Limite penal

Juiz das garantias e Direito intertemporal: onde a decisão do STF resvala

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

17 de janeiro de 2020, 8h03

Spacca
1. Sucessão de Lei Processual no tempo. Com a prorrogação da entrada em vigor do Juiz das Garantias, por até 180 dias (os Tribunais podem implementar antes), a contar de 15.01.2020 (Adin 6298), surgirão as seguintes situações: a) ações penais não iniciadas, aplica-se o Juiz das Garantias; b) ações penais findas, nada se modifica; c) ações penais já iniciadas sem a cisão entre Juiz das Garantias e Juiz de Julgamento, como se responde? Nos limites da coluna falaremos somente do item (iv), “a”, da decisão, já que a prorrogação auxilia na estruturação dos Tribunais. Voltaremos a falar de outras questões no futuro.

2. O efeito do Juiz das Garantias, avanço democrático reconhecido inclusive pela decisão que postergou a implementação, modifica a estrutura funcional do processo penal. Cria nova hipótese de “competência funcional”, regra inderrogável, cuja inobservância é causa de nulidade absoluta. A pergunta a ser feita é: aplica-se às ações penais em tramitação, que devem ser adequadas ou somente às instauradas no futuro, depois da efetiva vigência? A decisão liminar do Min. Toffoli, nesta parte, ao modular os efeitos intertemporais, destoa quer da doutrina abalizada, quer dos julgados anteriores do STF.

3. Constou expressamente da decisão, após a dilação da vigência de até 180 dias (na linha da LC 95/98, art. 8º, § 1º), dos artigos 3-B; 3-C; 3-D; 3-F, do CPP, inseridos pela Lei 13.964/19:

(iv) fixarem-se as seguintes regras de transição:

(a) no tocante às ações penais que já tiverem sido instauradas no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), a eficácia da lei não acarretará qualquer modificação do juízo competente. O fato de o juiz da causa ter atuado na fase investigativa não implicará seu automático impedimento;

(b) quanto às investigações que estiverem em curso no momento da efetiva implementação do juiz das garantias pelos tribunais (ou quando esgotado o prazo máximo de 180 dias), o juiz da investigação tornar-se-á o juiz das garantias do caso específico. Nessa hipótese, cessada a competência do juiz das garantias, com o recebimento da denúncia ou queixa, o processo será enviado ao juiz competente para a instrução e o julgamento da causa”.

4. A reforma mais uma vez parcial, não trouxe regras de transição, criadas pelo Min, Toffoli, ousamos dizer, em desconformidade ao direito intertemporal. Por aplicação analógica (CPP, art. 2º), cabe invocar o Código de Processo Civil de 2015 (arts. 14, 1.046, §§ 1º e 5º, 1.047, 1.054, 1.056 e 1.057), segundo a qual se adota, desde longa tradição, a lógica do isolamento dos atos processuais.

5. Já é clássica a lição de Galeno Lacerda[1], baseada em Paul Roubier, no sentido de que não se confundir aplicação imediata da lei com irretroatividade: “Como o processo compreende uma sequência complexa de atos que se projetam no tempo, preordenados para um fim, que é a sentença, deve ele ser considerado, em termos de direito transitório, como um fato jurídico complexo e pendente, sobre o qual a normatividade inovadora há de incidir”. O que importa é o momento da constituição do ato processual, a saber, a superação de momento processual. Isso porque embora não tenha efeitos sobre atos processuais passados, ou seja, não se poderia exigir que uma parte tivesse que observar regra não vigente (precisaria adivinhar o futuro), no campo do Processo Penal (foro de garantias) não há direito processual adquirido do Estado em manter normas restritivas de Direitos Humanos e de Direitos Fundamentais, como bem pontua Luis Lanfredi[2]. Assim, a nova lei 13.964/19 somente vale para o futuro e, no futuro, quando da Audiência de Instrução e Julgamento, há reconhecido o direito de não ser julgado pelo mesmo magistrado que atuou na nova fase das garantias. O acusado adquiriu o direito subjetivo de ser julgado por um Juiz não contaminado/poluído pelos atos praticados durante a Investigação Preliminar, sob pena de se dar ultratividade à regime de julgamento incompatível com a cisão funcional. Por isso o equívoco da regra de transição (iv) item “a”.

