Opinião

Uma reflexão sobre o princípio "competência-competência" na arbitragem

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24 de janeiro de 2020, 7h23

Em palestra que proferi num congresso para magistrados, em Lisboa, sobre a arbitragem na formação do território brasileiro,[1] percebi, ao final, certa reação de alguns participantes, demonstrando discordância com a informação de que a cláusula de arbitragem possui independência em relação ao contrato do qual faz parte. Esclarecia eu que a nulidade do contrato não gera, automaticamente, a nulidade da cláusula de arbitragem (artigo 8º, “caput”, da Lei de Arbitragem — 9.307/1996),[2] e que mesmo essa eventual nulidade deveria ser apreciada originariamente pelo próprio tribunal arbitral, não pelo Judiciário (artigo 8º, parágrafo único).[3] Aquelas reações partiram da premissa da inafastabilidade da jurisdição e se apresentaram aproximadamente desse modo: “Isso é um absurdo. Querem impor a arbitragem mesmo em face de um contrato nulo e sem a análise do Judiciário. Isso é inconstitucional!”.

Será?

Se fizermos uma análise pura de questões corriqueiras, tal qual quando duas partes firmam um contrato de compra e venda, no exercício pleno de sua autonomia contratual, e, diante dessa liberdade escolhem o foro judicial no qual as possíveis disputas serão apreciadas, parece não haver dúvidas que aquele mesmo juízo é quem deverá decidir sobre as questões oriundas da avença, inclusive sobre eventuais nulidades daquela cláusula (conforme prescreve o § 3º do artigo 63 do CPC).[4] Diante do exercício do poder de escolha, não há diferença entre esta hipótese e aquela prevista para a arbitragem. Se existe um sistema legal para a resolução de conflitos, seja ele estatal ou privado, ele não deve ser desestimulado ou menosprezado quanto à sua utilização, inclusive quanto a ser o primeiro a apreciar a sua própria competência (ou a nulidade do ajuste que o escolheu para isso).

Dizem que o urso polar gosta do frio, mas o bipolar às vezes gosta, outras vezes não! Se as partes pactuaram a escolha da arbitragem para a resolução do eventual conflito decorrente daquele objeto contratual (excluindo o estado-juiz dessa análise), parece não haver dúvidas de que é esse sistema que precisa ser acionado para decidir a questão (inclusive sobre a própria validade da cláusula que o instituiu). Torna-se incoerente, assim, a fácil ida da parte ao Judiciário, para combater o pacto que livremente firmou e que estabeleceu justamente a exclusão do juízo estatal daquela disputa. Minha filha Cecília, estudante de Teatro, tem uma frase que define muito bem aquele indivíduo que ora faz uma coisa, ora faz outra totalmente contrária: “Olha a bipolaridade da pessoa!”.  Não se mostra coerente a pessoa firmar um contrato escolhendo a arbitragem como meio de resolução de possível litígio entre as partes, com o afastamento do Poder estatal daquela controvérsia e, no entanto, ir justamente ao Judiciário pedir o aval daquele órgão para simplesmente descumprir o ajuste então pactuado, em prejuízo da outra parte e do quanto se convencionou.

Todavia…, e se houver, realmente, alguma nulidade na cláusula da arbitragem? Nesse caso o árbitro ou o tribunal arbitral irá declará-la e julgar sem efeito a própria arbitragem,[5] encerrando o procedimento, do mesmo modo que o juízo elegido pelas partes num contrato o fará no curso do processo judicial (o já referido § 3º do artigo 63 do CPC). Mas se a lei não pode excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal), as partes não ficariam desabrigadas, se a decisão arbitral estiver equivocada quanto à decisão sobre a nulidade? Nesse ponto precisamos fazer alguns esclarecimentos adicionais, conforme veremos a seguir.

