Opinião

Decisão de Fux suspendendo audiência de custódia em 24h foi incorreta

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25 de janeiro de 2020, 6h24

O dia 23 de janeiro de 2020 poderia representar o marco inicial de uma nova era do processo penal brasileiro, sendo certo que o símbolo maior dessa mudança seria a instituição do juiz de garantias. A despeito de persistir uma mentalidade nitidamente autoritária entre a maioria dos personagens jurídicos, a modificação legislativa indicava um real comprometimento com o modelo acusatório de persecução penal. Todavia, em razão de decisão proferida, em 15 de janeiro de 2020, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, o ministro Dias Toffoli, a comunidade jurídica viu adiada em seis meses a concretização dessa nova concepção de desenvolvimento da persecução penal.

A decisão liminar proferida pela Presidência que determinou a suspensão de diversos dispositivos da Lei 13.964/19 por 180 dias já se mostrava tenebrosa. Porém, o mal maior ainda estava por vir, pois, na véspera da entrada em vigor do chamado Pacote Anticrime, o ministro Luiz Fux concedeu liminar mais ampla nas ADIs que questionavam dispositivos da referida lei como ainda, e aqui reside o horizonte caótico, suprimiu a previsão temporal da suspensão.

E que não se repute como postura alarmista, já que o ministro relator adotou um excessivo tempo reflexivo após o deferimento da liminar que assegurava auxílio-moradia para magistrados. O mérito somente foi analisado com o aumento do subsídio do ministro do Supremo Tribunal Federal. A prosperar essa lógica do “toma lá, dá cá, há de se refletir sobre o que deverá ser extirpado da nova lei, ou seja, o que deverá ser negociado para que enfim seja extraída de alguma gaveta ou escaninho os autos das ADI’s?

Para fins deste artigo, a questão se restringe ao disposto no artigo 310, § 4º, Código de Processo Penal, in verbis:

Transcorridas 24 (vinte e quatro) horas após o decurso do prazo estabelecido no caput deste artigo, a não realização de audiência de custódia sem motivação idônea ensejará também a ilegalidade da prisão, a ser relaxada pela autoridade competente, sem prejuízo da possibilidade de imediata decretação de prisão preventiva.”

Esse dispositivo veio a ser questionado pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), sendo certo que, na petição inicial da ADI 6.305 – foi apontado como incompatível com o Texto Constitucional, pois padece(ria) de inconstitucionalidade ao prever hipótese de soltura automática, leva em consideração prazo inflexível, e ao mesmo tempo permite o decreto de prisão preventiva sem a realização da própria audiência de custódia.

Ora, se a soltura automática representar inconstitucionalidade como então justificar a exegese do artigo 313, inciso I, CPP, a contrario senso. Exemplifico: um furto simples supostamente cometido por um primário poderia ensejar algum aprisionamento? Por que então esse dispositivo jamais veio a ser questionado pela mesma associação de classe?

A questão do prazo há de ser examinada também, já que, ao contrário do que estabelece a MC na ADPF 347, o atual prazo para a realização da audiência de custódia é de 48h, pois a autoridade policial deverá comunicar a prisão em 24h e nas 24h seguintes deverá ser realizada a audiência de custódia.

Ao contrário do que afirmou a Conamp, o prazo não é inflexível, existindo previsão da sua superação, desde que subsista motivação idônea, o que, na verdade, são os exemplos trazidos na inicial, tal como uma prisão realizada no pantanal.

Justifica a Conamp que não há razoabilidade nesse prazo, o que fundamentaria a inconstitucionalidade do citado dispositivo legal.

Muito embora no início da decisão liminar proferida, em 22 de janeiro de 2020, o ministro Luiz Fux tenha apontado o minimalismo interpretativo como marca da jurisdição constitucional, a forma como se deu suspensão do artigo 310, § 4º, CPP vai de encontro ao afirmado, uma vez que a consequência jurídica foi tida como desarrazoada para a não realização da audiência de custódia, a saber: a ilegalidade da prisão.

Suzane de Toledo Barros, em seminal obra sobre o princípio da proporcionalidade, traz duas considerações que não podem ser ignoradas nesse momento de análise sobre determinado trecho da decisão proferida pelo ministro Luiz Fux na ADI 6.305:

A importância de todo o estudo do princípio da proporcionalidade na Alemanha deve-se ao fato de que aí ele ganhou o seu contorno atual, alçado que foi do direito administrativo ao direito constitucional por obra do ‘Bundesverfassungsgericht’, o qual, a partir da Segunda Guerra Mundial, foi cunhado paulatinamente o princípio por meio de inúmeras decisões reconhecendo que o legislador não se deve exceder na sua liberdade de conformação dos direitos fundamentais.

