Crime e castigo

Juiz das garantias: de te fabula narratur

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

19 de janeiro de 2020, 14h44

Ao entregar as notas semestrais na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, encontro um estudante de minha disciplina, “Argumentação Jurídica e Decisões Penais”, que me pergunta:  professor, como pode haver juiz criminal contrário ao juiz de garantias se é ele próprio que exercerá a função?

Fiquei pensativo. A pergunta pegou-me desprevenido.

Spacca

A questão da divergência de opiniões e pensamentos parece-me clara: é sempre mais seguro para a sociedade que pessoas divirjam do que concordem inteiramente.

Contudo, parece necessário decodificar o pensamento e entender a origem das posições, seja pela lógica formal interna dos argumentos, seja pelas condições gerais do ambiente onde a compreensão foi gerada.

Esse exercício de análise argumentativa parece calhar ao caso do juiz de garantias.

Saí da UnB desejando entender as razões que levam alguns magistrados a serem contrários  ao instituto.

O primeiro argumento que vejo utilizado é de ordem prática, conjugado com um argumento metafísico, vou chamá-lo assim. Juízes creem que os processos demorarão mais a serem julgados se houver mais de um magistrado no feito, com a adição pela lei de juízes de garantias. Isso vem agregado à ideia de que se alguém é a favor do juízo de garantia é porque tem proveito com o atraso e, logo, é a favor da corrupção. 
De logo é preciso perceber que o pensar brasileiro foi totalmente inundado por essa alegoria discursiva maniqueísta, muito viva em enlatados da televisão e do cinema, e muito comum na retórica política. Tudo se explica pela luta do bem contra o mal: ou está comigo ou contra mim; se não apoia o grande líder está contra ele… em variados momentos históricos esse pobre argumento já foi usado: de Trujillo a Stalin, de Fulgencio Batista a Pinochet. Fidel também o utilizou. Chaves, idem. Ultimamente Erdogan e Trump o têm usado muito.

Não vou falar de Göebbels. Todos sabem!

É apenas uma maneira de rotular o outro, desqualificá-lo para o debate, minar a oposição do divergente e não enfrentar a essência do argumento. 

A racionalidade e a modernidade exigem não levar a sério a rotulagem como argumento no debate, até porque Mandela não era contra a prosperidade sul-africana quando criticava o Apartheid e nem dom Hélder Câmara era a favor da corrupção quando criticava prisões injustas.

Como esse maniqueísmo cresce nas redes sociais — e Umberto Eco está certo quando afirma que “a Internet deu voz aos imbecis” — é até possível aceitar esse tipo de justificativa no senso comum, jamais quando provém de magistrados.

Afastada a rotulagem, logo será preciso verificar a correção da premissa: o juízo de garantias fará com que o processo verdadeiramente atrase?

A lei publicada estabelece que haverá um juiz — denominado juiz de garantias — antes do oferecimento da denúncia e outro, o juiz do feito, para a fase processual. Isso implica dizer que passamos a ter um juiz para cautelares preparatórias e medidas assecuratórias e outro juiz para atuar do recebimento da denúncia em diante. 

Não há acréscimo de funções, não há trabalho novo. Há apenas utilização de juízes diferentes em um mesmo caso: um no inquérito e outro após o recebimento da denúncia. Logo, não é possível argumentar no sentido da demora por acréscimo de trabalho. O trabalho segue o mesmo, agora subdividido. 

Resta verificar se a busca deste outro magistrado para atuar no feito acarretaria demora, por inexistência do segundo juiz. 
Obviamente o problema não se põe em comarcas ou subseções onde houver mais de um juiz. Não há razão para o argumento na medida em que o juiz A — que antes tratava de seus processos criminais desde a fase de inquérito — agora trata no período investigativo dos processos do juiz B, que, inversamente, cuidará das cautelares e assecuratórias do juiz A. Ambos continuarão trabalhando no mesmo fórum e com a mesma carga de trabalho.

Resta saber se haverá demora na tramitação dos casos em comarcas e subseções de um só juiz.

Neste caso, o que se põe é o juiz de outra comarca ou subseção vizinha atuar nas cautelares e assecuratórias de outra unidade. Também se cuida aqui de um juiz — ou diversos — agirem como juízes de garantia de uma região judiciária ou circunscrição.

Qual a dificuldade de compreensão?

Quem propõe cautelares investigativas é o Ministério Público. Quem oferece representação em tese é a Polícia. Alguma dificuldade em fazê-lo numa central de inquéritos ou no juízo da subseção ou comarca vizinha? Em que medida o deslocamento ou a propositura diferida daria causa ao atraso ou adiamento do inquérito?