A Carta Magna nos diz que a lei não pode excluir da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito. No entanto, as partes podem fazê-lo, pois possuem a liberdade de, no exercício de sua autonomia e quanto aos seus direitos disponíveis, optarem pelo caminho da jurisdição privada (artigo 1º da Lei de Arbitragem).[6] Se as partes podem doar, transigir ou renunciar ao seu direito disponível, não faria qualquer sentido que não pudessem disciplinar o modo de solucionar eventuais conflitos em relação a eles. Essa foi a decisão do STF ao declarar a constitucionalidade da Lei 9.307/1996, reconhecendo que ninguém deve ser impelido a privar-se da jurisdição estatal, mas aquele que livremente assim o fizer, por meio de compromisso contratual, nos termos da lei, deverá cumprir a sua obrigação, submetendo-se ao juízo arbitral, sob pena dela ser implementada compulsoriamente pela via judicial, nos termos do artigo 7º daquela norma[7] (STF, pleno, SE 5206 AgR, 12/12/2001). Afastou-se, portanto, a possibilidade de se considerar “natural”, as anômalas condutas bipolares até então observadas e aceitas pelo próprio Judiciário.

Todavia, se os princípios legais relativos à arbitragem forem desrespeitados pelo tribunal arbitral (ao não reconhecer uma nulidade, declarar-se competente quando a hipótese não se ajustar aos termos do contrato ou da lei, ao não se declarar suspeito ou impedido, etc.), essa violação legal pode ser objeto de apreciação judicial, para que se retome o curso da legalidade. Entretanto, é preciso que primeiramente o tema seja levado à apreciação do próprio tribunal arbitral, sob pena de preclusão[8] (artigos 15 e 20 da Lei de Arbitragem)[9].  Após a prolação da sentença arbitral, a parte interessada poderá ajuizar a ação anulatória (prevista no artigo 33 da Lei de Arbitragem) ou, ainda, apresentar a impugnação ao cumprimento da sentença, na hipótese de execução judicial (§ 3º, do artigo 33 da Lei de Arbitragem).[10]

Essa necessária provocação do tribunal arbitral para se pronunciar a respeito da nulidade da cláusula de arbitragem, sobre a sua competência ou suspeição para o caso, entre outros temas afetos à validade da própria arbitragem, constitui o instituto da “competência-competência”, e isso não é uma jabuticaba brasileira. Decorre do princípio alemão de kompetenz-kompetenz, por meio do qual todo juiz, mesmo incompetente, possui a competência legal para reconhecer e validamente declarar essa situação (e isso não se confunde com algum efeito de bipolaridade, como antes jocosamente referido). E essa regra, ainda que com variações pontuais, é consagrada em quase todos os países do planeta.

De fato, parece estranho que um juiz, sem competência para o caso (o que normalmente tornaria nula qualquer decisão ali adotada), tenha jurisdição para validamente declarar essa incompetência (ou nulidade da cláusula contratual). Mas o contrário também não faria sentido, pois só se poderia compreender do exato alcance da competência para aquele caso concreto, após a apreciação do tema pelo respectivo julgador, até porque ele pode se reconhecer competente e, portanto, com plena autoridade para apreciar o litígio.

Ao tempo em que a regra imprime um efeito positivo de dar competência àquele que justamente tem questionada essa sua condição legal, na arbitragem ela também acarreta uma consequência negativa (ou impeditiva), proibindo outro julgador de se pronunciar sobre o tema (artigo 20, § 1º, da Lei de Arbitragem), ao menos num primeiro momento. Como antes referido, apenas após a apreciação da matéria pelo tribunal arbitral e depois de ser proferida a sentença arbitral é que a parte poderá rediscutir a questão na via judicial (§ 3º do artigo 20 da Lei de Arbitragem).

Apenas em situações especialíssimas, na verificação de circunstância efetivamente grave, é que se poderia admitir a direta intervenção do Judiciário, sem passar pelo crivo do respectivo juízo arbitral. Essa supressão do princípio da competência-competência, portanto, só seria possível em hipótese de séria irregularidade, ou numa situação “patológica”, como foi descrito pelo STJ no REsp 1602076 (2016), quando a Corte reconheceu a nulidade direta da cláusula arbitral inserida num contrato de adesão, sem observância do § 2º, do artigo 4º, da Lei de Arbitragem.[11] O princípio da economia se sobrepôs ao da competência-competência, ante a gravidade ou teratologia da nulidade que se antevia, poupando tempo, custos e atos desnecessários.

