Diário de Classe

A difícil construção da cidadania no Brasil

Autor

18 de janeiro de 2020, 8h00

Em A guerra do fim do mundo, de Mario Vargas Llosa, o caráter autoritário da modernização do Estado brasileiro foi demonstrado a partir de uma das maiores tragédias ocorridas após a proclamação da República, que foi a guerra de Canudos. Este movimento messiânico mal compreendido pela elite pensante da época, formado por pessoas que viviam à margem da sociedade e que sofriam cotidianamente com a seca e com a violência, ora do policial (os volantes), ora do banditismo local (o cangaço e os jagunços a serviço do latifúndio), foi duramente sufocado pelo Exército brasileiro.

A partir dessa tragédia, o romance retrata alguns elementos fundamentais na organização da jovem República e na implementação de um projeto autoritário de construção da nação, percebidos no idealismo militar do Coronel Moreira Cesar e, também, na presença do poder tradicional e personalista de personagens como o Barão de Canabrava, líder dos monarquistas, e de Epaminondas Gonçalves, principal representante do partido republicano.

Se no primeiro caso temos um representante do projeto positivista de uma ditadura militar — tanto que Moreira Cesar foi um grande aliado de Floriano Peixoto —, os dois últimos personagens representam o velho estilo com que a elite brasileira sempre sequestrou a agenda política para tratar de seus assuntos privados como questões pertencentes à esfera pública. Foi nesse sentido que o Barão de Canabrava e Epaminondas Gonçalves, antigos adversários políticos, procuraram organizar uma “nova” ordem política na Bahia após o conflito com Canudos. Nas palavras do primeiro, “[…] É hora de fazer as pazes, Epaminondas. Esqueça as divergências jacobinas […]. Assuma o governo e defendamos juntos, nesta hecatombe, a ordem civil” (LLOSA, 2008, p. 378).

A predominância desse modelo personalista e tradicional de dominação política, somada com a atividade constante do Exército nos assuntos e nas disputas políticas, ajuda a explicar os fundamentos autoritários da construção do Estado nacional brasileiro. Sua organização está baseada na marginalização e repressão de setores significativos da sociedade, que sempre foram impedidos de participar efetivamente dos debates e das discussões que influenciam as principais decisões políticas. É uma maneira de excluir a sociedade civil de qualquer participação mais destacada dentro do sistema político.

Essa concepção autoritária de modernização do Estado segue o mesmo sentido do que foi propugnado por autores importantes do pensamento político brasileiro, como são os casos de Oliveira Viana e Francisco Campos. Ambos depositavam toda sua confiança numa espécie de Estado demiurgo que, ao se sobrepor à sociedade, seria o único responsável pela construção da nação. Ou seja, a recepção de padrões mais modernos de organização social, presentes em países pertencentes ao centro do capitalismo, não deveria vir acompanhada de reformas democráticas. 

Isso ajuda a compreender como se deu a construção da cidadania no Brasil. O caráter estatalista da afirmação histórica dos direitos fundamentais, bem observado por José Murilo de Carvalho, fez com que esses direitos fossem percebidos muito mais como concessão do Estado do que propriamente como uma conquista política alcançada por meio das lutas sociais (CARVALHO, 2002).  

A análise de Murilo de Carvalho jogou luz na problemática construção da cidadania em um país marcado pela modernização autoritária. De acordo com ele, o Brasil primeiramente recepcionou alguns direitos sociais em plena ditadura Vargas, como foi o caso do reconhecimento dos direitos trabalhistas; depois, o surgimento dos direitos políticos, em momentos marcados por grave instabilidade institucional, fez com que a participação política ficasse marcada por um grave déficit democrático; por fim, a dificuldade em fazer com que os direitos civis alcançassem maior eficácia perante o Estado sempre foi um enorme problema para a sociedade brasileira, principalmente para os setores marginalizados que sofrem com a violência policial em seu cotidiano (CARVALHO, 2002).

A presença desses fatores dificultou a construção da cidadania enquanto mecanismo de inclusão social e favoreceu a presença de subintegrados e sobreintegrados na sociedade brasileira (NEVES, 2008). A partir dessa situação, os direitos civis, políticos e sociais passaram a depender de uma aplicação discricionária do sistema legal, que ora serve para proteger um setor minoritário, ora é esquecido para uma parte significativa da comunidade.

