Opinião

Novos contornos do abuso de personalidade jurídica

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15 de janeiro de 2020, 6h04

A personalidade jurídica, antes de tudo, é representativa de “uma ficção jurídica que, no que concerne às sociedades comerciais, visa dotar a chamada iniciativa privada, enquanto manifestação do direito de propriedade, de um instrumento de propulsão da atividade econômica"[1]. A concepção da ideia de abuso de direito, a seu turno, tem por objeto “impedir que o direito funcione como forma de opressão, evitar que o titular do direito utilize seu poder com finalidade distinta daquela a que se destina”[2].

A aproximação da figura do abuso do direito na esfera civil tem base hermenêutica positivada na redação do parágrafo único do artigo 2.035 do Código Civil, cujo comando firma que nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos pelo código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

A redação que o Código Civil preservava para a figura do abuso de personalidade jurídica antes da edição da Lei 13.874/19 desenhava um panorama generalizado, que exigiu da jurisprudência e da doutrina a conformação de normas de aplicação mais objetivas para a sua concreção[3]. O texto atual do artigo 50 do Código Civil faz expressa referência ao termo desconsideração e estabeleceu critérios mais pragmáticos para orientar a constatação da confusão patrimonial e do desvio de finalidade. A despeito de seus contornos gerais, as alterações neste sentido parecem positivas.

É possível vislumbrar de modo mais imediato três características fundamentais da nova redação do dispositivo, quais sejam: a indicação de que os sujeitos de direito capazes de responder em sede de extensão da responsabilidade civil são aqueles beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso; a exigência do comportamento doloso para a conformação do desvio de finalidade; e a intenção de cingir a confusão patrimonial às situações de inobservância da autonomia patrimonial. Para além disso, evidencia-se a hipótese da desconsideração inversa, que já estava albergada no artigo 133, parágrafo 2º, do CPC, e hipóteses de não caracterização de abuso, as quais a jurisprudência já vinha dando conta de firmar, como a mera existência de grupo econômico e a mera alteração ou modificação da atividade econômica da pessoa jurídica.

É de expressiva relevância a distinção que se instala entre a antiga redação e a nova, quando esta última limita aos beneficiados pelo abuso de personalidade jurídica a capacidade de responder por obrigações que não contraíram pessoalmente, enquanto a literalidade que estava anteriormente inscrita na codificação não albergava esta distinção e, portanto, era omissa em relação aos sócios e administradores que porventura não tivessem se beneficiado deste contexto. A alteração implica, portanto, relevante progresso em termos de segurança jurídica no que tangencia à legitimação para responder nestes casos.

É na configuração das premissas do abuso da personalidade jurídica, no entanto, que residem as novidades mais tocantes da lei. A começar pela exigência de que, para restar configurado, o desvio de finalidade demanda conduta com o propósito de lesar credores e praticar ilícitos de qualquer natureza. Inobstante esta inserção, a intenção do legislador parece conflitar com a da lei[4]. Notadamente porque “diferentemente do ato ilícito que exige a prova do dano para ser caracterizado, o abuso de direito é aferível objetivamente e pode não existir dano e existir ato abusivo. O abuso é aferível de modo objetivo, prescindindo do dolo ou culpa e também do dano para caracterizar-se"[5], e, ao referir o legislador à conduta específica[6], gera para o sistema de extensão de responsabilidade patrimonial um aparente entrave.

Este entrave se sustenta justamente na necessidade da prova da atuação dolosa para um fim específico, o que por si já significa um trabalho talvez inexecutável, se porventura se entender que é necessário que a intenção seja de fraudar credores específicos ou de causar algum tipo particular de dano. A dicção imprimida pela nova redação caminha por uma via distinta da que vinham perseguindo até então a doutrina e a jurisprudência. Com efeito, este tipo de exigência representa um descompasso na medida em que as técnicas e estratégias de blindagem patrimonial muitas vezes são preventivas, compreendem multiplicidade de agentes e visam a resguardar patrimônio — social ou individual — de determinados sujeitos em relação a um número indeterminado e talvez potencial de credores.

Nesta ordem de pensamentos, quando o então ministro José Arnaldo da Fonseca afirmou que “formular na Constituição um conceito de direito adquirido implicaria em subtrair-lhe muitas das suas possibilidades de progresso, tanto através da doutrina e da jurisprudência, como da própria legislação extravagante”[7], esta era a sua razão de pensar: a lei, enquanto fonte de direito, não pode se prestar a recuar-se ou se manter estática em relação aos avanços das particularidades dos fenômenos sociais e, ainda que reflexamente, obstar a sofisticação dos instrumentos de direito.

