Ambiente jurídico

Bens culturais não podem ser atacados em caso de guerra

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

18 de janeiro de 2020, 8h00

Spacca
Ao analisar a longa trajetória da humanidade percebe-se que era muito comum, durante as antigas guerras, a destruição ou o saque de bens culturais situados em território inimigo como forma de demonstração de poderio e, sobretudo, para solapar as referências identitárias (templos, estátuas, monumentos, locais sagrados etc.) do povo adversário, aniquilando os bens comuns de maior relevância para o opoente, em humilhante estratégia de subjugação.

No século XIX o Direito  começou a esboçar as primeiras regras sobre a proteção dos bens culturais em casos de conflitos armados, sendo merecedor de destaque o texto do  chamado “Código Lieber”, elaborado pelo professor Francis Lieber, a pedido de Abraham Lincoln, em 1863, denominado originalmente de   Instructions for the government of armies of the United States in the field (Instruções para o governo do exército dos Estados Unidos em campo), idealizado  para solo americano, voltado a normatizar conflitos entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. Segundo o art. 35 do referido Código: “Obras de arte clássicas, bibliotecas, coleções científicas ou instrumentos precisos, por exemplo, telescópios astronômicos, assim como hospitais devem ser protegidos contra todos os danos possíveis, mesmo quando em áreas fortificadas que estão sendo cercadas ou bombardeadas”.

Referido texto normativo, por seu pioneirismo, teve forte influência nos documentos internacionais que surgiram nos anos seguintes versando o assunto, a exemplo da Declaração de Bruxelas (1874) e da 1ª. Convenção de Haia (1899), sendo que esta última estabeleceu o princípio da neutralidade dos bens culturais em caso de guerra.

Em 15 de abril de 1935 foi assinado na Casa Branca, em Washington, nos EUA, o pacto de proteção a instituições artísticas, científicas e monumentos históricos (Pacto de Roerich), que estabelece que os monumentos históricos, museus, instituições científicas, artísticas, educacionais e culturais serão considerados neutros e, como tal, serão respeitados e protegidos pelos beligerantes. O mesmo respeito e proteção serão devidos aos monumentos históricos, museus, instituições científicas, artísticas, educacionais e culturais em tempo de guerra, como em tempo de paz (art. 1º.)

No período pós Segunda Guerra o tema voltou à pauta das discussões internacionais e, em 1954, foi elaborada a Convenção para a Proteção de Bens Culturais, em caso de conflito armado, assinada em 14 de maio de 1954, na Conferência Internacional reunida em Haia, de 21 de abril a 12 de maio daquele ano.  A Convenção reconheceu que os bens culturais haviam sofrido graves danos no decorrer dos últimos conflitos armados e que, em consequência do aperfeiçoamento de técnica de guerra, eles estavam o cada vez mais ameaçados de destruição. Aduziu que os danos causados aos bens culturais pertencentes a qualquer povo constituem um prejuízo ao patrimônio cultural de toda a humanidade, dado que cada povo traz a sua própria contribuição à cultura mundial. Por isso, considerando que a conservação do patrimônio cultural tem uma grande importância para todos os povos do mundo, inspirando-se nos princípios que se referem à proteção de bens culturais em caso de conflito armado, determinados nas Convenções de Haia de 1899 e de 1907 e no Pacto de Washington de 15 de abril de 1935, as partes contratantes estabeleceram, entre outras, as seguintes obrigações:

  • Respeitar os bens culturais situados, tanto em seu próprio território, quanto no território das outras partes, abstendo-se de utilizar esses bens, seus sistemas de proteção e suas redondezas para fins que possam expor tais bens à destruição ou deterioração em casos de conflito armado e privando-se de todo ato de hostilidade para com eles.
  • Proibir, impedir e fazer cessar, quando necessário, qualquer ato de roubo, de pilhagem e de apropriação indevida de bens culturais, qualquer que seja a forma de que venham revertidos esses atos, e, igualmente, todos os atos de vandalismo para com os bens mencionados.
  • Não requisitar bens culturais móveis situado no território de outra parte, bem como não tomar medidas de represália contra os bens culturais.
  • Prestar apoio às autoridades nacionais competentes do território ocupado, a fim de assegurar a salvaguarda e a conservação dos bens culturais ali existentes.