Vejo que não se trata de ato processual instrutório a ser praticado pelo juiz diferido, mas as cautelares e assecuratórias que são pré-processuais e dizem respeito à coleta de provas ou segurança do juízo. Isso em nada acarretará demora na instauração dos processos crime futuros, que correrão normalmente perante o juízo comum.

De outro lanço, duas outras premissas me parece devam ser repensadas.

Primeiramente, nas comarcas ou subseções pequenas há algum volume de medidas cautelares? Ou buscas e apreensões, prisões preventivas ou temporárias e quebras de sigilo são ali uma raridade?

Em segundo lugar, parte das medidas como bloqueio de bens e quebras de sigilo, sequestro e arresto atingem o passado, o que não traria qualquer prejuízo se decretadas não imediatamente!

A realidade demonstra a pequenez quantitativa de medidas dessa natureza em pequenas unidades jurisdicionais e a ausência de dificuldade no seu processamento perante outro juízo. O prejuízo parece ser virtual e realisticamente inexistente.

Por outro lado, o Processo Judicial Eletrônico (PJE) investimento na estrutura judiciária na casa de bilhão de reais, existe exatamente para garantir a virtualidade da atuação processual — do juiz e das partes — o que eliminaria totalmente a mínima demora na apreciação do pedido cautelar.

Ainda, quando se trata de competência de Tribunais — salvo o caso de capitais sede — não só as cautelares mas o processo inteiro já tramita em outro lugar, e exigem-se deslocamentos. Nunca se usou o argumento de que a competência funcional, por esta razão, acarreta demora na conclusão do feito.

Assim, não vejo como prosperar o argumento de parte dos juízes no sentido de que a demora da prestação jurisdicional seria consequência da adoção do juízo de garantias.

O segundo argumento que vejo utilizado por magistrados é de ordem normativa: o juiz de garantias ou juízo de garantias seria inconstitucional por ofender o juiz natural.

Pois bem, primeira pergunta necessária: o que é juiz natural?

Segundo consenso doutrinário, o juiz natural é o juiz com jurisdição e com competência definido previamente por lei.

Isso implica dizer que se a lei definiu a competência e jurisdição de um magistrado antes do fato que se vai processar e julgar, ele é o juiz natural!

Mas não foi exatamente isso que a lei fez? Definiu que um juiz julgará seus feitos mas não participará das decisões cautelares do processo, e definiu que outro juiz participará das decisões cautelares e assecuratórias mas não processará o feito!

Em que essa lei ofenderia a ideia de juiz prévio, com jurisdição e competência?

Há quem afirme que a existência de dois juízes no mesmo feito ofende o juiz natural, e essa seria a razão da inconstitucionalidade.

Ao enfrentar o argumento a princípio é necessário ver que em nenhum lugar da Constituição e em nenhum ponto da Doutrina relevante ou periférica está dito que o juiz natural é “um só juiz”. Nos Tribunais são, inclusive, vários os magistrados.

A obrigatoriedade constitucional de um só juiz para as fases pré-processual e processual simplesmente não existe!

A reserva de lei permite que o Parlamento faça a escolha que lhe aprouver sem que isso macule qualquer trecho do texto constitucional simplesmente porque a exigência não existe!

Demais disso, sequer se trata de dois juízes no mesmo processo, mas um na fase pré-processual e outro na fase processual.

A lei estabeleceu que o juiz natural do inquérito não é o juiz natural do processo! Em nada — rigorosamente nada — a opção da lei ofende a Constituição!

O terceiro argumento que vejo usado é o argumento da garantia constitucional do juiz inamovível. Por derivação, o juízo de
garantias alteraria essa garantia constitucional.

Parece-me um equívoco o argumento.

A criação da diferenciação funcional chamada de juiz de garantias não representa qualquer ofensa à prerrogativa do juiz de não ver alterada a sua lotação.

De fato, estabelecer um juiz de garantias é menos até que especializar uma vara, instaurar novas circunscrições ou modificar-lhe dimensão territorial. Nos casos de maior alteração da função, as Cortes sempre entenderam que não há modificação da prerrogativa do magistrado de não ser retirado dos seus processos.

Se o Tribunal pode especializar uma vara por que razão a lei não poderia criar dualidade de juízes — um com atuação pré-processual e o outro com função processual? Se em alguns Estados os Tribunais podem criar varas com competência para medidas cautelares e tramitação de inquéritos — e designar juízes somente para cautelares – por qual razão a lei não poderia fazê-lo abstratamente?