Em regra, admitir-se a discussão originária de qualquer questão relativa à arbitragem perante o Poder Judiciário, sem passar pelo próprio juízo arbitral, seria favorecer as medidas protelatórias dos que enaltecem seu estado de “bipolaridade”, sempre naquilo que lhe interessam, como forma de preterir as regras do contrato, da lei e do fiel cumprimento às obrigações livremente assumidas, causando prejuízos indevidos à outra parte.[12] Por isso, a intervenção do Judiciário na arbitragem deve se limitar às hipóteses expressamente previstas legalmente, exclusivamente no que se fizer necessário à proteção dos princípios caros ao Direito. Do contrário, ao invés de se ter um único procedimento privado, mais célere, como imaginado originariamente pelas partes, a controvérsia acabaria gerando dois procedimentos (o privado e o judicial), com o aumento de tempo e custos decorrentes dessa sobreposição, além da violação direta aos princípios da efetividade e da celeridade. E isso, claro, não seria justo!


[1] Veja: José Lucio Munhoz, “Arbitragem na formação do território brasileiro”, Justificando, 20/12/19, <https://www.academia.edu/41681679/ARBITRAGEM_NA_FORMA%C3%87%C3%83O_DO_TERRIT%C3%93RIO_BRASILEIRO>

[2] artigo 8º A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória.

[3] Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória.

[4] artigo 63. As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações.  (…) § 3º Antes da citação, a cláusula de eleição de foro, se abusiva, pode ser reputada ineficaz de ofício pelo juiz, que determinará a remessa dos autos ao juízo do foro de domicílio do réu.

[5] Afinal, “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário (artigo 18 da Lei de Arbitragem).

[6] artigo 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.

[7] artigo 7º Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim.  (…) § 4º Se a cláusula compromissória nada dispuser sobre a nomeação de árbitros, caberá ao juiz, ouvidas as partes, estatuir a respeito, podendo nomear árbitro único para a solução do litígio. (…) § 7º A sentença que julgar procedente o pedido valerá como compromisso arbitral.

[8] Por certo a nulidade absoluta não estaria abrangida pela preclusão.

[9] artigo 15. A parte interessada em arguir a recusa do árbitro apresentará, nos termos do artigo 20, a respectiva exceção, diretamente ao árbitro ou ao presidente do tribunal arbitral, deduzindo suas razões e apresentando as provas pertinentes. (…) artigo 20. A parte que pretender arguir questões relativas à competência, suspeição ou impedimento do árbitro ou dos árbitros, bem como nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, deverá fazê-lo na primeira oportunidade que tiver de se manifestar, após a instituição da arbitragem. § 1º Acolhida a arguição de suspeição ou impedimento, será o árbitro substituído nos termos do artigo 16 desta Lei, reconhecida a incompetência do árbitro ou do tribunal arbitral, bem como a nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, serão as partes remetidas ao órgão do Poder Judiciário competente para julgar a causa. § 2º Não sendo acolhida a arguição, terá normal prosseguimento a arbitragem, sem prejuízo de vir a ser examinada a decisão pelo órgão do Poder Judiciário competente, quando da eventual propositura da demanda de que trata o artigo 33 desta Lei.

[10] artigo 33.  A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral, nos casos previstos nesta Lei.  (…) § 3o A decretação da nulidade da sentença arbitral também poderá ser requerida na impugnação ao cumprimento da sentença, nos termos dos arts. 525 e seguintes do Código de Processo Civil, se houver execução judicial.

[11] § 2º Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.

[12] Já tivemos oportunidade de defender que a arbitragem deve ser incentivada, mas sem prejuízo de observar a sua correta e técnica utilização: José Lucio Munhoz, “Tratado de Tordesilhas não foi um exemplo de arbitragem”, Conjur, 30/06/19 <https://www.conjur.com.br/2019-jun-30/josemunhoz-tratado-tordesilhas-nao-foi-arbitragem>

Autores

  • é advogado, Juiz do Trabalho aposentado, PhD em curso pela Universidade de Strathclyde, Pós-graduando em Arbitragem Internacional pela Universidade de Aberdeen, mestre em Direito pela Universidade de Lisboa e vice-presidente da União Ibero-Americana de Juízes. Foi conselheiro do CNJ (2011-2013) e vice-presidente da AMB (2008-2010)

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