A Convenção de 1954 constituiu o mais importante e incisivo documento internacional sobre o dever de respeito mútuo ao patrimônio cultural existente no território inimigo em casos de conflitos armados, reconhecendo, com precisão, que tais bens são de interesse de toda a humanidade e não se constituem simples coisas de propriedade do circunstancial adversário. Ou seja, eles constituem bens de titularidade difusa que devem ser respeitados em benefício do interesse planetário comum, das presentes e futuras gerações.

Nesse sentido, não se admite, em qualquer hipótese, que bens culturais (móveis ou imóveis, tais como os monumentos de arquitetura, de arte ou de história, religiosos ou seculares, os lugares de interesse arqueológico, conjuntos arquitetônicos de valor histórico ou artístico, obras de arte, manuscritos, livros, coleções científicas, bibliográficas, arquivísticas, museus, exposições e centros culturais, por exemplo) sejam alvo de ataques inimigos, sob pena de violação a normas basilares do Direito Internacional e, inclusive, caracterização de crime de guerra (art. 8º, 2, IV e IX, do Estatuto de Roma), passível de julgamento pelo Tribunal Penal Internacional.

Ignorar tais mandamentos, cujas origens remontam ao século XIX, constitui ato de clamorosa ilicitude, cuja execução, via de regra, se dá por grupos terroristas que não conferem o menor respeito a interesses que estejam alijados de seus propósitos autoritários, egoísticos e extremistas.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com a destruição das estátuas de Bamiyan pelo Taliban, no Afeganistão, em 2000, e com o sítio arqueológico de Palmyra, pelo denominado Estado Islâmico, na Síria, em 2017.

Vale ressaltar que há precedente do Tribunal Penal Internacional sobre crimes contra o patrimônio cultural da humanidade em razão de ataques contra bens culturais. No ano de 2016 foi condenado a nove anos de prisão o extremista do Mali, Ahmaa Al-Faqi Al-Mahdi, integrante de grupo vinculado à Al-Qaeda, por ter destruído monumentos históricos e religiosos na lendária cidade de Timbuktu.

Como marco normativo mais recente, insta salientar que em 24 de março de 2017 o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas editou a Resolução nº 2347,  pondo em relevo que a destruição ilícita do patrimônio cultural em caso de conflitos armados alimentam e exacerbam as tensões e enfrentamentos, deliberando, entre outras coisas, que a ONU  deplora e condena a destruição ilícita do patrimônio cultural, incluindo lugares e objetos religiosos, bem como o saque e o contrabando de bens culturais procedentes de jazidas arqueológicas, museus, bibliotecas e arquivos, em particular por parte de grupos terroristas.

Ainda segundo a Resolução, é enfatizado que dirigir ataques ilícitos contra lugares e edifícios dedicados à religião, educação, artes, ciências, entidades de beneficência, ou contra monumentos históricos, pode constituir crime de guerra com possibilidade de intervenção do Direito Internacional e que os autores desses ataques devem ser levados à Justiça para fins de responsabilização.

Ante todo o contexto acima exposto, constitui motivo de perplexidade a recente notícia veiculada em âmbito mundial de que os Estados Unidos da América poderiam atacar, deliberadamente, diversos bens integrantes do patrimônio cultural situados em território iraniano, em razão das divergências atualmente existentes entre tais países.

Ora, no plano normativo internacional, mesmo em casos de guerra declarada, restam superados os tempos da barbárie e da supremacia da lei do mais forte no que pertine aos bens culturais situados no território das partes em conflito.

 Há um interesse maior a respeito do patrimônio cultural, que não é pertencente a quaisquer dos contendores, pois ele toca a titulares anônimos, sem rosto, incluindo gerações que ainda estão por chegar.

Respeitar os mandamentos normativos acima expostos é dever ético e legal basilar de todo e qualquer país.

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