Direto do Carf

Teorias dos frutos da árvore envenenada e descoberta inevitável no Carf

Autor

  • Diego Diniz Ribeiro

    é advogado tributarista e aduanerista ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento professor de Direito Tributário Direito Aduaneiro Processo Tributário e Processo Civil doutor em Processo Civil pela USP mestre em Direito Tributário pela PUC-SP pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet e pesquisador do NEF da FGV/SP e do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

22 de janeiro de 2020, 8h00

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Spacca
ncerradas as festividades de final de ano, retomamos a nossa coluna semanal para, valendo-nos de uma metódica diferente daquela usual, tratar não da jurisprudência[1] do Carf para determinado tema, mas sim de específico – e também um dos mais polêmicos – precedente veiculado em 2019 por aquele Tribunal: o acórdão Carf nº 9303-008.694[2], no qual se debateu, no âmbito da admissibilidade probatória, a teoria dos frutos da árvore envenenada e a teoria da descoberta inevitável.

O caso tratado no aludido precedente se pautava em acusação fiscal de interposição fraudulenta e subfaturamento, que ensejou a conversão da pena de perdimento em multa, bem como nas correlatas exigências fiscais. Segundo relatado no acórdão, a fiscalização acusou o real importador de montar uma cadeia fraudulenta, com o escopo de ser ocultado por interpostas pessoas fictícias (importadores formais) e, com isso, introduzir mercadorias no país se ocultando fraudulentamente.

Tal apuração fiscal, por seu turno, é fruto de uma investigação criminal (Operação Dilúvio) que foi deflagrada para apurar os eventuais ilícitos acima narrados, a qual teve início com escutas telefônicas autorizadas judicialmente, mas que teriam excedido o prazo legal para esse fim[3]. Na seara penal, houve a autorização do compartilhamento das provas até então produzidas, no inquérito, para a correlata fiscalização tributária.

Em paralelo à apuração fiscal, os representantes legais do real importador (sujeito passivo da exigência aduaneira e fiscal), impetraram habeas corpus no âmbito do Superior Tribunal de Justiça[4], com o fito de ver reconhecida a ilicitude daquelas escutas telefônicas renovadas mais de uma vez, bem como de todas as provas daí decorrentes, convocando, para tanto, a consagrada teoria do fruto da árvore envenenada (fruits of the poisonous tree)[5]. Como resultado desta medida processual, tais pessoas obtiveram decisão favorável aos seus interesses, i.e., reconhecendo a ilicitude de tais escutas telefônicas, bem como das provas daí derivadas.

Em 1ª instância criminal, instância própria para se debater questões de ordem criminal, tanto o Ministério Público Federal (dominus litis da ação penal), bem como o magistrado do caso, concluíram pela impossibilidade de se depurar quais provas decorrentes das escutas seriam lícitas, o que, por conseguinte, implicou o reconhecimento da ilicitude de todas as provas produzidas nesta seara e o correlato trancamento da ação penal.

Por óbvio, a discussão quanto à ilicitude das provas produzidas no âmbito penal contaminou o correlato processo administrativo tributário e, em sede recurso voluntário, o Carf (reverberando o entendimento da instância judicial) também reconheceu a ilicitude de todas as provas decorrentes por derivação[6]. Contra tal decisão, a União interpôs recurso especial para a CSRF, o qual foi admitido e deu ensejo ao precedente em análise, cuja ratio será agora tratada com mais vagar.

Conforme se observa do voto do Relator do caso, Conselheiro Andrada Márcio Canuto Natal, o fundamento para a reversão do julgamento proferido pela instância ordinária foi o disposto no art. 157 do Código de Processo Penal[7] e a chamada teoria da descoberta inevitável. Um dos pontos trazidos para sustentar essa posição, diz respeito à extensão do precedente do STJ para o caso em concreto (HC nº 142.045/PR).