Ante a ausência de um argumento dogmático que me convencesse de que o juiz de garantias é indevido no modelo brasileiro, passei a refletir sobre outras razões explícitas. A primeira de que me recordei diz respeito ao custo! Haveria um acréscimo de despesa com a medida.
Logo me vem à mente o equívoco de misturarem-se espécies de argumentos distintos: não se insere no rol de argumentos jurídicos – principiológicos ou dogmáticos — o custo da instalação!

A opção de organização processual do legislador não se insere no âmbito daquelas que podem ser desconhecidas por ausência de recurso.

No mais, que validade tem esse argumento vindo de nós mesmos, que recebemos Auxílio Moradia, Gratificação de Acúmulo, adicional de 1/3 de férias em férias de 60 (sessenta) dias e ainda aguardamos diferença de exercícios anteriores de Parcela Autónoma de Equivalência e Auxílio Alimentação? Isso sem citar o relevante número de auxílios que grassam em muitos Estados. Se lutamos por esses acréscimos, não parece razoável que só nos preocupemos com o orçamento do Judiciário no momento de criar o juiz de garantias.

Se o custo é um argumento, por que não é utilizado quando a discussão gira em torno de vencimentos? Isso é assim porque não se trata de um argumento, mas de uma desculpa!

Demais disso, não há aumento de despesa porque não há aumento de trabalho, e também por que há processo eletrônico!

A utilização do PJE faz com que o juiz de garantias, aquele que cuida das medidas cautelares e assecuratórias, não seja o mesmo que processa o feito e possa estar em outro lugar físico, judicando remotamente.

Não parece, portanto, razoável que haja criação de cargos novos ou seja criado novo serviço remunerado que implique despesas.

E o custo com deslocamento de processos?

Argumento retórico também me parece.

Se observarmos malote eletrônico, e-mail, PJE e tantos meios de comunicação virtuais, como entender pela necessidade de algum gasto com correio físico ou deslocamento de pessoas a macular o direito subjetivo ao Juiz de Garantias? 

Também não me pareceu razoável!

Ainda pensando no questionamento do estudante, dei por mim a tentar descobrir o moto condutor não confessado de parte dos meus colegas. 
Li na internet dois argumentos: juiz de garantias é uma desmoralização do juiz criminal brasileiro e juiz de garantias é um movimento do legislador contra os juízes que combatem a corrupção!

Em primeiro convém dizer que justificativa não se confunde com argumento para afirmar ou negar a viabilidade de algo.

Boas coisas podem ser feitas por maus motivos e boas intenções também criam monstros! Logo, as razões metajurídicas que levaram o legislador a aprovar a norma não têm o condão de lhe dotar de boa aplicação ou má realização!

São planos distintos!

O que importa é perceber se a existência do juiz de garantias tem uma razão de ser na dogmática aplicada à resolução imparcial de conflitos, pouco importando se a motivação foi boa ou má!

Isso deita por terra o segundo argumento, que não me parece esteja no mesmo plano argumentativo dos anteriores.

No mais, também é preciso perceber que a valoração positiva ou negativa da norma também não interfere na sua performance. A análise da dogmática aplicada ao caso não depende do que a existência do dispositivo significa para quem aplica. Se a sociedade valorizará mais o juiz que trata de cautelares e do processo como um todo, ou se valorizará menos o magistrado que judicar em apenas uma fase é absolutamente irrelevante para compreensão dogmática do instituto! 
Mas aí, sim, localiza-se a razão da revolta de vários magistrados!

É papável a compreensão de que o juiz de garantias reduz a auto consideração de si próprio que parte dos magistrados possui! Mitiga o juiz herói, opera a redução do juiz imbuído de complexo Marvel, e admite a compreensão de que o magistrado – que se vê perfeito e indefectível — pode ser parcial, como todo ser humano, e portanto não deve atuar na coleta de provas pré processuais e, ao mesmo tempo, atuar na decisão do caso!

O juiz de garantias demonstra a falácia do juiz combatente e reforça o perfil do juiz que não é sócio da acusação, não é parceiro do Ministério Público e não desequilibra a relação processual.

Ainda pensando na pergunta do meu aluno, vejo um último argumento sentimental e equivocado de outro colega magistrado: “o juiz de garantias é um juiz parcial apenas interessado em absolver o réu!”
A frase diz mais do perfil do juiz que se opõe ao juiz de garantias do que afirma algo contra o instituto.

Realmente, a introdução do juízo de garantias relaciona-se com o juiz parcial, imbuído do dever do combate e não da aplicação da lei.

De te fabula narratur!

É de ti que a fábula narra!

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    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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