6. Assim é que a regra do art. 3º, do CPP, (princípio do tempus regit actum) não pode invalidar etapa processual produzida em sua conformidade, assim como não pode validar ato processual não realizado/finalizado no tempo de sua vigência, como aponta a regra de transição da medida cautelar deferida (item “iv”, “a”). Em resumo: se pendente o ato de instrução e julgamento, a aplicabilidade será imediata, com a anulação dos atos realizados e a remessa ao Juiz de Julgamento, sem contato com os atos anteriores. O isolamento válido somente acontece nos casos de instruções finalizadas. Dito de outra forma: não se pode dar efeito retroativo para anular instruções finalizadas conforme a regra em vigor, ao mesmo tempo em que não se pode validar instruções pendentes, a saber, não finalizadas, porque o ato – audiência de instrução e julgamento – não se findou. Negar eficácia imediata a Lei 13.964/19, neste caso, seria apagar a garantia do julgamento justo, mesmo estando em vigência novo regramento. Enfim, não há um direito processual adquirido ao Juiz contaminado.

7. O próprio Supremo, analisando as reformas processuais anteriores, assentou no RHC 115.563 (Min. Luiz Fux): 1. A lei processual possui aplicabilidade imediata, nos termos do artigo 2º do CPP (‘Art. 2º. A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior’). 2. A Lei 11.689/08 é aplicada aos processos futuros e também aos processos em curso, ainda que estes tenham como objeto fato criminoso anterior ao início da vigência da própria Lei 11.689/09 ou, ainda, da Lei n. 9.271/96, que, alterando artigo 366 do CPP, estabeleceu a suspensão do processo e do curso do prazo prescricional em relação ao réu que, citado por edital, não compareceu em juízo. A nova norma processual tem aplicação imediata, preservando-se os atos praticados ao tempo da lei anterior (‘tempus regit actum’). Precedentes: HC 113.723, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe de 04.12.13, e RHC 108.070, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJe de 05.10.12).” Na mesma lógica, o HC 124.783 (Min. Celso de Melo): “Vale registrar que a colenda Segunda Turma desta Corte, ao julgar o RE 752.988-AgR/SP, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, destacou a natureza processual da Lei nº 11.689/2008, no ponto em que derrogou os arts. 607 e 608 do Código de Processo Penal, que disciplinavam o protesto por novo júri, reconhecendo, em razão desse entendimento, a eficácia e a aplicabilidade imediatas desse novo diploma legislativo aos procedimentos penais em curso. Na ocasião, esta Suprema Corte deixou assentado que o tema em referência, considerada a sucessão de leis processuais no tempo, rege-se pelo critério que considera dominante, em matéria recursal, o ordenamento positivo vigente no momento em que publicada a sentença ou decisão, em face do postulado segundo o qual “tempus regit actum

8. Em face da existência de ato processual pendente, será necessário o chamamento à ordem de todos os processos penais em tramitação, porque a lógica de autos de processo continuado, em etapas sucessivas e formalizadas em autos acabou-se, isto é, não haverá mais autos de início (denúncia, depois inquérito ou flagrante, depois recebimento e processamento). A partir de agora o procedimento será basicamente oral e produzido em audiência de instrução e julgamento, com relevo às alegações finais. Nenhum dos jogadores terá os autos para chamar de seu. Em relação à aplicação imediata do Juiz das Garantias previsto na Lei 13.964/19 e respeitando a lógica do direito intertemporal, isolados os atos válidos conforme a lei processual então em vigor, podemos apontar os seguintes cenários diante da respectiva fase:

a) Investigações sem denúncia/queixa: Juiz de Garantias deve: (i) ser notificado da instauração da investigação, andamento, prazos e arquivamento, instaurando procedimento de acompanhamento; (ii) analisar os pedidos cautelares formulados; (iii) conhecer do habeas corpus impetrado contra atos de investigação, inclusive realizados pelo Ministério Público; (iv) efetivar o controle dos direitos dos investigados; (v) processar até a fase de recebimento da denúncia/queixa, preparando os autos a serem remetidos ao Juiz de Julgamento, acautelando os demais (ficam à disposição das partes/julgadores).