Pode-se justificar que aqui a exigência de um elemento constitutivo do dolo decorre de um salto lógico cujo contexto se edifica a partir das premissas da teoria maior subjetiva da desconsideração da personalidade jurídica. Mas uma interpretação adequada à sistemática civilista parece conduzir à conclusão de que, neste contexto, o desvio de finalidade se dá quando que o ato se der desamparado da função social a que se prestam a sociedade e os atos destinados a sustentá-la. Esta parece ser, aliás, a posição que Flavio Tartuce externa quando diz que “a expressa menção à ‘utilização dolosa’ como requisito para caracterizar o desvio é, em nosso sentir, um retrocesso”[8], o que permanece igualmente apropriado com a retirada da expressão, mas com a manutenção do elemento volitivo do dolo.

Agora, no caso da confusão patrimonial, a lei fixou como seu indicativo o descumprimento da autonomia patrimonial. Ainda que tenha firmado como hipóteses deste tipo de comportamento o cumprimento repetitivo de obrigações da sociedade pelo sócio, ou vice-versa, ou a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, como se pode extrair da dicção dos incisos I e II do parágrafo 2º da nova redação proposta ao artigo 50 do Código Civil, o inciso III concebe a configuração da confusão em decorrência de qualquer outro ato de descumprimento da autonomia patrimonial.

A questão já recebia atenção logo quando da publicação da medida. Chegou-se a apresentar proposta de emenda modificativa do dispositivo, sugerindo-se que o parágrafo 2º do artigo 7º da MP 881/19 tivesse a seguinte redação: “Entende-se por confusão patrimonial a ausência da separação de fato entre o patrimônio dos sócios e o patrimônio da pessoa jurídica e demais atos de descumprimento da autonomia patrimonial”. A justificativa para a emenda apresentada é relevante: “Quando se conceitua um dos requisitos para a configuração de abuso da personalidade jurídica faz-se necessário manter as possibilidades de o intérprete identificar, a partir de elementos do caso concreto, outras modalidades de confusão. A redação do parágrafo em comento, partindo de dois exemplos e uma cláusula genérica, poderá limitar a interpretação de tão importante instituto"[9].

De fato, a terminologia empregada na construção da norma reduz as margens da origem empírica[10] do conceito que ela busca imprimir na ordem jurídica. Isso porque a rejeição do abuso de personalidade jurídica, em última razão, é manifestação do dever legal de repressão ao abuso de poder econômico[11] e, assim, “no âmbito patrimonial os institutos são tutelados em razão e nos limites da sua função social”[12]. Os atos simulados de disposição e blindagem patrimonial a sustentar benefícios escusos configuram confusão de patrimônio não somente quando violado o princípio da autonomia patrimonial. É que, em se tratando de modalidade distintiva do abuso de direito, é possível que a conduta “esteja em harmonia com a letra da lei, mas em colisão com seus valores éticos, sociais e econômicos — enfim, em confronto com o conteúdo axiológico da norma legal”[13]. O aspecto de legitimidade, portanto, não importa no afastamento do ilícito objetivo que informa a natureza do ato abusivo.

Efetivamente, a inovação legislativa no conteúdo do artigo 50 do Código Civil é bem-sucedida quando positiva a desconsideração como modalidade de extensão da responsabilidade patrimonial. Também ao especificar os sujeitos legitimados a responder pelo abuso confere segurança aos jurisdicionados, incumbindo à prática jurídica identificar, em cada caso concreto, situações que importam benefícios diretos e indiretos decorrentes do exercício desmotivado ou adulterado do direito subjetivo de exercício da atividade econômica.

Um descompasso de instala, no entanto, com a dicção dos parágrafos 1º e 2º do dispositivo. Aqui é necessário recordar que em casos que tratam do abuso de direito, a argumentação jurídica, inclusive para fins de formulação da decisão judicial, sempre exigirá não somente a interpretação da norma, mas também a sua ponderação[14] [15]. Por isso, tanto exigir a conduta dolosa específica quanto delimitar o conteúdo para a concreção da confusão patrimonial à ofensa à autonomia patrimonial conferem à legislação tão somente aparência de segurança. É somente o tempo, no entanto, que retratará como o ordenamento jurídico brasileiro irá absorver estas inovações da lei.

[1] Voto do ministro Alexandre Reis no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, P.919/15.4T8PNF.P1.S1, 1ª Secção. Decisão de 7 de novembro de 2017.

[2] CAVALIERO FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 161.

[3] A instituição do incidente de desconsideração de personalidade jurídica, na codificação processual de 2015, foi um movimento igualmente acurado para estes fins. No campo da doutrina e da jurisprudência, a absorção das figuras da desconsideração indireta, expansiva da personalidade jurídica ganham destaque em razão da sua busca por medir a concretude da lei.