Nesse sentido, um dos maiores obstáculos à concretização do Estado Democrático de Direito, segundo Marcelo Neves, é a generalização das relações de subintegração e sobreintegração. Segundo ele, trata-se da falta de direitos e deveres partilhados reciprocamente, numa situação pela qual as pessoas não possuem condições reais para fazer valer seus direitos fundamentais, mas, por outro lado, estão completamente incluídas nos deveres e responsabilidades impostos pelo aparelho coercitivo do Estado. Os privilegiados são titulares de direitos, poderes e prerrogativas, mas, ao mesmo tempo, não se subordinam à atividade punitiva do Estado quando os assuntos são deveres e responsabilidades. Na verdade, o caso do Brasil está enquadrado numa situação de modernidade periférica que impede o surgimento de uma esfera pública fundada na universalização da cidadania (NEVES, 2008, pp. 244-250).

Isso corrobora a análise que Florestan Fernandes fez sobre a ausência de um caráter democrático na revolução burguesa brasileira, que, após romper com o estatuto colonial, não conseguiu superar diversos aspectos presentes na dominação senhorial e, por esse motivo, acabou por gerar um modelo dependente de desenvolvimento capitalista (FERNANDES, 2006). De acordo com ele, o peso da escravidão e do poder exercido pela casa-grande atravessou o processo de independência e, por meio de novas roupagens, não menos violentas e segregacionistas que aquelas que estavam presentes no Brasil colônia, continuam a deixar de fora uma camada significativa da população brasileira, formada majoritariamente por negros e pobres que não têm acesso aos direitos de cidadania. Assim, a recepção de uma ordem social competitiva veio acompanhada por um Estado autoritário avesso a qualquer mecanismo de limitação do poder político.

A permanência de formas tradicionais de dominação numa ordem social que, em tese, deveria representar um momento de ruptura com a estrutura política anterior, também foi apresentada por outros nomes do pensamento social brasileiro, como é o caso de Raymundo Faoro, em seu Os donos do poder. O seu longo ensaio, que começa na Revolução de Avis, em Portugal, e depois atravessa todo o período colonial e o Império, até chegar à República e terminar em 1930, na ditadura Vargas, é uma tese que demonstra a longa permanência de uma dominação tradicional no Brasil, por meio de um estamento patrimonialista que se coloca acima das classes sociais e de instituições políticas instrumentalizadas por pessoas que se arrogam na condição de donos do poder. Ou seja, os assuntos do Estado são vistos como questões pertencentes à esfera privada, causando a deturpação da ordem constitucional.

A partir dos elementos apresentados acima é possível compreender a difícil relação entre direito e política ao longo da história brasileira. Na verdade, a história constitucional do Brasil foi, na maioria dos casos, a história do poder político arbitrário se sobrepondo ao direito. Aqui, a maior parte dos mecanismos jurídicos, criados no contexto estadunidense e no continente europeu, não foi capaz de evitar o autoritarismo exercido pelo governo central, que muitas vezes procurou incorporar, apenas pro forma, os diversos institutos elaborados pelo constitucionalismo moderno. De acordo com Faoro, “mandar, e não governar, será o alvo — mando do homem sobre o homem, do poderoso sobre o fraco, e não o institucionalizado comando, que impõe, entre o súdito e a autoridade, o respeito a direitos superiores ao jogo do poder” (FAORO, 2001, p. 357).

Essa situação explica a dificuldade do Brasil, ao longo de sua história republicana, para organizar um estado de direito com condição de superar o exercício arbitrário e personalista do poder. Os constantes golpes de Estado, com auxílio das Forças Armadas e apoio de grupos empresariais, permitiram que a relação entre direito e política caísse numa situação de grave prejuízo para o primeiro, favorecendo o mandonismo sobre a sociedade civil.

Numa democracia, o direito precisa alcançar um grau de autonomia em relação à política para que a Constituição não seja solapada pelos agentes que atuam dentro da estrutura estatal, conforme nos ensina Lenio Streck. E esse grau de autonomia deve envolver o funcionamento institucional de todos os poderes, ao exigir de seus agentes uma maior responsabilidade política no desempenho de suas funções públicas. Se a modernização do Estado nacional, levada a cabo durante os regimes ditatoriais — seja no período Vargas, seja durante a ditadura civil-militar de 1964 —, foi capaz de criar as universidades, ampliar o investimento em pesquisa, reconhecer uma série de direitos sociais, industrializar o país e recepcionar uma ordem social competitiva; por outro lado, é preciso deixar claro que esse modelo também sufoca a sociedade civil e impede que instituições políticas alcancem um maior amadurecimento democrático, capaz de permitir a consolidação da cidadania.

Referências bibliográficas
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, 2006.

LLOSA, Mário Vargas. A guerra do fim do mundo. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2008.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!