ambição estranha à arte na esmagadora maioria de suas manifestações.

Possibilidades de política cultural
Se é verdade que no Estado Democrático de Direito nenhum Poder constituído pode ditar conteúdos para a produção cultural, também é verdade que, no constitucionalismo brasileiro, o Estado tem, ainda, a obrigação de conceber e executar uma política cultural. Com efeito, o art. 215 da Constituição não só impõe a adoção de tal política, como também fixa parâmetros para ela, nos quais repontam princípios como o prestígio da produção cultural brasileira na dimensão integral de sua diversidade. O art. 215 prevê, ademais, como instrumento-chave da política cultural o Plano Nacional de Cultura, a ser estabelecido em lei de vigência plurianual.

Governos conservadores não têm, em regra, como tônica de suas propostas de política cultural, o incentivo à crítica, à contestação e à ruptura, atributos frequentes na produção cultural da pós-modernidade. A arte é vista pelos conservadores como espaço de construção de narrativas de coesão e harmonia do tecido social e de desenvolvimento de linguagens e estéticas sem viés de questionamento da realidade sociopolítica.

A Constituição de 1988 não proíbe a construção de política cultural mais alinhada com essa visão. O que ela impõe é a observância, nessa política, de métodos que se valham de ênfases, preferências e matizes, de modo que o Estado não incorra, em seus incentivos, em preterições absolutas. Nada impede que, observadas as balizas constitucionais, a política cultural institua sistema de incentivos que contemple preferências por manifestações artísticas e culturais mais afeitas ao conservadorismo.

A chave de constitucionalidade está na ideia de preferência, que embute, como conceito de medida, a vedação dos absolutos. Os princípios constitucionais para a cultura veiculam denso sentido de proteção da diversidade cultural e, por isso, não se coadunam com preferências e preterições totais.

O Estado brasileiro não pode adotar política cultural que promova distribuição de incentivos com viés excludente ou exclusivista. Mas pode criar preferências quantitativas, desde com razoabilidade. Em exemplo elementar, mecanismo de incentivos que destinasse 99% de verbas de um fundo de incentivo à música para obras eruditas ou folclóricas e apenas 1% para novos ritmos, como o funk, não se afiguraria razoável; mas, alteradas essas porcentagens para 70% e 30%, estar-se-ia no espectro legítimo da fixação de prioridades, com a correspondente preterição – mas não a aniquilação – do que não fosse prioritário.

Não há legitimidade, de resto, no subsistema constitucional brasileiro reservado à cultura, para discurso oficial segundo o qual a distribuição estatal de incentivos, quando proscreve determinado segmento de produção cultural, não importa proibição a manifestações dele provenientes, incentivadas por fontes privadas. Sem apoio estatal, tanto no Brasil quanto em países muito mais desenvolvidos, a arte e a cultura tendem a minguar. Consideradas as balizas da Constituição de 1988, portanto, a política nacional de cultura não será íntegra se não contemplar medida honesta – ainda que não prioritária – de incentivos a manifestações artísticas e culturais não alinhadas à visão preferida pelo governo do dia; se não o fizer, estará, ademais, incorrendo, por via transversa, na mesma prescrição de conteúdo de Goebbels e Alvim.

Conclusão
O absurdo de Alvim pode, como todos os absurdos do nazismo, ser útil como instrumento de reflexão. A reação alérgica do País à fala do ex-secretário é saudável, mas é importante analisar a exata dimensão do que a torna inaceitável, nomeadamente, a noção de que seus conteúdos devam ser vinculados e vinculantes.

Ainda mais importante é extrair lições para a construção da política nacional de cultura, justo no ano em que expira o Plano Nacional de Cultura de 2010. O novo plano não precisa ser, como é o ainda vigente, de abrangência ampla e pouco afeito a prioridades. Mas não pode deixar de incluir e apoiar, mesmo que com menos prioridade, a produção artística e cultural que não seja alinhada às ideias do governo do dia.

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    é advogado, ex-procurador da República, ex-promotor de Justiça do Distrito Federal e ex-diplomata. Bacharel em Direito e mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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