[4] A dicotomia que se instala entre a vontade do legislador e a vontade da lei irradia efeitos a todo o Direito. Ricardo Marcondes Martins firma que "o exegeta, diante do direito, ao interpretá-lo, deve haver-se como quem contempla uma pintura. É irrelevante saber qual foi a intenção do artista. Não tem a menor importância o que quis o autor, senão na medida em que traduziu o seu querer, idoneamente, na obra" (MARTINS, Ricardo Marcondes. Teoria geral da interpretação jurídica: considerações críticas à obra de Black. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura, Revista dos Tribunais, vol. 3, out./dez. 2017), e recorda da lição de Geraldo Ataliba, para quem "o que importa à hermenêutica jurídica é a vontade da lei e não a do legislador; e a vontade da lei está no seu texto, interpretado sistematicamente, em harmonia com o todo unitário formado pelo sistema jurídico" (ATALIBA, Geraldo. Autarquia sob forma de sociedade anônima. Revista de Direito Público. São Paulo, a. 1, v. 3, p. 137-149, jan./mar. 1968).

[5] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 462-463.

[6] Aqui é de invariável rigor notar que, quando da redação dada pela Medida Provisória 889/2019, a alteração legislativa fazia expressa referência à “utilização dolosa” da pessoa jurídica, enquanto nesta vigente a expressão foi omitida. A manutenção da exigência de que o desvio de finalidade consista na utilização da pessoa jurídica com determinado propósito — de lesar credores ou de praticar outros ilícitos quaisquer — não implica o afastamento da exigência do elemento volitivo do dolo. Burkhard formulou questão que propôs assim: “É importante para o dolo somente que o autor conheça as circunstâncias do fato ou é (co)determinante que queira ‘a realização de um suposto fato típico’?” (BURKHARDT, Björn. Derecho penal. Cuestiones fundamentales de la Teoría del Delito sobre la base de casos de sentencias. Tradução livre a partir da tradução de Silvina Bacigalupo e Manuel Cancio Meliá. Madrid: Colex, 1995. p. 155). Com efeito, o elemento volitivo do dolo, que no caso se extrai da necessidade de que a utilização da pessoa jurídica se dê com determinado propósito, está mantido na redação do dispositivo.

[7] Ensaio disponível em http://goo.gl/RCR396.

[8] TARTUCE, Flávio. A Medida Provisória da "Liberdade Econômica" e a Desconsideração da Personalidade Jurídica (Artigo 50, Código Civil): Primeiras Impressões. Disponível em https://bit.ly/2W0Z1SJ.

[9] Apresentação de Emenda à MP 881/19, de autoria de André Figueiredo. https://bit.ly/2MwgMpX.

[10] Cantuarias dizia que "um conceito é empírico quando sua compreensão se estabelece mediante abstração sensorial. […] A compreensão ou intenção de um conceito se constitui por um conjunto de atributos chamados "características distintivas" ou "traços característicos" que carregam os objetos a que determinado conceito se aplica. Um árduo problema se instala quando se passa a determinar quantos traços característicos deve ter o conceito de um objeto para que se possa identificá-lo, ou aos objetos a que se refere. Em princípio, pode ser apenas um, mas pode se dar no caso que a sua interpretação esteja informada por um conjunto imenso de traços característicos” (CANTUARIAS, Francisco Miró-Quesada. Ratio interpretandi: ensayo de hermenéutica jurídica. 2. ed. Tradução livre. Lima: Universidad Ricardo Palma, 2003. p. 37).

[11] Isso não significa que o abuso de direito e o de poder sejam figuras que se referem aos mesmos fenômenos, muito embora, como no caso em assunto, possam cada uma delas contribuir para a adequada interpretação do abuso da personalidade jurídica. Sobre o assunto, ver FERNANDES JUNIOR, João Gilberto Belvel, Entre o “abuso do poder econômico” e o “abuso de direito”: o caso da incorporadora oportunista. Revista de Direito Privado, Revista dos Tribunais, v. 100, jul./ago. 2019.

[12] MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos de personalidade. In VIEIRA, José Ribas (org.). 20 anos da Constituição Cidadã de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 106.

[13] CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. cit. p. 161.

[14] Está inclusive positivada na codificação processual civil brasileira regra hermenêutica segundo a qual a ponderação sobre o objeto do litígio é requisito para o afastamento de determinada norma, sempre a ser amparada pelas condições fáticas envolventes do caso, como manda o artigo 489, parágrafo 2º, do Código de Processo Civil.

[15] Como afirma Manuel Atienza, "o juiz tem que ponderar quando, para resolver um caso, não pode partir diretamente de uma regra, de uma pauta de comportamento específica, que controla o caso e que (sem entrar em nenhuma precisão que aqui é desnecessária) permitiria um raciocínio de tipo classificatório ou subsuntivo" (RODRÍGUEZ, Manuel Atienza; AMADO, Juan A. García. Un debate sobre la ponderación. Tradução livre. Sucre: Tribunal Constitucional Plurinacional de Bolivia, Unidad de Investigación, 2018. Livro digital).

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