O salto qualitativo no controle das leis na Europa Continental ocorreu, portanto, graças à transposição, para o direito constitucional, das teorias de limitação do poder de polícia desenvolvidas no direito administrativo francês e recepcionadas pela Alemanha.”i

O princípio da proporcionalidade, a que se faz alusão nesse trabalho, como uma construção dogmática dos alemães, corresponde a nada mais do que princípio da razoabilidade dos norte-americanos, desenvolvido mais de meio de século antes, sob o clima de maior liberdade dos juízes na criação do direito.”ii

Se a razoabilidade serve como parâmetro para controle do poder, como então compreender como coerente um raciocínio jurídico que aponte algo próprio da limitação do poder punitivo como inconstitucional?

Dois pontos ainda merecem ser destacados para apontar o grave equívoco na decisão, que ora é examinada.

A uma, o Supremo Tribunal Federal já indicou a natureza da audiência de custódia, qual seja, direito subjetivo do preso que, caso não fruído no prazo de 48h, poderá, vide o artigo 310, § 3º, CPP, ensejar a responsabilização administrativa, civil e penal.

Além disso, quando do julgamento da MC na ADPF 347, o ministro Fux, que agora questiona a consequência para a superação do prazo de 48h para a realização da audiência de custódia, não se opôs ao lapso temporal menor — na verdade, 24h, a contar da prisão.

Eis o afirmado naquele no dia 3 de setembro de 2015 no curso dos debates:

O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX – Quando nós votamos a audiência de custódia, aqui, legitimamos aquela audiência pela Convenção do Pacto de São José da Costa Rica, a apresentação se dará 24 horas depois da prisão.”

Já no dia 9 de setembro de 2015, ao apresentar seu voto, adota postura decisória contrária a mais recente que suspendeu o artigo 310, § 4º, CPP:

Então, observe Vossa Excelência: se nós, em uma ação de preceito fundamental determinarmos que juízes motivem, que apliquem pena alternativas, que cumpram o Pacto de São José da Costa Rica, fazendo a apresentação dos presos, e, se eles não fizerem, estarão cometendo um vício de ilegalidade na decisão.”

Diante do vício de ilegalidade, o Texto Constitucional, vide o artigo 5º, inciso LXV, não aponta o relaxamento como instrumento idôneo a retificar esse cenário? O que teria feito mudar o entendimento do ministro Fux? O Código de Processo Civil, que foi por ele idealizado, não indica a necessidade de que as decisões observem os primados da coerência e integridade? A inconstitucionalidade seria a previsão de sanção para o descumprimento imotivado da lei? Até quando serão admitidas superações ao princípio da legalidade no âmbito da liberdade sem que ocorra qualquer consequência?

A suspensão da sanção cabível para a demora na realização da audiência de custódia aponta para a atualidade da análise de Emília Viotti da Costa sobre o Supremo Tribunal Federal:

Durante seu longo percurso, a instituição não pôde deixar de sofrer as influências autoritárias e antidemocráticas que caracterizaram o processo histórico brasileiro. No próprio Supremo, essas ideias encontraram guarida entre alguns ministros. Assim como houve ministros liberais ou progressistas, também houve os conservadores e até os retrógrados.”iii

Sabe-se lá quando o Plenário irá apreciar a ADI 6.305, mas quando esse dia chegar – e tomara que não demore tanto quanto na apreciação definitiva do auxílio-moradia – a maioria extirpe essa decisão incorreta. O uso performático da razoabilidade somente demonstra algo que foi indicado no início deste texto: a persistência da mentalidade autoritária. A revogação dessa liminar não exigirá que a maioria venha a ser composta por liberais ou progressistas, mas unicamente por agentes políticos comprometidos com o Texto Constitucional.


i BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos de direitos fundamentais. 3. ed. Brasília Jurídica, 2003. p. 47

ii Id. p. 58

iii COSTA, Emília Viotti. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2. ed. São Paulo: UNESP, 2006. P. 188.

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    é defensor público do Rio de Janeiro e mestre em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Universidade Estácio de Sá. Foi defensor público do estado de São Paulo (2007-2010)

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