Direito comparado

200 anos da Revolução Liberal do Porto

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Jr.

    é advogado da União; professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP); coordenador de área e membro do Conselho Superior da CAPES; conselheiro Nacional do Ministério Público. Acompanhe-o em sua página.

15 de janeiro de 2020, 12h52

Spacca
Em 20 de fevereiro deste ano, inicia-se na cidade do Porto, ao norte de Portugal, o ciclo de comemorações pelos 200 anos da Revolução Liberal de 1820. Esse acontecimento histórico é precursor da independência política do Brasil por diversas razões, sendo duas delas as mais importantes: a convocação das Cortes (Assembleia de Representantes do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves) e o retorno de D. João VI a Portugal.

A análise dessa efeméride histórica, mas também política e jurídica, exige que se retroceda até 1807, quando as forças napoleônicas invadiram Portugal e levaram à fuga da dinastia reinante para o Brasil em 1808. Com os franceses no país, o Reino passou a ser governado por um Conselho de Regência, liderado pelo Marquês de Abrantes[1]. Esse Conselho foi extinto em fevereiro de 1808 pelo General Junot[2], comandante francês da invasão.

Graças à reação inglesa, Portugal recuperou parcialmente sua soberania e deu início a uma longa guerra contra o invasor, que se estenderia por toda a Península Ibérica e envolvendo forças regulares e guerrilheiros de Espanha e Portugal.

Portugal viu-se dividido, destruído e governado militarmente pelos britânicos. Esse longo período de ocupação por forças estrangeiras acentuou as cisões internas no campo político e ideológico. Parte dos súditos de D. João VI desejava o fim da monarquia absoluta e adoção de modelos franceses, como os introduzidos em boa parte da Europa conquistada. Outra parcela dos portugueses desejava o retorno ao “status quo ante” e via nas “perigosas ideias francesas” uma ameaça à soberania e ao regime monárquico de Portugal[3].

Semelhantes divisões ocorreram em toda a Europa, mesmo após a queda de Napoleão em 1814, com seu retorno efêmero em 1815, seguido de sua derrota final para o Duque de Wellington (o mesmo general que libertou Portugal). Na vitoriosa Rússia, por exemplo, em 1825, os dezembristas (um grupo de militares e aristocratas) lideraram uma revolta contra o governo autocrático do czar Alexandre I[4], responsável pela derrota de Napoleão em 1812.

D. João VI, que estava no Brasil desde o começo de 1808, havia confiado o governo português, na prática, a um protetorado militar britânico. Em 1815, ele criou uma nova figura jurídico-política: o Reino Unido que englobava Portugal e o Brasil[5]. A ideia de Adam Smith[6] de transferência da coroa britânica para as colônias americanas, era posta em prática no império português.

A iniciativa do monarca português nos trópicos esbarrou, contudo, na rejeição dos habitantes da antiga metrópole. Em Portugal, a rejeição ao protetorado britânico deu início ao descontentamento popular. Na prática, a Coroa Portuguesa havia extinto os privilégios comerciais inerentes ao pacto colonial e, com isso, eliminado as fontes de lucro sem concorrência dos comerciantes metropolitanos.

A partir de uma curiosa aliança entre militares, religiosos e parte da aristocracia e da burguesia, o levante na cidade do Porto iniciou-se com uma proclamação política, uma missa e a ocupação dos centros de poder. A revolta posteriormente chegou à capital do país, ganhando a adesão do baixo oficialato e dos empobrecidos comerciantes de Lisboa. Os britânicos não conseguiram fazer frente à revolta. Talvez não mais lhe interessassem governar Portugal como procuradores de um rei nos trópicos. A ideia de livre-comércio havia-se tornado um mantra na política britânica e o regime português não conseguiria sustentar por muito mais tempo. A liberdade inaugurada com a elevação do Brasil ao “status” de reino não se deu sem sérias contradições em face do sistema metropolitano clássico.

O programa político dos revoltosos passava pela convocação das Cortes, a elaboração de uma constituição liberal para o país, o retorno da família real à metrópole e o fim das franquias comerciais (na prática, a restauração do pacto colonial). A revolta alcançou seu objetivo final em 28 de setembro de 1820, com a instituição da Junta Provisional do Governo Supremo do Reino.

Daquele momento em diante as contradições do liberalismo de 1820 se revelaram de modo incontornável.

A convocação das Cortes fez eleger representantes de Portugal e do Brasil. Pessoas de diferentes partes do território brasileiro encontraram-se em Portugal, como Bonifácio de Andrada, e viram nascer ou renascer o sentimento de pertença a uma comunidade com valores comuns. Ao mesmo tempo, perceberam o quão “liberais” eram as políticas propostas para o Brasil: a extinção de quase todas as franquias políticas, econômicas e jurídicas alcançadas desde 1808.

A volta da Família Real deu-se com um curioso detalhe: D. João VI deixara no Brasil seu filho Pedro, com funções governativas. Nunca se saberá ao certo se a decisão do rei de Portugal foi um ato de enorme presciência política, capaz de assegurar a continuidade da dinastia dos Bragança no território de ultramar, onde se localizava o futuro da monarquia.