Segundo o Relator do caso, a decisão do STJ não teria delimitado quais provas derivadas das escutas telefônicas seriam também fulminadas de ilicitude, o que ficou sob responsabilidade do juízo de 1ª instância e, aparentemente, dariam liberdade para uma ponderação a respeito por parte do Carf. Entretanto, é válido mencionar que o juízo de 1ª instância criminal expressamente reconheceu, na linha da manifestação externada pelo Parquet nos autos, que seria impossível segregar quais provas seriam lícitas e quais seriam ilícitas, manifestação judicial essa que não poderia ser contraposta, sob pena de ofensa à coisa julgada[8].

Outro ponto tratado em aludido precedente é que, no âmbito penal, as escutas telefônicas ilícitas teriam originado a expedição de mandados de busca e apreensão que, por sua vez, levou a apreensão de documentos probatórios da infração penal. Ainda segundo tal decisão, haveria aí uma diferença importante para o âmbito tributário, já que os Auditores da RFB não precisariam de ordem judicial para promover a busca e apreensão de documentos fiscais no estabelecimento do contribuinte fiscalizado. Logo, teriam autonomia para fiscalizar o contribuinte, o que atestaria a independência das provas produzidas nestes diferentes nichos do direito (penal e aduaneiro/tributário).

A priori, tal assertiva é irretorquível: de fato, há uma independência e, até mesmo, uma autonomia normativa para a produção de provas no âmbito de um procedimento fiscal vis a vis de um procedimento investigatório criminal. É de se ressaltar, todavia, que no caso concreto objeto de julgamento pelo Carf, a investigação fiscal só foi concluída a partir das provas produzidas no âmbito penal e partilhadas com a fiscalização tributária[9], em um contexto fático que se dissocia da simples questão de autonomia e independência da fiscalização na produção de provas. Em outros termos, a produção independente de provas, alhures citada como premissa do voto do Relator, não se perfez no caso em concreto.

Outro ponto que ostenta controvérsia relevante no citado voto, diz respeito à admissibilidade do recurso especial fazendário. Conforme se observa das considerações até aqui desenvolvidas, avaliar se uma prova é ou não derivada de prova ilícita redunda na inegável reanálise das circunstâncias fático-probatórias que circundam o caso, haja vista que seu objetivo é o de unificar a interpretação do órgão para a questão jurídica recorrida[10].

Ocorre que, a avaliação quanto à aplicabilidade ou não da teoria da descoberta inevitável não pode ficar em um plano estritamente hipotético ou, como prefere Lênio Streck, se limitar a um exercício de futurologia[11]. Trata-se de uma análise concreta, baseada na investigação e na comparação dos fatos e das provas que circundam as diferentes searas investigativas (fiscal/aduaneira e criminal).

Nesse sentido, caberia ao voto, de forma a complementar sua conclusão: (i) precisar, analiticamente, quais as provas produzidas pelo fisco de forma autônoma e antecipadamente às escutas telefônicas e correlatos mandados de busca e apreensão que, por sua vez, seriam suficientes para implicar a conclusão fiscal/aduaneira; (ii) vincular a satisfatividade de tais provas com a exigência aduaneira/fiscal perpetrada em concreto, sob pena da convocação da teoria da descoberta inevitável não passar de justificativa para suscitar uma decisão orientada pelo consequencialismo jurídico[12], externado na declaração de voto que acompanha o acórdão.

Todavia, outra forma de interpretar o precedente aqui analisado para conformá-lo a tal premissa de ordem processual (inadmissibilidade de reanálise fático-probatória pela CSRF), é de que o citado acórdão apenas fixou a tese quanto à independência probatória entre as instâncias fiscal e criminal, cabendo à turma ordinária do CARF avaliar se no particular caso em concreto é ou não possível segregar as provas produzidas daquelas tidas como ilícitas.

Com certeza tal discussão ainda dará margem a novos debates na CSRF, já que outros inúmeros processos desta mesma Operação Dilúvio foram objeto de julgamento por Turmas Ordinárias daquele Tribunal, sempre no sentido de reconhecer a ilicitude, por derivação, das demais provas produzidas no âmbito da fiscalização tributária. Logo, novos recursos especiais chegarão para a tal órgão e poderão suscitar novos debates e, também, o aprimoramento do precedente aqui analisado.

Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.


[1] Termo aqui empregado como o conjunto reiterado de decisões acerca de uma mesma quaestio juris.

