Embargos culturais

A discussão sobre o direito à literatura em Antonio Candido

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

26 de janeiro de 2020, 8h00

Spacca
Estudos de direito e literatura multiplicam-se no Brasil. Enfrenta-se uma ainda forte tradição positivista, analítica e tecnicista, para a qual o direito é só a lei e as decisões judiciais e, quando muito, os livros que explicam leis e que comentam decisões judiciais. Esses livros formam o que os juristas denominamos de doutrina, expressão tomada à força (e imperceptivelmente) da teologia.

Há quem estude o direito na literatura, ou a literatura no direito. Eu acrescentaria o direito à literatura. A relação entre esses dois campos, direito e literatura, sugere que se abandonem fronteiras conceituais clássicas. O direito na literatura consiste em se alcançar aspectos jurídicos na produção literária de ficção. O que romances, novelas e contos falam sobre o direito e sobres os problemas jurídicos e sobre a justiça? A literatura no direito é teorização ou criticismo literário em textos jurídicos, que variam de decisões judiciais a petições. É um assunto que interessa aos estudiosos de retórica. Acrescento que a literatura no direito é também um olhar sobre os mencionados livros de doutrina. É um estudo sobre material burocrático.

Há um problema conceitual que precisa ser enfrentado, isto é, até que ponto o direito é literatura? Umberto Eco enfatizava que a escrita pode ser criativa ou científica. Eu acrescentaria a escrita burocrática. Há também a questão da tradução. Confirma Eco que Cervantes e Tolstoi, por exemplo, são conhecidos e muito mais lidos em tradução do que — provavelmente — por leitores versados na língua em que o Quixote e Guerra e Paz foram escritos.

O direito à literatura foi um assunto tratado por Antonio Cândido (1918-2017), figura central da crítica literária brasileira a partir dos anos 40 do século passado, segundo Roberto Schwarz. Refiro-me ao texto Direito à literatura, tema de palestra proferida em 1988, e publicado na coletânea Vários Escritos. As linhas gerais dessa intervenção sedimentam uma orientação segura para reflexão e aprofundamento. Antonio Candido revela-se (continuamente) lúcido, coerente, convicto. Era um humanista, na acepção mais completa que essa palavra possa nos remeter.

A discussão tem como pano de fundo a relação entre direitos humanos e literatura. Cândido lembra-nos que vivemos (parece que sempre) em épocas de barbaridades e de injustiças. Ainda cometamos as mesmas barbaridades e injustiças que denunciamos, e ainda que não celebremos esses feitos (ou desfeitos). Em 1988 Cândido registrava que já não mais se falavam coisas que ouvia quando era menino, isto é, “que haver pobres é a vontade de Deus (…), que os empregados domésticos não precisam descansar, que só morre de fome quem for vadio”. Contra essas sandices Cândido argumentava que se deve considerar que tudo que nos é indispensável é também indispensável ao próximo. É como definiu os direitos humanos. E é esse o ponto de partida de um direito à literatura.

Com base em Louis-Joseph Lebret, um padre dominicano francês que também era economista, Cândido dividiu os bens da vida em bens compressíveis e bens incompressíveis. Cosméticos, enfeites e roupas supérfluas são compressíveis. Alimentos, roupas e habitação são incompressíveis. Aqueles primeiros são substituíveis e inclusive descartados. Esses últimos são essenciais.

No direito (especialmente no direito tributário) explica-se a divisão com a teoria da seletividade, que orienta a fixação de alíquotas e de bases de cálculo de IPI e de ICMS. De acordo com Antonio Cândido os bens incompressíveis não são apenas os que asseguram a sobrevivência fática e física em níveis decentes. São também os que garantem a integralidade intelectual. É aí que encaixa a literatura.

Cândido definiu a literatura como toda criação de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Nesse sentido, não passamos mais de um dia sem mergulharmos no universo da imaginação e da fabulação. Contamos, vivemos, sonhamos e imaginamos estórias. Além do que, a literatura é um instrumento poderoso de instrução e de educação, prossegue o crítico.

Há uma literatura sancionada (prestigiada pelo poder) e uma literatura perseguida, em oposição àquela primeira. Esta última, a literatura perseguida, é uma necessidade social. É uma literatura empenhada. Cândido menciona Castro Alves (e o Navio Negreiro), Bernardo Guimarães (e a Escrava Isaura), Vitor Hugo (e os Miseráveis). É uma literatura de humanitarismo romântico, centrada na equação “pobreza mais ignorância mais opressão é igual ao crime”. Lembra ainda Dickens (Oliver Twist), Dostoievsky (Crime e Castigo) e Emile Zóla no contexto do caso Dreyfuss. No Brasil, lembra Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Raquel de Queiroz e Érico Veríssimo.

Defende uma sociedade igualitária de produtos literários. A literatura é uma necessidade universal. A literatura, prossegue Cândido, é um instrumento consciente de desmascaramento, apontando e denunciando onde há restrições e negações de direitos. A literatura denuncia a miséria, a servidão e a mutilação espiritual. Para Antonio Candido, a literatura erudita não pode ser monopólio de classes dominantes e também não pode ser distribuída de forma estratificante e alienante.

Inegável que há um direito à literatura, na medida em que se aceita a literatura como um bem incompressível, e na medida em que valorizo que seja imprescindível para o outro o que é essencial para mim (o que não deixa de ser uma formulação alternativa do imperativo categórico kantiano).

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