b) Ações Penais em Curso: Juiz de Garantias deve:

(i) se ofertada denúncia sem absolvição sumária, processar a acusação e rejeitada a absolvição sumária (total ou parcialmente), preparar os autos a serem remetidos ao Juiz de Julgamento, acautelando os demais (ficam à disposição das partes/julgadores);

(ii) se já iniciada a instrução e julgamento, mas não finalizado o ato (não se ouviram as testemunhas ou mesmo o interrogatório, por exemplo), diante da nova regulamentação, desde que tenha atuado em alguma das atribuições do Juiz das Garantias, anular todos os atos de instrução, pós art. 399, do CPP, preparando os autos a se remeter ao Juiz de Julgamento, acautelando os demais (ficam à disposição das partes/julgadores);

(iii) se já finalizada a instrução e julgamento, proferir decisão na forma do regime anterior, promovendo novos autos para fins recursais, porque mesmo sendo a decisão válida, o recurso já se insere no regime de cisão (Juiz das Garantias e Juiz de Julgamento) restringindo o conteúdo a ser encaminhado à superior instância;

9. Importante sublinhar, a latere, que sem o exercício da ação penal sequer se pode falar de isolamento de atos processuais, porque na fase de investigação se trata de procedimento. Logo, se não há nem mesmo processo, não se pode sequer falar de isolamento de ato processual.

10. A Reforma ampliou garantias. Não havia Juiz das Garantias e o Juiz era um só: da investigação preliminar até a sentença. Com a inclusão do Juiz das Garantias, então, surge aos casos sem instrução e julgamento finalizados, o direito (ampliação das garantias) de ser julgado por um Juiz imparcial (objetiva, subjetiva e cognitivamente). Não há um direito processual adquirido ao Juiz contaminado. Logo, será preciso sanear todos os processos em tramitação. Por isso a nossa objeção ao item (iv) “a” da decisão.

 

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[1] LACERDA, Galeno. O novo direito processual civil e os feitos pendentes. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p, 12.

[2] LANFREDI, Luís Geraldo Sant’Ana. El ‘Juez de Garantías’ y el sistema penal: (Re)planteamientos sócio-criminológicos hacia la (re)significación de los desafíos del poder Judicial frente a la política criminal brasileña. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 204-205: “De esta forma, el ‘juez de garantías’ nasce con la connotación de ser “un nuevo órgano judicial” que debe, según Bertolino (2000: p. 9), entenderse en el ámbito de un modelo de enjuiciamiento distinto, ya que proyecta alteraciones en sus relaciones con las otras instancias que intervienen en la persecución penal. Su función, del todo ajena a la gestión de la investigación de hechos y bajo ningún concepto representativa de la longa manus de los órganos encargados de perseguir al delincuente, se ejerce y tan solo se justifica en la medida en que se instituye para establecer los límites de la discrecionalidad de aquéllos, así como los requisitos esenciales que configuran la operatividad de ‘agresivos’ institutos manejados a lo largo de ésta primera fase del proceso penal (como, por ejemplo, la prisión provisional, las escuchas telefónicas, la infiltración de agentes y otras tantas medidas cautelares que limitan derechos en concreto en nombre de un mal planteado incremento de la eficiencia punitiva). Así que no es impropio admitir que la instrucción procesal penal llega a ser, muchas veces, una fase cuya fuerza es tal que puede desnaturalizar el juicio, merced la estructura y repercusión de las pruebas o presunciones implícitas con las que opera. Ese juez al que se alude con el epíteto de ‘garantizador’, como refiere Ferraioli (2006: p. 2), es un juez ‘para la instrucción’ y no ‘de la instrucción’, algo que refuerza su estatuto como órgano que interviene (en), pero que no compone o integra, la estructura de esta fase, al contrario de lo que ocurre con la policía y el ministerio público”.

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