[2] Assim ementado:

ATOS PRATICADOS MEDIANTE FRAUDE. COMPROVAÇÃO. PROVAS OBTIDAS POR MEIOS ILÍCITOS. PRINCÍPIO DOS FRUTOS DA ÁRVORE ENVENENADA. PRINCÍPIO DA DESCOBERTA INEVITÁVEL. PRINCÍPIO DA FONTE INDEPENDENTE. MITIGAÇÃO. POSSIBILIDADE.

Não serão consideradas ilícitas as provas derivadas de provas ilícitas, quando ficar demonstrado que elas poderiam ser obtidas por uma fonte independente, bastando, para tanto, que se desse andamento aos trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação fiscal.

[3] A lei n. 9.296/96, ao regular a parte final do inciso XII do art. 5º da CF, assim estabeleceu:

Art. 5° A decisão será fundamentada, sob pena de nulidade, indicando também a forma de execução da diligência, que não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova.

De forma muito singela, o que se discute a partir de tal dispositivo é se a renovação acima indicada é limitada a uma única vez ou se, em contrapartida, seria ela passível de renovações sucessivas, desde que pautadas em decisões fundamentadas e conformadas pela ideia de razoabilidade.

[4] HC n. 142.045/PR.

[5] Nos termos de histórica jurisprudência do STF (v.g., HC n. 69.912).

[6] Este foi o teor da ementa do acórdão CARF nº 3401-004.427, posteriormente reformado pela Câmara Superior de Recursos Fiscais (CSRF):

AUTO DE INFRAÇÃO. CARÊNCIA PROBATÓRIA. IMPROCEDÊNCIA.

Cabe à autoridade fiscal apresentar as provas dos fatos imputados em auto de infração, sendo a carência probatória ensejadora de improcedência da autuação. No caso em análise, expurgados os elementos derivados da chamada Operação Dilúvio (considerados como prova ilícita pelo Poder Judiciário), não resta substrato ao lançamento suficiente para manutenção da imputação fiscal.

Recurso de ofício negado e recurvo voluntário provido.

[7] Art. 157. São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais.

§1o São também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras.

§2o Considera-se fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites típicos e de praxe, próprios da investigação ou instrução criminal, seria capaz de conduzir ao fato objeto da prova.

§3o Preclusa a decisão de desentranhamento da prova declarada inadmissível, esta será inutilizada por decisão judicial, facultado às partes acompanhar o incidente.

[8] Que, no âmbito penal, embora guarde diferenças em relação à coisa julgada cível, não pode ser revista para prejudicar o acusado, sob pena de inconstitucionalidade.

[9] Para ser mais preciso, tratou-se de uma operação conjunta entre a Polícia Federal e a Receita Federal do Brasil, que implicou a apreensão de documentos e arquivos magnéticos, apreensão essa calcada em mandados de busca e apreensão por sua vez expedidos com base nas escutas telefônicas reconhecidas judicialmente como ilícitas.

[10] Art. 67. Compete à CSRF, por suas turmas, julgar recurso especial interposto contra decisão que der à legislação tributária interpretação divergente da que lhe tenha dado outra câmara, turma de câmara, turma especial ou a própria CSRF.

[11] https://www.conjur.com.br/2019-jul-25/tese-fonte-independente-carf-descoberta-inevitavel#_ftn2. Acessado em 21/01/2020.

[12] Consequencialismo esse que, s.m.j., fica explícito na declaração de voto do Conselheiro Demes Brito, in verbis:

Se faz necessário advertir, que o Relator Vencido (em se de Turma Ordinária do CARF) ter se concentrado em julgar matéria que lhe foi devolvida, tratando exclusivamente da legalidade do lançamento tributário, desnecessário e inútil suas conclusões a respeito de um processo criminal que não se confunde com o Fiscal, antes que se argumente qualquer tese a esse respeito, in caso foi materializado (sic) uma das maiores fraudes em detrimento do comércio exterior, em especial aos cofres públicos, partindo-se de uma premissa equivocada, o STJ resolve com seus argumentos absolver ou condenar os partícipes da fraude, em via reversa as condutas ilícitas ao erário também devem ser anuladas? (grifos e acréscimos nosso).

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    é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

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