Outra contradição da Revolta Liberal é a Constituição portuguesa de 23 de setembro de 1822, elaborada pelas Cortes Constituintes de 1820. Ela inspirou-se na Constituição de Cádiz de 1812 (de vida efêmera)[7], e nas Constituições francesas do período revolucionário (1791 e 1795). Em seu texto, há grandes inovações como um catálogo de direitos fundamentais, a fundação da soberania na nação (e não mais em Deus e na dinastia), o fim dos direitos excepcionais da aristocracia e do clero, a separação de poderes, com a supremacia legislativa e a conservação do sistema de uma monarquia ultramarina.

A Revolta Liberal não conseguiu evitar a perda da joia da coroa portuguesa: o Brasil havia declarado sua independência política em 7 de setembro de 1822, duas semanas antes da promulgação da nova constituição portuguesa. O texto constitucional de 1822[8] já nascia desatualizado, embora Portugal levasse mais três anos até reconhecer a independência nacional, por efeito do Tratado de Paz e Aliança de 1825.

O liberalismo de 1822 ainda provocou, ainda que tardiamente, uma guerra civil entre 1828 e 1834, que opôs os herdeiros de D. João VI: D. Pedro (Primeiro do Brasil e Quarto de Portugal) e D. Miguel, este último como líder das forças absolutistas. Os liberais terminaram por vencer e assegurou-se o trono a D. Maria II, filha de D. Pedro.

As celebrações da Revolta Liberal do Porto ocorrerão ao longo do ano, com eventos e cerimônias envolvendo autoridades portuguesas e da União Europeia. Essa efeméride mereceria também atenções especiais dos brasileiros, tamanho o impacto daquela inesperada sedição no Norte de Portugal, ocorrida há 200 anos, para o nascimento do Estado Brasileiro. A independência nacional, marcada pela proclamação às margens do riacho Ipiranga, em São Paulo, em 1822, não teria ocorrido como se deu sem a Revolta de 1820. Seus responsáveis talvez não imaginassem a amplitude de seus efeitos.

Agradece-se a Luís Felipe Rasmuss de Almeida pelo auxílio na revisão do texto e elaboração de notas de referência.


[1] O Conselho de Regência de 1807 foi ordenado em 26 de novembro daquele ano, previamente à transferência da Corte para o Brasil. Seu presidente era Pedro de Lancastre da Silveira Castelo Branco Sá e Meneses, detentor do título nobiliárquico “Marquês de Abrantes” (o quinto) entre 1771 e 1828.

[2] Jean-Andoche Junot, militar francês.

[3] Este receio, compartilhado pela monarquia, estava refletido na Lei de 17 de dezembro de 1794 acerca da Censura dos livros, que extinguiu-se a Real Mesa Censória, restaurando-se a fiscalização de obras para a tríplice composta por Tribunal do Santo Ofício, Desembargo do Paço e do Ordinário. Cf: Arquivo Nacional – Torre do Tombo. Disponível em: <http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4311313>. Por sua vez, a íntegra da Lei de 17 de dezembro de 1794 está disponível em: “Colleção da Legislação Portugueza desde a ultima compilação das ordenações, redigida pelo Desembargador Antonio Delgado da Silva” em <http://www.governodosoutros.ics.ul.pt/?menu=consulta&id_partes=110&accao=ver&pagina=1>. Neste sentido, ainda: BASTOS, José Timóteo da Silva. História da censura intelectual em Portugal. 2. ed. Coimbra: Moraes, 1983, 221 p.

[4] A Revolta Dezembrista foi a inspiração original do escritor russo Liev Tolstói na elaboração do romance que culminou na obra “Guerra e Paz”, tratando em grande medida das guerras napoleônicas na Rússia.

[5] Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, designado em 16 de dezembro de 1815. Sobre o tema, foi publicado artigo na edição de 16 de dezembro de 2015 da Folha de S. Paulo, redigido pelo Ministro José Antonio Dias Toffoli, pelo Professor Catedrático Jorge Miranda e este autor: <https://www.conjur.com.br/2015-dez-16/reino-portugal-brasil-possuia-estrutura-juridica-avancada>.

[6] Tais ideias são essencialmente discutidas no capítulo VIII do Livro 4 (On Colonies) na obra “A Riqueza das Nações”. SMITH, Adam. An Inquiry Into the Nature and Causes – Of the Wealth of Nations. Nova Iorque: Random House, 1937.

[7] Sobre a Constituição de Cádiz, este autor publicou artigo neste sítio virtual do ConJur: <https://www.conjur.com.br/2012-out-31/direito-comparado-constituicao-vigorou-24-horas-brasil>.

[8] Sobre o tema: MIRANDA, Jorge. O constitucionalismo liberal luso-brasileiro. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001, 307 p.

Autores

  • é coordenador da área de Direito da Capes, professor associado (livre-docente) em Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil, com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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